Início nesta "mensagem" de um romance
de ficção científica que vem dos anos oitenta.
Desta vez não ia ao café Santiago. Tinha combinado com uma amiga tomar a bica noutro café, lá para os lados da avenida principal da cidade. Consultei o relógio. Ainda tinha tempo. Abrandei o passo e nesse mesmo momento, por coincidência ou não (quando vai acontecer qualquer coisa fora do normal é de admitir duas hipóteses: obra do acaso ou premeditação) , olhei para o outro lado do passeio que contornava o jardim. O olhar cruzou-se com uma mulher vestida de negro. Chamou-me a atenção o cabelo curto, castanho, já para não falar na t-shirt preta, sem qualquer adorno, e na saia curta, também preta. Não sei se foi a intensidade do olhar, mas notei um certo interesse na mulher em mim. Desviei o olhar e continuei em frente com a marcha já lenta. Não gostava de esperar nem de fazer esperar. Olhei outra vez para o lado. Ela estava parada e de olhar fixo na minha direção. Encolhi os ombros. Sabia a idade que tinha. Mas era estranho aquilo que classifiquei de fixação. Talvez fosse alguma antiga aluna.
Pouco depois estava no café. Fiquei indeciso entre sentar-me ou não. Não conhecia o café, portanto não sabia se o serviço era ao balcão ou iam às mesas. Estava nesta indecisão pouco metafísica, quando, felizmente, a minha amiga chegou.
«Parece que combinámos...»
«Pois foi.»
Afinal o serviço era ao balcão. Para mim uma bica e para ela um descafeínado.
«Olha, aconteceu-me há pouco uma coisa estranha!»
«Para variar, não é?»
«Lá estás tu. Quer tu acredites ou não, há poucos minutos fiquei com a impressão que tinha dois rostos.»
«Não me digas, Mário! Meu amigo, nem parece teu. Uma pessoa como tu ser atravessada por dúvidas dessas. Bebeste alguns púcaros ao almoço?»
«Vi logo que ias gozar. Claro que tudo não passa de uma hipótese. Nunca mais vou ver essa mulher e fico na dúvida se me conhecia ou não, ou se me viu com a outra cara.»
«Mas conta mais.»
«É só isto. Já gozaste tudo o que tinhas a gozar.»
«Pois foi.»
Afinal o serviço era ao balcão. Para mim uma bica e para ela um descafeínado.
«Olha, aconteceu-me há pouco uma coisa estranha!»
«Para variar, não é?»
«Lá estás tu. Quer tu acredites ou não, há poucos minutos fiquei com a impressão que tinha dois rostos.»
«Não me digas, Mário! Meu amigo, nem parece teu. Uma pessoa como tu ser atravessada por dúvidas dessas. Bebeste alguns púcaros ao almoço?»
«Vi logo que ias gozar. Claro que tudo não passa de uma hipótese. Nunca mais vou ver essa mulher e fico na dúvida se me conhecia ou não, ou se me viu com a outra cara.»
«Mas conta mais.»
«É só isto. Já gozaste tudo o que tinhas a gozar.»
«Não te abespinhes porque ficas mais velho.»
«É precisamente sobre isso. Duas idades. Mas goza à tua vontade.»
Claro que fui gozado, mesmo depois de afirmar que sabia ver-me ao espelho. Aquele caso serviu de lançamento para o tema do insólito, tão do meu agrado e que tanto a contrariava. Mesmo assim, e já estou habituado a reviravoltas deste tipo, também me contou um caso passado com ela numa casa, à entrada de Óbidos. Adiante. Fez-se tarde e tive que voltar para casa, fazendo o percurso inverso ao que me levara àquele café. Agora deslocava-me do lado esquerdo e tinha o jardim à minha direita.
«Mário!»
Era comigo?
Quem me chamava era a dita mulher vestida de preto. Olhei para os lados, não fosse haver um segundo Mário por perto. Às vezes acontecia. Mas não. Era mesmo comigo. Fiquei para morrer. Atravessei a estrada fora da passadeira e tive que dar uma corrida para não ser apanhado por um carro. Ficámos frente. Ela sorriu e eu continuei sério.
