quinta-feira, 27 de julho de 2023

Quando a Terra ficou em perigo (4)

O Tomás pôs de parte o livro e olhou em volta. No cadeirão em frente, simulei estar adormecido. A seu lado, a Mafalda assistia ao jogo do Pedro com o “morto”. Era uma imagem a que já me tinha habituado.
«Lá fora deve estar um bom dia de sol.» Disse o Tomás, ao mesmo tempo que se aproximava de mim.
Entreabri os olhos.
«Desculpa... Nem sei quanto dava para estar lá fora. Habituei-me ao espaço fechado do Observatório, mas agora é diferente. Por vezes até parece que me falta o ar.»
«Tens razão. Estamos aqui enclausurados, à espera. Vamos perder a noção do tempo. Os próprios relógios não servem para nada, a não ser como elementos para manter a disciplina.»
«Talvez não aconteça isso» tentou esclarecer o astrónomo. «Nós, seres vivos pensantes, dispomos de uma capacidade de adaptação às mudanças que possam verificar-se à nossa volta e existe também um relógio interno que nos orienta.»
«Tens razão. Já ouvi falar nisso. Com adaptação ou sem ela, desorientação ou não, ficámos para aqui metidos neste buraco donde não podemos ver a luz natural. Por vezes sinto um desejo enorme de acreditar que nada vai acontecer e que uma dia acordamos sãos e salvos e sabemos que podemos ir lá para fora.»
«Se quiseres, podes sair. Não te aconselho. Tem paciência que ainda agora chegámos. Vamos passar muitos dias aqui fechados.»
«Apenas deixei fugir um pensamento fraco. Era muito melhor estarmos lá fora mas em circunstâncias normais.»
A Mafalda interveio.
«E se mudassem de assunto? Falem de qualquer coisa científica. Por exemplo, dos dinossauros e da sua extinção repentina para a qual ainda ninguém encontrou explicação, apesar das muitas hipóteses aparecidas que tentam explicar o fenómeno.»
«É melhor também não falarmos de cataclismos. Quanto a mim, a explicação mais consistente para a extinção dos grandes répteis foi a queda de um cometa ou asteroide. Ponto final.»
«Vou pelo asteroide. Então não falamos de nada. Fazemos como acontece contigo, quando entras no teu mundo subterrâneo e nem sequer ouves o que te dizem.»
Acusei o toque.
«Isso é piada?»
«Bem sabes que é.»
«Não podemos deixar-nos envolver pelas teias provocadas pelo isolamento. Estamos aqui ainda há nove dias e já parece que decorreu uma eternidade. Vamos ser razoáveis uns com os outros. Temos ainda muito tempo à nossa frente. Se a Mafalda quer ouvir a história da extinção dos dinossauros, então eu conto.»
«Muito obrigada, agora já me passou a vontade.»
Fez-se um silêncio demasiado "ruidoso". A Mafalda continuou a ver o Pedro jogar.
«Que aconteceu?» perguntou este.
«Um pequeno desaguisado com o Mário.»
«Se já está a acontecer contigo, estou convencido que não vamos suportar esta pressão durante muito tempo.»
«Estamos a descontrolar-nos cedo de mais.» Disse o Tomás.
Voltei a tomar o controlo da situação.
«Foi um momento passageiro. Vai acontecer muitas vezes. O segredo do êxito da nossa sobrevivência psicológica é sabermos travar as palavras agressivas no momento exato. Acreditem que nos esperam tempos ainda mais complicados. De certa maneira estas pequenas discussões até são boas porque servem de teste e deixam escapar as tensões acumuladas. É como acontece com os sismos e os vulcões. Abalos ou erupções mais frequentes são ocorrências favoráveis. O pior acontece, por exemplo, quando um vulcão ativo desperta de repente de um longo sono.»
«Será que nos vamos adaptar?»
«Claro que sim.»
«Você é desconcertante, Mário. Entrou em rota de colisão e saiu rapidamente dela, como se entretanto nada tivesse acontecido. Mas quer acredite, quer não acredite, esta crise não é passageira. Há de voltar muitas vezes e cada vez mais forte.»
Olhámos para Teresa. Donde tinha surgido?
Nada disso. Esteve sempre presente.
«E nós resistiremos a cada crise que venha, Teresa. Lembre-se que o nosso futuro está em jogo.»
«Mas que futuro? Ainda não sabemos se temos futuro. A prova real será feita daqui a dois anos, se entretanto ainda estivermos vivos.»
Foi a vez do Tomás recordar que já tinha passado horas a meditar no que estava a acontecer lá fora. «Tens razão. Estamos aqui enclausurados, à espera. Vamos perder a noção do tempo. Os próprios relógios não servem para nada, a não ser como elementos para manter a disciplina.»
«Talvez não aconteça isso» tentou esclarecer o astrónomo. «Nós, seres vivos pensantes, dispomos de uma capacidade de adaptação às mudanças que possam verificar-se à nossa volta e existe também um relógio interno que nos orienta.»
«Tens razão. Já ouvi falar nisso. Com adaptação ou sem ela, desorientação ou não, ficámos para aqui metidos neste buraco donde não podemos ver a luz natural. Por vezes sinto um desejo enorme de acreditar que nada vai acontecer e que uma dia acordamos sãos e salvos e sabemos que podemos ir lá para fora.»
«Se quiseres, podes sair. Não te aconselho. Tem paciência que ainda agora chegámos. Vamos passar muitos dias aqui fechados.»
«Apenas deixei fugir um pensamento fraco. Era muito melhor estarmos lá fora, mas em circunstâncias normais.»
«O Pedro não se cansa de jogar» comentou. «Quanto a mim, tenho uma fisgada. Vou fazer o que acho mais lógico. Voltar ao Observatório e continuar os meus trabalhos de investigação.»
«Para quem?»
«Para mim. É quanto basta.»
«Porquê?»
«Dá-me gozo.»
«O Observatório já não terá ninguém. Sabes disso, não sabes?»
«É muito provável. Mas posso trabalhar só. Há muita coisa para fazer depois da tempestade solar. Decerto que vão ficar no Sol vestígios interessantes.»
«Interessantíssimos. Volto à pergunta: para quem se destinam os teus trabalhos? Para os últimos humanos, ou para a geração de mutantes que pode vir aí no futuro? E onde vais buscar a energia elétrica e os alimentos?»
«O que interessa é que já tenho um motivo. Quanto ao resto, penso que é muito fácil. há um gerador no Observatório e terei todos os supermercados à minha disposição e sempre a preços acessíveis. Bem como os livros. Como vês, o problema está resolvido.»
«Talvez não. Os livros não se estragam, mas os alimentos, sim. É muito provável que os alimentos contidos nas embalagens tenham entretanto sido contaminados pelas radiações. Essa vai ser a nossa dúvida quando sairmos do abrigo. Por isso, quando for possível, experimentamos as sementes armazenadas na despensa. Será que germinam? A esperança é a última coisa a morrer. Só nos resta mudar para um regime vegetariano.»
«De facto torna-se prematuro termos ideias definitivas. Esperemos para ver. Por enquanto não mudo de ideias.»

Quando cheguei à sala de convívio estavam todos debruçados sobre o aparelho de rádio.
«Passa-se alguma coisa?»
O Tomás voltou-se e fez-me um gesto nervoso. Calei-me e fiquei a ouvir. Tinha sido detetada em Londres uma epidemia desconhecida. Os sintomas apontavam para fortes diarreias, dores de cabeça, náuseas, debilidade física geral. As primeiras vítimas tinham surgido no dia anterior e já havia meio milhar de pessoas hospitalizadas. Os investigadores agora tentavam descobrir o microrganismo que seria responsável pela epidemia.
«Ingénuos...»
Concordei com a sua observação. Não iam encontrar vírus algum culpado pela pandemia. O mal era outro e ninguém estava protegido. Era muito natural que já estivessem mais pessoas atacadas. Os ingleses tinham sido os primeiros a descobrir. Seria lógico a seguir acontecer nos outros países. Numa semana lançariam o alerta mundial para um inimigo desconhecido.
A confirmar as minhas previsões o locutor deu uma última notícia sobre casos semelhantes descobertos em França. O foco continuava a ser de origem desconhecida. Sempre atacando na sombra, até que um cientista o relacionasse com a gigantesca mancha solar que tinha sido a origem da explosão. Então seria demasiado tarde para fugirem às radiações. E acontecia com o inimigo desconhecido à vista. Bastava que os cientistas tivessem dado um pouco de atenção ao Sol e à explosão já ocorrida.
«Começou.» Disse o Pedro.
«Não restam dúvidas» concordou o Tomás. «Os sintomas são esclarecedores e as pessoas vão morrer sem saberem de que morrem.»
«Os dados estão lançados, Tomás. Achas que estamos em segurança neste buraco?»
«Penso que sim, Mário. Temos sobre as nossas cabeças mais de um metro de betão que é espessura suficiente para impedir que as malditas das radiações provoquem lesões fatais nas células.»
«Aflige-me sabermos o que se está a passar e não ser possível intervirmos.» Disse a Mafalda, desanimada.
«Não nos quiseram ouvir e agora nada podemos fazer. Ninguém deve sair do abrigo. Quem o fizer corre o risco de ser afetado pelas radiações letais. Devem ter começado a ser emitidas há quase dois meses. A partir de agora é muito perigosa uma exposição ao ar, nem que seja mínima. Estão a ouvir? Ninguém sai, nem que seja por um minuto. Vamos todos aguentar aqui a pé firme.»
Parece que no momento exato disse as palavras exatas.
«Teremos mesmo que ficar dois anos metidos neste buraco?»
«Ou mais, Pedro. Nunca para menos. Entretanto, vamos ouvindo as notícias pela rádio. O cataclismo foi geral. Não atingiu só Londres. Certamente que amanhã teremos mais notícias. Vão continuar a considerar um vírus misterioso como o grande responsável pela falsa epidemia e o verdadeiro inimigo continuará a cento e cinquenta milhões de quilómetros, intocável, sem que haja uma barreira protetora que detenha o seu efeito mortal.»
«Ontem ouvi qualquer coisa na rádio. Aconselharam as pessoas a não se exporem em excesso aos raios solares e a usarem cremes e sprays protetores. Não consegui perceber o resto.»
«E só agora o dizes, Pedro!» comentei, agastado.
«Passou-me de ideia.»
«Onde tinhas a cabeça?»