«Não te lembras de mim?»
Mirei-a da cabeça aos pés. Se estivesse ali a Odete, antiga colega de escola, dizia logo que estava a despir aquela mulher com os olhos.
«Desculpe...»
«Olha bem para mim.»
«Estou a olhar para si.»
Situação delicada. Tínhamos cerca de trinta anos de diferença de idades e ela conhecia-me e eu não. Tratava-me por tu. E se fosse a...? Não. Não era a Maria. Essa soltou os cabelos ao vento e escolheu a estrada do êxito profissional. Ao mesmo tempo, ficou invisível, conforma a previsão que fiz. Não podia queixar-me.
«Que te aconteceu? Estás zangado comigo e por esse motivo finges que não me conheces?»
«Continuo a não lembrar-me de si, acredite.»
«Tens toda a razão. Fui-me embora sem sequer um adeus e mereço ser castigada. Mas já paguei o meu erro.»
«Sim?»
Foi o que consegui dizer, ao mesmo que fazia um esforço enorme para lembrar-me de algum indício.
«Pelo que estou a ver também te foste embora de F... e não era previsível que acontecesse num intervalo de tempo tão curto!»
Os longos dias azuis passados em F... nunca se apagariam da minha memória, mas tinha sido há muito tempo. Certamente nem o snack já existia.
«Vá lá, sorri para mim..»
Que motivo tinha para sorrir a uma desconhecida só porque ela tinha olhos claros, de cor indefinida?
Azuis, verdes, cinzentos. Da cor do mar.
Claro que fui gozado, mesmo depois de afirmar que sabia ver-me ao espelho. Aquele caso serviu de lançamento para o tema do insólito, tão do meu agrado e que tanto a contrariava. Mesmo assim, e já estou habituado a reviravoltas deste tipo, também me contou um caso passado com ela numa casa, à entrada de Óbidos. Adiante. Fez-se tarde e tive que voltar para casa, fazendo o percurso inverso ao que me levara àquele café. Agora deslocava-me do lado esquerdo e tinha o jardim à minha direita.
«Mário!»
Era comigo?
Quem me chamava era a dita mulher vestida de preto. Olhei para os lados, não fosse haver um segundo Mário por perto. Às vezes acontecia. Mas não. Era mesmo comigo. Fiquei para morrer. Atravessei a estrada fora da passadeira e tive que dar uma corrida para não ser apanhado por um carro. Ficámos frente. Ela sorriu e eu continuei sério.
«Não te lembras de mim?»
Mirei-a da cabeça aos pés. Se estivesse ali a Odete, antiga colega de escola, dizia logo que estava a despir aquela mulher com os olhos.
«Desculpe...»
«Olha bem para mim.»
«Estou a olhar para si.»
Situação delicada. Tínhamos cerca de trinta anos de diferença de idades e ela conhecia-me e eu não. Tratava-me por tu. E se fosse a...? Não. Não era a Maria. Essa soltou os cabelos ao vento e escolheu a estrada do êxito profissional. Ao mesmo tempo, ficou invisível, conforma a previsão que fiz. Não podia queixar-me.
«Que te aconteceu? Estás zangado comigo e por esse motivo finges que não me conheces?»
«Continuo a não lembrar-me de si, acredite.»
«Tens toda a razão. Fui-me embora sem sequer um adeus e mereço ser castigada. Mas já paguei o meu erro.»
«Sim?»
Foi o que consegui dizer, ao mesmo que fazia um esforço enorme para lembrar-me de algum indício.
«Pelo que estou a ver também te foste embora de F... e não era previsível que acontecesse num intervalo de tempo tão curto!»
Os longos dias azuis passados em F... nunca se apagariam da minha memória, mas tinha sido há muito tempo. Certamente nem o snack já existia.
«Vá lá, sorri para mim..»
Que motivo tinha para sorrir a uma desconhecida só porque ela tinha olhos claros, de cor indefinida?
Azuis, verdes, cinzentos. Da cor do mar.
Déjà vu!
«Ao menos dá-me um beijo! Quebra esse gelo, querido.»