«Não relacionei. Mas durante quanto tempo a Terra vai ser bombardeada pelas radiações malditas?»
Lancei um olhar a pedir a intervenção do Tomás.
«Sinceramente não faço a mínima ideia. Da maior explosão solar que conheci foram emitidas radiações durante quatro horas. Esta emissão de partículas foi excecionalmente poderosa. A duração do fenómeno que está ocorrendo é imprevisível, dado que não assisti à fase final de aglomeração das múltiplas e pequenas manchas numa só, e gigantesca, segundo tudo levava a crer. Pelo que me foi dado observar é muitíssimo superior àquela. Tanto pode demorar um dia como uma semana. Nunca o saberemos. Depois há que esperar com paciência que o perigo passe. Acho, no entanto, uma coisa estranha. A esta hora já alguns astrónomos deviam ter alertado a opinião pública para o crescimento das manchas solares e não tem havido qualquer comentário sobre o fenómeno, É de facto muito estranho. Avanço com uma hipótese: provavelmente a censura agiu com demasiada eficácia.»
Recapitulei:
«Agora temos dois indícios. Eles já sabem que o Sol está numa fase anormalmente ativa. E agora temos a epidemia. Basta relacionarem uma coisa com a outra. Dois mais dois igual a quatro.»
«Não chegam lá. Não relacionarão tão cedo a epidemia com o aumento brutal da atividade na nossa estrela.»
«Não seria tão categórico» argumentei. «Creio que estás a depreciar os teus colegas. Julgo até que já relacionaram as duas coisas e neste momento estão na mesma situação em que nós ficámos quando foi dada a entrevista na televisão. Acontece que todos os noticiários, depois da saída de notícias alarmistas, passaram a estar controlados. É por esse motivo que a vida vai desaparecer quase totalmente da face da Terra. E a culpa é de quem? Primeiro, como é lógico, do Sol. Depois, de uma minoria elitista de egoístas que ficará a bom recato nos abrigos mal tenha a certeza que a máquina da censura, eficazmente montada, cairá sobre quem alertar as massas para o grande perigo que correm. E assim ninguém entrará em pânico. Vão morrendo aos poucos, sem saberem a causa da morte.»
«De certa maneira também fazemos parte dessa elite. Fomos privilegiados, não neguem.» Afirmou a Teresa.
«A nossa situação é diferente. Tentámos alertar a opinião pública.» Repliquei.
«Certo. Mas esperaram quase uma semana...»
«Já expliquei os motivos.»
«Não podemos fazer mais nada?» perguntou a Mafalda.
«Já fizemos tudo o que tínhamos a fazer. Num tempo muito apertado lutámos para dar a conhecer a tragédia, mas não fomos ouvidos. Se podíamos ter feito mais, não sei. Agora há que salvar a pele, aguardando que o perigo passe.»
«E os teus amigos, Mário? São tão avançados cientificamente e ficaram de braços cruzados...»
«Já falámos também sobre tudo sobre isso. Têm a sua filosofia de vida e nunca irão intervir. Tenho a certeza que nesta altura já saíram do nosso sistema solar.»
«Ena! Já onze horas...» Fez notar a Mafalda.
«Amanhã também é dia.» Disse o Pedro.
Havia sempre um amanhã quando chegasse a altura de sairmos do abrigo. Talvez incerto, mas sempre era um amanhã.

15 de outubro de 1980...
Acordei sobressaltado. Ouvia um ruído de profundidade. Um ronco cavernoso. Ao mesmo tempo a cama começou a estremecer numa dança agitada. Queria reagir, saltar da cama, mas sentia-me amarrado, sem forças. Que bom que era meter a cabeça debaixo do travesseiro e aguardar. A cama continuava a dançar, cada vez de forma mais frenética.
O que era aquilo?
Devia estar a sonhar. Era bom não reagir, deixar correr o tempo. Havia todo o tempo do mundo para esperarmos pelo fim do perigo das radiações. Então ficava à espera. À espera, uma ova. Uma sacudidela mais forte foi também mais esclarecedora da verdade. Um sismo. Estava a dar-se um sismo. E bem forte. O melhor era levantar-me, embora o abrigo fosse altamente seguro. Continuava a ouvir um uivo rouco.
Seria o abrigo a rachar?
Vesti as calças atabalhoadamente. Não tinha o mínimo jeito para emergências. Claro que, quando cheguei à porta, o abalo já tinha passado.
Estavam todos no corredor, em alvoroço. Seminus. Procurei serenar os ânimos. O chefe tinha sido o último a chegar.
«Calma. Já passou.»
A Mafalda era de todos a mais amedrontada.
«E se houver outro igual ou mais forte?»
Pus as mãos nos ombros da minha amiga. O gesto surtiu algum efeito. Aos poucos, ela foi acalmando.
«Certamente que haverá novos sismos. Muitas réplicas, algumas ainda fortes, mas sempre de intensidade inferior à do primeiro abalo. Depois, quando o equilíbrio da crosta na zona do hipocentro se restabelecer, tudo cessará. Quanto à possibilidade de um novo abalo de grande intensidade, nada posso dizer. Nem que fosse um especialista na matéria. Pelo pouco que sei, as réplicas são normalmente de intensidade inferior ao abalo principal.»
«Peço desculpa pelo meu descontrolo.»
«Não esqueçam que o abrigo é antissísmico.»
«Mas certamente abriu fendas.» Disse a Teresa, amedrontada.
«Onde?»
«Ali...» Apontou com o indicador.
«Onde estão as fendas? São apenas sombras.» Esclareci.
A calma pareceu voltar. Olhámos uns para os outros e desatámos a rir da forma como estávamos vestidos. O espetáculo era digno de ver-se. Eu, em tronco nu, de calças vestidas, era o mais composto de todos. As mulheres desapareceram logo de cena.
«Agora que os ânimos serenaram, vamos ver se há estragos.»
«Sim. Depois de nos vestirmos.» Disse o Tomás.
«Parece que as mulheres não gostaram do espetáculo. Mas elas não estavam melhores que nós.» Comentou o Pedro, com sarcasmo.
«Encontramo-nos na sala dentro de dez minutos, depois de toda gente estar vestida decentemente.»
Cheguei a recear que algum deles se desorientasse e fugisse para o exterior.
Elas apareceram impecáveis, como se nada tivesse acontecido. Olhei em especial para a Mafalda. Não era mulher para se deitar fora.
Começámos pelos quartos. Apenas um ou outro objeto caído. De fendas nem um único vestígio. O mesmo aconteceu nos outros compartimentos, excetuando a sala de convívio, onde se deu um contratempo importante. A telefonia estava tombada no chão. Pedro voltou a colocá-la sobre a mesa e ligou-a, de imediato. Nada. Subiu o som e ficámos todos à espera.
«Deve estar a aquecer...» Disse a Teresa, esperançada.
Longe iam os tempos das telefonias com válvulas.
«Não acredito que se tenha avariado com a queda.»
Tinha o dever, como chefe que era, de me antecipar aos outros. De momento assemelhava-me um pouco aos outros chefes que não queriam lançar o pânico. Eles olhavam-me, aguardando uma explicação.
«E então?» perguntou o Tomás. «Não me interessa esse encolher de ombros. Toda a gente está a ver que foi da queda. A mesa ainda é alta e o chão é de pedra. Paciência. Perdemos o contacto com exterior.»
«A minha ideia é esta. O sismo foi forte e deve ter provocado avarias nos postos retransmissores. Vão ver que daqui a pouco tudo volta ao normal e temos outra vez notícias.»
«Aconteceu em todos os postos?»
Pergunta do Tomás, interessante e devastadora.
«Alguém há de ter trazido outro aparelho.» Admiti.
Ninguém se manifestou.
«Dentro em breve as comunicações restabelecem-se. Não há a razão para entrarmos em pânico.»
«Achas?»
Sentia o desalento ganhar força. Sem notícias do exterior cortava-se o último fio de contacto que nos restava. Estávamos sós. Entregues a um ano e meio de solidão. Pelo menos.
«Temos que nos habituar a saber viver com esta nova verdade.»
«De que forma, Mário?» perguntou o Tomás.
«Unindo-nos cada vez mais. Devemos ser uma equipa coesa e não permitir que alguém se isole. Está combinado?»
De novo o ronco cavernoso, o chão a dançar, a fugir-nos dos pés. Mais objetos a caírem. Pânico generalizado. Gritos de aflição das mulheres. Pensei que chegou o último momento. Desorientado, deambulei por toda a sala. A situação tornou-se dramática. Tínhamos apanhado outra chicotada antes de estarmos restabelecidos da primeira. A Mafalda agarrou-se a mim, como uma lapa. Soltei-me dela, num repelão. Fiquei estonteado. Não era para menos. Tinham sido dois abalos fortes muito próximos um do outro.
Finalmente as sacudidelas passaram e respirámos, aliviados. O sismo tinha sido bem mais prolongado que o outro, contrariando a teoria das réplicas.
E lá fora?, o que se passava?
Provavelmente a casa tinha desabado. Agora estávamos prisioneiros a cem por cento.
«Não tentem sair. Aliás, tenho a chave comigo. Considerem-se meus prisioneiros, mas por uma questão de segurança, pois quem pisar o solo no exterior corre perigo de vida. Acreditem que estão muito mais seguros aqui. Vamos fazer de imediato uma nova inspeção às paredes.»
«Este abrigo vai ser o nosso túmulo.»
«Não sei se tens razão. Nem interessa saber. Uma coisa é certa e já todos sabem: daqui não sai ninguém.»
«Isso é que saímos. Não vamos morrer.» Retorquiu Pedro.
«Não sejas estúpido!»
A Mafalda juntou-se a mim. Os outros agruparam-se em volta de Pedro. Nos rostos lia-se pavor, mas também determinação.
«Volto a dizer que não há razão para alarme. O abrigo resistiu e resistirá. Acreditem!»
«Quem o garante que vai resistir da próxima vez?»
«Garanto eu.»
«Não és técnico.»
«Não sou técnico nem adivinho. Mas sou o chefe. Ponto final.»
O braço de ferro mantinha-se. Sentia a tensão crescer. Contudo, obrigava-os a manter a distância. Fitava o grupo com firmeza. A Mafalda e o Pedro já me conheciam. Os outros nem por isso. A propósito, já não via o Pedro. Onde estava?
«Mafalda, vai lá dentro...»