«Ao menos dá-me um beijo! Quebra esse gelo, querido.»
Querido?
«Mas...»
Já ela me abraçava e beijava. Sentia-me cada vez mais confuso.
«Então... gostaste?»
Aquele sabor do beijo era inconfundível. Nem o correr do tempo tinha apagado.
«És a Patrícia.» Sussurrei.
«Ah bom, já dizes o meu nome. Meio caminho andado.»
«Mas...»
Já ela me abraçava e beijava. Sentia-me cada vez mais confuso.
«Então... gostaste?»
Aquele sabor do beijo era inconfundível. Nem o correr do tempo tinha apagado.
«És a Patrícia.» Sussurrei.
«Ah bom, já dizes o meu nome. Meio caminho andado.»
«Desculpe se falei alto. O seu beijo fez-me lembrar alguém. Mais nada. Ela chamava-se Patrícia e conheci-a há muito tempo.»
«Mário... estás a dramatizar? Basta de vinganças. Pronto, eu peço perdão pelo que fiz. E até confesso que fiquei arrependida e tentei remediar o erro. Passei ontem pelo snack e não te vi. Onde andavas?»
Que se passava?
«Era o teu refúgio habitual depois do toque à ordem no quartel. Ficávamos, frente a frente, de olhos nos olhos, sem dizer uma palavra. Queria adivinhar os teus pensamentos, mas não conseguia. Era na Manuela que pensavas, não era?»
«A Manuela...»
Senti as mãos húmidas e procurei o lenço nos bolsos.
«Que cara é essa, Mário?»
Não tive tempo de responder. De repente, em vez de se fazer mais luz na memória, senti tudo escuro à minha volta.
Levantei-me como um autómato. Sentia-me atraído por aquela coisa. Olhei para o meu lado direito. Os outros queriam falar, mas a voz não saía. Os braços estavam tensos, sobre a mesa, e as pernas soldadas ao chão. Apenas dava-me a ideia que sabiam da existência daquilo. Sim, existia. Provavelmente, como acontecia comigo, penetrava neles como uma broca silenciosa, ou mil brocas, de descoberta em descoberta. Sentiam-se indefesos e esvaziados de qualquer pensamento reativo. Tinha a certeza que estavam à mercê daquilo. Não sentia medo perante aquela situação insólita. Havia na noite qualquer coisa nova que me aguçava a curiosidade e levava para longe o medo. Apenas aguardava um sinal, um indício vindo do globo luminoso, enorme, que zumbia e rodava em torno de si próprio. Um fio invisível tentava estabelecer contacto. Queria entender. Por isso mostrava-me cada vez mais recetivo. Quantas vezes sonhara com aquele momento! Deixava a imaginação fluir e, aos poucos, ia compondo o puzzle de peças espalhadas ao acaso. Mas ainda não dava certo. Faltavam elementos importantes. Então, voltava a misturar as peças e recomeçava. O ato de imaginar de novo cada vez mais tomava os contornos de premonição. Teria mesmo que acontecer, mais tarde ou mais cedo. Pressentia. Mais um agrupamento das peças e tinha a meus pés o momento sonhado.
Um foco desceu do globo e iluminou o chão. Pareceu-me que era o sinal combinado. Aproximei-me, lentamente, do foco. Os meus amigos certamente adivinharam a intenção. Impotentes, continuavam como simples observadores. Sorri para eles, tranquilo.
«Não tenham receio.»
Tentaram chamar-me, mas nenhuma voz saiu, nenhuma perna se moveu. O círculo luminoso formado pelo foco tornou-se mais intenso quando o pisei. Levantei mais a cabeça, indiferente à intensidade do foco. E nesse instante o globo aumentou a velocidade de rotação e ensaiou um espetáculo de cores e som que me atraíram ainda mais. Os zumbidos tinham cessado e sido substituídos por novos sons, harmónicos, talvez de saudação. Era o sinal, pressenti. O momento esperado.