«Não é preciso procurarem-me. Enquanto discutiam estive a vistoriar o abrigo. Há uma fenda razoável no teto do corredor.»
«Como?» perguntou Tomás.
«Vamos ver.»
De facto havia uma fenda com mais de dois metros de extensão e cerca de meio centímetro de largura. Fiz uma avaliação rápida.
«Não há problema de maior. Temos cimento na despensa. Vamos já tratar do caso. Sabem como se faz? Primeiro "sangramos" a racha. A seguir cobrimos com cimento.»
«Como é isso feito?»
«Picamos um pouco na zona da racha e tapamos com cimento. Ou melhor: para acalmarem os ânimos, o Tomás e o Pedro tapam a fenda. Só cimento. Nada de areia. E lembrem-se, de uma coisa: a nossa segurança está aqui, neste abrigo. Por muito que nos custe, com sismos ou sem sismos, com mais discussões ou menos discussões, este abrigo é a nossa única segurança. E agora eu e a Mafalda vamos lá acima ver o que aconteceu à casa.»
«Vão... que a morte é certa.»
«Tens razão, Teresa. Desde que nascemos começamos logo a morrer. Bem sabes que é verdade. Os cremes escondem as rugas durante o dia, mas elas voltam ao princípio da noite.»
Nada aconteceu de anormal com a casa. Só uma ou outra fenda. Ainda bem que a construção era robusta.

O tempo foi correndo no abrigo. Sem notícias do exterior o mundo fechava-se à nossa volta.
Na semana que se seguiu houve mais dois abalos fortes e umas tantas réplicas. Depois, o monstro subterrâneo deixou de rugir. Respirámos de alívio. Tínhamos entrado no abrigo com o pé esquerdo, mas as coisas começavam a compor-se.
O Pedro continuou a fazer paciências e a jogar com o “morto”. Quanto ao Tomás debruçou-se cada vez mais sobre os livros de Astronomia e tentou trocar impressões com ouvidos moucos. A Teresa mostrou-se sempre discreta, mas nunca ausente. Eu escondi-me da Mafalda no snack dos olhares perdidos da Patrícia e das visões de gaivotas em voos circulares. Quanto à falta de notícias do exterior, esta acabou por ser mais positiva que negativa, pois deixaram de sentir na pele o inevitável avolumar de relatos que sabiam onde iam desaguar.
Ao fim de um ano de permanência no abrigo, eu e os meus companheiros chegámos à conclusão que era importante comemorarmos. Assim, reunimo-nos na sala antes de um jantar de circunstância.
«O facto de estarmos ainda todos vivos, de razoável saúde física e menos razoável saúde mental merece algumas palavras.»
«Então fala, Tomás.» Disse o Pedro.
«O nosso chefe é que deve falar.»
«Mário!, Mário!, Mário!...» Gritaram todos em uníssono.
Tentei esquivar-me. Nunca gostei de discursar. Além do mais achava aquela ideia um tanto ou quanto ridícula.
«Que devo dizer?»
«Não penses que escapas. Oportunidades como estas são raras. E tu sabes falar bem.»
«Que vou dizer que já não saibam? Que o dia deve estar ótimo lá fora e que, por este caminho que as coisas estão a levar, ainda alguém apanha uma piela?»
«Sim, o dia está ótimo lá fora, com o céu muito azul e apenas atravessado por radiações amigas.» Ironizou Tomás. «Já viram o bom que era tomar um banho de mar e depois secar o corpo ao sol amigo?»
«Não me fales do Sol.»
Continuavam a olhar para mim, à espera.
Levantei-me. Como se estivesse a acontecer algo único. E era verdade.
Todos os olhos convergiram para mim. Lógico. No abrigo, em que as horas passavam sempre iguais e os dias não tinham nem nascer nem pôr do sol, o facto de ir dizer algumas palavras era considerado um acontecimento importante. Tossi. E esta? Estava mesmo nervoso. Teriam dado conta?
«Seja então. Já sabem que se vão arrepender. Como começar? Talvez por lembrar-lhes o motivo desta confraternização. Faz hoje um ano que chegámos ao abrigo. Infelizmente o Gaspar não está mais connosco e o seu destino é desconhecido para nós. Muito provavelmente não vai sobreviver, ou já está morto. Em matéria de probabilidades estamos melhor. Protegidos das radiações letais. Com reservas alimentícias para mais de um ano. Com um bom sistema de renovação de ar. Ar sempre puro. Meus amigos, julgo que podemos sobreviver durante mais de um ano neste abrigo inexpugnável. Não estou arrependido de os ter arrastado para esta aventura. Aliás era a única hipótese viável de sobrevivência. Quando estive na nave dos extraterrestres aprendi muita coisa nova que está a ser útil agora. Só não aprendi a ser lógico, como eles. Mas também podia ter adquirido a imortalidade e atingir assim o cume do saber. Fui convidado para os seguir na sua viagem de eternidade. Não quis porque este é o meu mundo e os meus amigos são vocês e o resto da humanidade que não sei se está bem de saúde. Temo que não. Depois de eles sondarem o meu subconsciente e de terem o filme de todo o passado que já vivi, fui motivado fortemente para os acompanhar. Até me deram a possibilidade de ter comigo uma réplica de um certo amor que perdi no passado, criando um androide feminino para me seduzir. Até me deram a possibilidade de procriar. Não quis. Uma ligação mais forte colou os meus pés aos torrões que me viram nascer. Estive quase a ceder mais que uma vez pois a força da miragem fazia-me crer que vivia naquela nave a realidade interrompida pelo desaparecimento da coisa amada. Mas foi apenas um momento de fraqueza porque a ideia de voltar à Terra acabou por prevalecer.»