Olhando para o globo, levantei os braços e elevei-me, de imediato, ao longo do foco, como um deus que envolve a eternidade num abraço. Depois, desapareci da vista dos meus amigos, não sem antes tomar consciência que o espetáculo de cores e magia tinha subido de intensidade e os zumbidos estavam de volta. O momento seguinte deve ter sido só para as testemunhas imobilizadas, completamente inertes, impotentes para reagirem. Então o globo começou a rodar mais lentamente, como um pião nas últimas rotações, mas sem estar em desequilíbrio. Novo momento. Fez-se silêncio e a escuridão voltou. O pesadelo tinha acabado. A noite encheu-se de novo.
Caía vertiginosamente num poço escuro. A queda era alucinante e parecia não ter fim. O meu corpo ondulava em função da velocidade alcançada. Estive assim uma eternidade (o tempo era incontrolável). Aos poucos, fui desacelerando e quase que flutuava. Desta vez pareceu ser um momento. Senti-me de novo lançado no vazio. Cada vez mais depressa. Asfixiava. A queda no abismo não tinha fim. Mergulhava no desconhecido numa queda livre inevitável. Queria parar, mas continuava a cair. Sempre a cair. No poço escuro e silencioso. Vazio. Aquilo era um pesadelo. Uma sensação de náusea que nascia nas entranhas. Um vómito. Um vómito horrível. Vomitava as tripas. Uma corda que puxava do interior da boca e que não tinha fim. Era uma sensação desagradável, mas senti que a corda travava a queda. Talvez fosse a solução. Continuar a puxar a corda. Cada vez mais depressa. Era isso. A velocidade abrandava. Mas onde estava o fundo do abismo? Só via escuridão à sua volta. Ah!, a náusea! De novo a náusea. Intolerável. A corda já não saía. Não havia mais corda. Quis gritar. O som morreu à saída da boca. O som não existia. Nem a boca. Talvez nem eu...
Agora flutuava. Via, em baixo, o fundo. Perto. Negro. O fundo era ali. Tinha a certeza de flutuar em rotação lenta. Flutuava, finalmente. Um vento frio soprava-me no rosto. Não. Não tinha rosto. As mãos não encontravam o rosto. Onde estavam as mãos? E o rosto era uma massa informe depois de embater no vazio e estacar. Finalmente acabava o pesadelo. Tentei sentir o corpo. Nada encontrei. Era só alma, ou isso de alma. Mas... Sim. Já podia controlar os movimentos, planar, ou descer. Descer para lá do fundo, lentamente, até focar. Era isso, focava entre a bruma e podia ver imagens. Nítidas. Uma a seguir à outra. Como num filme. Mas não as pude recordar. Todas as imagens mais antigas tinham sido bloqueadas. Só as recentes.
Sem saber como, comecei a assistir à reação do Pedro e do Gaspar depois de terem perdido o contacto comigo...
Olharam um para o outro. Podiam beliscar-se, já que pareciam duvidar da sua existência. Mas esses momentos tinham acontecido. As imagens não se desvaneciam. Ganhavam força. Saltavam para fora, projetando-se em repetições sucessivas. Sentiam-se suspensos entre o sonho e a realidade.
Olharam em volta. A esplanada continuava deserta. Tinham visto o globo. Logo a seguir foi a inação. O torpor. A mordaça. Ficaram agarrados às cadeiras. E foram assistindo a tudo, até que o globo desapareceu como se tivesse tocado por uma varinha de condão. Mário já não estava com eles.
Passavam férias naquela vila e ninguém os conhecia. Não havia problema. Podiam ignorar. Pôr uma pedra. Talvez...
Pedro olhou para o amigo.
Onde queria ele chegar?
Não podiam pôr uma pedra sobre o túmulo do Mário, simplesmente porque não havia túmulo e era impossível chegarem à conclusão que nada tinha acontecido. Os amigos iam perguntar. Depois as autoridades seriam alertadas por uma possível denúncia. E nada podiam dizer de esclarecedor. Segundo os cânones da lógica, o amigo não podia desaparecer, assim, sem mais nem menos, levado, e de livre vontade, por seres extraterrestres. Não era coisa natural de acontecer. Sem dúvida que não. Mais fácil seria acreditar na história da carochinha. Tinham que ser racionais e encontrar uma história mais consistente. Além do mais, o Mário não merecia o silêncio proposto pelo Gaspar. Era um grande amigo, do peito. Um camarada dos tempos heroicos que nunca foram esquecidos. Para a vida e para a morte.
O medo continuou a falar pela boca do Gaspar. O amigo seria mais um dos milhares de pessoas que desapareciam todos os anos como o fumo se desvanece. Não podiam arriscar-se a comunicar o desaparecimento do Mário, pois, ao fazê-lo, tornavam-se suspeitos. Aliás, pouco ou nada sabiam. O amigo elevou-se no ar, como um deus, ou a caminho de Deus, e eles tinham ficado amarrados às cadeiras, incapazes de reagir.
O zumbido deixou de ouvir-se. O Mário desapareceu sem deixar rasto. Perdeu-se no negrume da noite, nas mãos de seres que eles nem sequer tinham detetado. Perdeu-se rumo ao desconhecido e transformou-se num viajante acidental das estrelas, atravessando galáxias e fugindo, talvez de fantasmas do passado, ou dele próprio.
Não, não havia pistas. E para as autoridades seria mais um processo levantado depois de alguns dias de ausência no emprego. Na ausência natural de dados ou indícios o mesmo processo seria automaticamente arquivado.
«Nem uma palavra? Esquecermos assim cobardemente o nosso amigo dos tempos heroicos?»
«Falhados, Pedro. Não te esqueças. Tempos falhados.»
«Nunca lhe perdoaste. Sabes bem que a culpa não foi só dele. Mas não interessa discutir assuntos enterrados há muito. Além do mais, estás a esquecer-te de uma coisa importante.»
«De quê?» perguntou o Gaspar.
«A Mafalda sabe que viemos para cá. Vai revolver montes e vales para o encontrar. Podemos ficar em maus lençóis se não lhe contarrmos a verdade.»
Gaspar insistiu. Faziam as malas e saíam dali. Quanto mais depressa melhor. Ninguém viu. A esplanada estava deserta quando aquela coisa estranha apareceu e levou o Mário. Foram as únicas testemunhas. E depois a polícia ia apertar com eles. Os processos eram levantados e corriam grandes riscos de serem engavetados.
«Reparaste como ele bebeu esta noite?»
«Bebemos os três bem. Não foi só ele, porra!»
«Mas ele ainda bebeu mais do que nós!» teimou.
Estavam de pé e interrogavam-se. Fora tudo muito estranho. Se não tivessem ficado grudados às cadeiras e visto com os próprios olhos o que se passou, dir-se-ia que tinham sonhado. Mas era verdade. O globo, enorme, suspenso entre os prédios, sobre o meio da rua...
«Pois é. Queria suster o Mário mas não conseguia. Havia qualquer coisa que me controlava e que parecia vir de cá dentro. Não aconteceu o mesmo contigo, Gaspar?»
«Sim. O cérebro não mandava no corpo. Foi mesmo como disseste.»
Tinham-se aproximado do sítio onde o Mário desapareceu. Pedro aspirou uma grande lufada de ar. O globo não deixara qualquer cheiro.
«Uma coisa é certa.» Disse o Pedro.
«Sim?»
«Nós vimos. Aquilo era um ovni. E o Mário partiu com eles. Já não está aqui connosco. Nunca mais o veremos.»
Gaspar sorriu. Nunca acreditara nas histórias de ovnis. Já ouvira falar muito de casos incríveis em que raptavam pessoas. Raptavam. O sorriso ficou em meio.
Que outra coisa podia ter sido?
Afastaram-se do local pela estrada em frente à esplanada e percorreram alguns metros, até estacarem junto ao gradeamento do viaduto. O Pedro, por sua vez, era menos cético. Já tinha lido alguns livros sobre desaparições misteriosas de pessoas. Lembrava-se de um caso ocorrido há alguns anos atrás em que uma família inteira se volatilizara no ar, pura e simplesmente. Tinham ido dar um passeio até ao campo e nunca mais regressaram. O carro foi encontrado aberto. À frente, havia pegadas de três pessoas marcadas no terreno arenoso. Depois, mais nada. As marcas interrompiam-se bruscamente. Não havia precipícios ou buracos e o terreno não era acidentado. Dava a impressão que, alguém vindo do ar, os tinha levado inesperadamente. Nunca mais apareceram. Nem uma peça de roupa, nem um brinquedo de criança. O carro não apresentava sinais de fogo. Apenas estava aberto e vazio.