Falava de uma força que me impedira de partir. Os olhos da Mafalda, pousados sobre o copo vazio, viraram-se para mim. E só viram um Mário distante, que falava, falava, sem sonhar com um amanhecer diferente. Tinha amizade para dar-lhe e ela queria mais. Sempre quisera mais. Mas nunca o disse. Sofreu em silêncio. Preferiu guardar um segredo de primavera sem flores e sem chilreada de pardais. Eu era o cipreste que se erguia, cada vez mais alto, mais frio, distante da terra que me sustinha. Queria ganhar asas. Partir. Mas a força agregadora acabava sempre vencendo.
E que achava a Mafalda?
Talvez que o cipreste vergava ao vento e à intempérie, sem quebrar, sem ceder. Por vezes, sentia-lhe a fraqueza de caniço, apalpava-lhe o receio. Então tentava penetrar nele e fundir-se no mesmo sonho. Era um instante porque logo eu voltava como um diamante já lapidado que lhe rasgava as entranhas.
A Mafalda olhava agora para mim como se fosse outro Mário que a repelia. O autor de coisas que recusava acreditar. Como naquela noite da bomba e dos risos cristalinos das crianças. O ribombar e o clarão. Os gritos e a dor. Tinha posto a bomba, friamente. O outro Mário que desejava um futuro melhor para todos com o pressuposto de um renascer das cinzas.
«Tu não sabias. Foi o acaso...»
Afinal o outro Mário sabia?
A verdade é que tinha andado durante horas, sem destino. Acompanhado de vozes estranhas e de risos cristalinos de crianças.
«Sim, deve-se ao desejo de ir ao encontro dos extraterrestres a feliz coincidência de estarmos aqui. Não sei se tivemos mais sorte que os outros. O amanhã é incerto. Estamos sós. Provavelmente ficaremos sós. Sem encruzilhadas para Deus. Porque Deus não nos quer pela simples razão de que não existe. Se existisse certamente travaria a tempestade solar ou interferiria por intermédio das tais criaturas que me sondaram o cérebro. Não. Não há Deus. Mais uma vez digo que estamos sós. Entregues ao nosso destino. Ao forte instinto de sobrevivência, ainda à espera dum amanhã diferente. Estamos sós, mas unidos. Acredito que o tempo vai passar sem incidentes maiores. O perigo já lá vai. Vamos voltar à rotina. É tudo. Quem está de serviço hoje?»
«Tu e a Mafalda na cozinha. Não te lembras?»
«Eu e Mafalda na cozinha. Então vamos preparar um bom jantar para hoje. O dia tem que acabar em beleza. Que acham se abrirmos mais uma garrafa? Temos muitas para ocasiões especiais. Amanhã começa um novo ciclo. Vamos continuar à espera do dia desejado. Estamos numa ilha, felizmente a coberto do perigo. Estamos numa ilha até que aquela porta se abra. E um dia, acreditem, ela vai mesmo abrir-se. Um poeta disse: “Não sei o que me espera o amanhã”. Mas não vamos morrer amanhã, como ele. Vamos, sim, morrer no fim de cada dia que passa, e na certeza de voltarmos, em cada amanhecer, prontos para um novo dia.»
A Mafalda chamou-me à parte.
«Mário...»
«Sim?»
«Podias ajudar-me, mas, no fundo, bem no fundo, há em ti egoísmo. Disfarçado. Seja, disfarçado. És só tu. Não te dás. Vives obcecado por algo que deve valer muito para não deixares de ser um solitário. Que esperas? Que veem os teus olhos na distância? Sonhas de olhos abertos. Estás a destruir-te.»
«Que queres dizer?»
«Deixa para lá...»

25 de maio de 1981...
O tempo vai passando lentamente no abrigo...
A Teresa pôs uma cassete no leitor. O Tomás e a Mafalda conversam.
«Essa história sobre os sobrevivalistas é mesmo verdadeira ou é imaginação tua?»
«Que ideia! Li numa revista. Viviam obcecados pelo medo do apocalipse nuclear e andavam sempre perto dos abrigos, não fosse eclodir uma terceira guerra nuclear. Os abrigos estavam sempre equipados, tal como o nosso.»
«Imaginemos que está certo o que leste. Quantas famílias vivem nos campos, em abrigos?»
«Há cerca de dois milhares só nos Estados Unidos. Na Europa há poucos.»
«Já pensaste que existe uma probabilidade razoavelmente alta de muitos deles virem a sobreviver?»
Enrugou a testa.
«Esses indivíduos não vivem permanentemente nos abrigos. Andam à volta deles, como abelhas junto das colmeias, a transportar víveres e água, e também a dar tiros para o ar como os cowboys. Sabes que eles receiam o caos e treinam-se a atirar. Têm que estar preparados para receberem a tiro as hordas famintas do pós apocalipse, oriundas dos grandes centros. E assim andam sempre ao ar livre. De certeza que também vão ser contaminados. Quem sabe se pensaram tratar-se de uma guerra bacteriológica quando ouviram as mesmas notícias que nós ouvimos. Não há aviso prévio para o começo dessas guerras. Pensaram-no e resolveram da melhor maneira. A epidemia começou a alastrar e entretanto eles já estavam em segurança. A rádio e a televisão deixaram de emitir sem que fosse posta a verdade e os sobrevivalistas, que pensaram tratar-se de uma epidemia, ficaram de quarentena nos seus abrigos. Só que o mal era outro: resultado da contaminação das células pelas radiações, tal como aconteceu em Hiroxima e Nagasaqui. Ao fim de dois ou três meses já estavam cá fora...»
Entrei na conversa.
«Não é bem assim, Tomás. Há sempre uma notícia que escapa ao filtro da censura.»
«Talvez tenhas razão e então o período de quarentena pode ter-se alargado por mais alguns meses. Só saberemos quando sairmos. É um perigo com que temos que contar. Vão todos andar para aí aos tiros por causa de uma lata de feijão ou de um litro de gasolina.»
«Está a chover.» Disse Pedro.
«O quê?!...»
Eu e Tomás levantámo-nos, atónitos.
«Não me digas que foste até lá fora!»
«Digo que está a chover.»
«Perdeste a cabeça e foste lá fora? Depois de todos as avisos que foram dados?»
«Ainda não disse que fui até lá fora. Apeteceu-me apenas fazer uma previsão. Que eu saiba isso não é perigoso.»
«És um estúpido!» exclamou a Mafalda, aliviada.
«Olha, vamos jogar uma partida de “passarinhos”?»
«Estás-te a passar, Pedro?»
De certa maneira, sem darmos conta, estávamos todos a passar-nos.
Calaram-se e pus-me a pensar. Quando chegasse a altura de sairmos do abrigo, não descansava enquanto não encontrasse sobreviventes. Aos tiros ou não. Também contara com essa eventualidade e até havia um pequeno arsenal de armas e munições.
«Que vais fazer quando voltarmos à superfície? Continuas com a ideia fixa de ir para o Observatório?»
«É muito natural que o faça. Sempre tive a paixão pelas estrelas. Os grandes enigmas do cosmos atraem-me. Não gostavam de saber como as estrelas nasceram, como são constituídas, como evoluem e como morrem? Quem tem implantado o bichinho dos astros nunca mais se cura. Vou voltar ao meu trabalho, claro que dentro de muitas limitações.»
«Provavelmente espera-te um trabalho solitário. A quem vais transmitir as descobertas que entretanto fizeres? Penso que há outras coisas mais importantes do que observar as estrelas e descobrir uma supernova, por exemplo.»
«É uma opção. E tu?»
«Acho que numa primeira fase temos que viver nos campos. Será o tempo de experimentar as sementes. Esperar pelo milagre da germinação. Isso é crucial. O nosso futuro depende da vida vegetal e a nossa sobrevivência está nas primeiras colheitas. Sem a germinação concretizada não podes ver as estrelas, meu caro Tomás.»
«O que é importante para ti não o é para mim. Aliás não acredito que haja futuro. Não há hipótese de sobrevivermos por muito tempo. Estamos condenados. É só uma questão de tempo. Bem sei que temos uma grande quantidade de sementes na despensa. Mas quem te diz que as plantas vão reproduzir-se na primeira geração e também nas seguintes? E as mutações? Os insetos, sim, esses têm mais hipóteses de sobreviver. Olha, aposto mais nas proteínas dos insetos.»
«Também é uma hipótese a ter em conta. Até alguns mamíferos podem resistir a níveis bastantes altos de radiação. Há ratos que sofreram mutações em zonas contaminadas por bombas nucleares e parece que estavam a resistir. Em última análise a Terra será dos mutantes. Novas gerações sofrerão alterações genéticas e continuarão a garantir a continuação da vida. Será fascinante...»
«Será fascinante o aparecimento de monstros».
«Ou de um super-homem que guiará os destinos da Terra.»
«Influências da banda desenhada. O teu entusiasmo desconcerta qualquer agnóstico, mas não me contagia, Mário. Quanto a mim não haverá mutantes, nem haverá nada. Se o cataclismo no Sol é da amplitude que foi prevista pelos teus amigos do espaço, então não há nada a fazer. Enquanto for tempo vou continuar a sonhar com as estrelas. É a satisfação do último desejo de um condenado à morte.»
«Respeito a tua opção. Não vou exigir sacrifícios a ninguém. Mas enquanto estivermos cá dentro de quarentena também não podes impedir-me de tentar convencer as pessoas a continuarem unidas. E, quer queiras, quer não, a primeira coisa que vamos fazer é experimentar a grande variedade de sementes que adquiri antes de virmos para o abrigo. Começamos por tentar com duas ou três espécies. Por exemplo, batatas, feijões e grão.»
«E vai germinar alguma coisa?»
«Talvez que nos primeiros tempos os terrenos não recebam as sementes. Mas não vamos desistir logo à primeira.»

Aquilo apareceu de repente. Teve um momento de distração que lhe valeu largar o prato que limpava. Tomás, que lavava a loiça, virou-se a tempo de ver Pedro olhar, estupefacto, os fragmentos do prato espalhados pelo chão.
«Muito curioso.» Foi o comentário do Pedro.
«Que disseste?»
Não respondeu. Enquanto procurava a vassoura, ia falando, entre dentes. O Tomás encolheu os ombros e voltou à tarefa interrompida. O outro cogitava, irritado.
«Estou arrependido.»
«De quê?»
«Não sei bem. É uma sensação estranha que nunca tive antes e que nada tem a ver com o prato que parti. Mais prato menos prato. Não. É aquilo.»
«Não percebo.»
«A angústia. Uma vontade enorme de estoirar com qualquer coisa. O prato, por exemplo. Não era bem a minha vontade. Um prato não tem culpa porque é qualquer coisa inerte. Só matéria. Com peso, com forma. Não interessava. Mas aquilo instalou-se, sem cerimónia, dentro de mim. Os companheiros do abrigo ainda têm um fim a atingir. Eu não. Já atingi o fim da linha.»
«Não digas isso!»
«Tens amigos aqui, Tomás?»
«Claro. E tu és um eles.»
«Amigos? Talvez não. Autossuficientes e orgulhosos. Põem-me à margem, bem sei. Estou a mais. Sem a presença do Gaspar sinto-me um empecilho. Esse sim, foi verdadeiramente um amigo. Nem o Mário, nem a lembrança dos tempos antigos dos ideais. Quando nos tratávamos por camaradas nessa altura, sim, havia verdadeira amizade. Unia-nos a mesma bandeira. Que aconteceu entretanto ao Mário? Chorou lágrimas de crocodilo quando soube que o Gaspar ficara detido pela bófia e esqueceu logo o amigo. Chefia agora um grupo aniquilado, sem esperança no amanhã. Estamos antecipadamente destruídos. É uma clausura inglória. Meia dúzia de sobreviventes deixando o tempo correr até que chegue o dia. Fingimos pensar no amanhã quando já estamos no amanhã.»
Oh!, a angústia. O aperto das paredes daquele abrigo, que pareciam aproximar-se, vindas do teto e dos lados. A náusea. Sentia aproximar-se a náusea.
Olhou para o Tomás. Vomitava náusea e não tinha consciência. Os pratos pareciam rir-se dele. Sim. Eram os culpados. Culpados de quê? Culpado era ele. Fugiu e deixou Gaspar entregue a um destino implacável. Talvez tivesse sido mais feliz se não fugisse. Ou não? Para ambos estava destinada uma agonia lenta. Questão de dias ou de meses. Pois. Não aguentava mais. Queria gritar. Os pratos riam-se. As paredes riam-se. Não suportava a pressão. Nem a cara do Tomás.
Abandonou a cozinha e deixou o astrónomo apreensivo.
«Que se passa com ele?» perguntou aos seus botões. «Tenho que contar isto ao Mário...»

Entrou no quarto. Curioso. Sabia-lhe a amargo e, ao mesmo tempo, havia cheiros agradáveis. Olhou em volta. Estava de novo entre quatro paredes. A luz artificial era horrível. O betão também. Havia algo que o esmagava. Sentiu um aperto no peito. Aquilo ainda estava com ele. Chamava-lhe a visita. Já não era a primeira vez. Via-a envolta num manto negro. Sem rosto.
Lembrou-se então. Procurou no armário. Lá estava. Acariciou a arma.
Teria balas?
Estava uma na câmara. Era fácil. Um só disparo e pronto. Podia disparar quando quisesse.
Teve uma hesitação. Mas quem era a pessoa visada? Sentia dificuldade em descobrir. O espírito nublava-se. A memória faltava. Desconhecia para quem se destinavam as balas.
Sorriu com sarcasmo. Felizes os últimos a saberem.
Voltou a sorrir. Lá fora, as pessoas vacilavam e caíam mortas. Nas ruas, no chão das casas, sobre as camas. Davam um último passo e caiam, agonizantes.
Para quem eram as balas?, para o Mário?
Odiava-o porque sabia o que queria e apossava-se de tudo e de todos. Odiava também os outros. Mas ele era o culpado. Trouxera-os para uma prisão dourada em que não faltavam sequer as festas, os discursos e a merda da música. Aí esperava-os a agonia lenta e torturante. Estavam na antecâmara da morte.
Misteriosamente, tal como tinha aparecido, aquilo deixou de lhe apertar o peito e escapou-se como um polvo que abandonou a presa face ao perigo iminente de ser apanhado, deixando, no entanto, à sua volta uma mancha de tinta de forma a não denunciar o seu esconderijo. Assim, poderia voltar em segurança e atacar de novo. Quantas vezes fossem necessárias até chegar o momento ideal.
Aos poucos, foi sentindo que o ânimo voltava. Era preciso ser forte para poder resistir à enorme pressão que lhe esmagava o peito. Se ao menos conhecesse o seu inimigo. Se ao menos tivesse um indício. Mas não. A ansiedade que lhe amordaçava a razão, embora estivesse mais atenuada, continuava latente, com promessas de regresso.
Olhou para a pistola. Continuava na gaveta aberta, mas já não o tentava. Era uma vulgar pistola de nove milímetros de calibre, pronta a disparar.
O convite já não o seduzia. Fechou a gaveta.

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