Este caso tinha-o impressionado muito. Quem seriam os raptores? Navegantes das estrelas, vindos de galáxias longínquas e que dominavam o espaço e o tempo?
Acho que estou amnésico. Nem sei como me chamo. Aconteceu-me qualquer coisa de grave. Penso e não consigo falar. Ou então não me oiço. Porquê, não sei. Talvez a amnésia seja temporária.
Tento encaixar-me no esquema. Não interessa falar. Mas o som só não se propaga através do vazio. Disparate! Tem que haver oxigénio. Pelo menos. Ah!, lembro-me de temas básicos da Física. Parece que a memória está a voltar...
Vejamos a velocidade da luz. Trezentos mil quilómetros por segundo. A Terra é o meu planeta. E há mais planetas do mesmo grupo da Terra. Júpiter podia ter sido uma estrela te tivesse mais massa.
Afinal não estou de todo amnésico. E também me lembro da noite em que fomos curtir a embriaguez para a esplanada.
Finalmente rasgou-se a parede em frente e entrou uma mulher. Acreditei que mais respostas iam aparecer. Ergui-me e encostei o occipital à parede. Não perdia de vista a mulher que tinha na frente. As feições do rosto eram normais e vestia como eu. O tecido que se cingia ao corpo era azul. Ela aproximou-se mais. Os olhos eram azuis-esverdeados.
«Curioso...»
A mulher sorriu.
«Os meus olhos dizem-te alguma coisa?»
Olhei-a, admirado. Não moveu os lábios mas tinha-a ouvido. Como se a voz estivesse sempre dentro de mim. Ao mesmo tempo, pareceu que ela descobriu o fio dos meus pensamentos.
«Onde estou?»
Podia falar sem que os lábios se movessem. Ela voltou a sorriu.
«Morri?»
«Claro que não. Estás numa nave. No espaço. Longe da Terra.»
Adeus, Terra. Adeus companheiros dos tempos gloriosos que nunca mais vos vejo. Adeus, vida. Não morri mas, se calhar, é pior do que se tivesse morrido.
«Quem me sequestrou?»
«Vieste por tua livre vontade. Desejaste, compreendes?»
Quando era criança e via uma estrela cadente formulava logo um desejo. Diziam que esse desejo era realizado. Nem que demorassem muitos anos. Crendices. Como aquela de apontar o indicador para as estrelas. Fazia, verrugas, diziam.
«E tu...?»
Não foi preciso completar a frase.
«Quem sou? É difícil explicar.»
«E para mim, difícil de compreender. Quando uma pessoa diz que não sabe quem é, das duas, uma: ou sofre de amnésia, ou não quer mesmo explicar.»
«Digamos que sou também a concretização de um sonho...»
«Um sonho?»
«Sim.»
«Um sonho de quem?»
«Teu. Um sonho que viveste há muito tempo. Em grande parte, é por mim que estás aqui.»
«Por ti? Mas afinal quem és tu?»
A mulher aproximou-se mais. Tinha qualquer coisa no olhar que me acalmava. Um olhar sereno.
«Olha bem para mim. Não te recordas...?»
«Não. Por acaso já vivemos uma vida a dois?»
«É verdade. Eu já vivi contigo. Há muitos anos. Um dia parti e tu ficaste. Não te recordas. É natural. Foste submetido a um exame complexo e demorado.»
«Que me fizeram? Só me lembro da noite de ontem, se é que foi ontem.»
«Digamos que descodificaram a tua a memória.»
«E agora sou um Alzheimer.»
«Alzheimer?»
«Perdi a memória.»
«Temporariamente. Mas vais recordar-te de tudo. Aos poucos. Tem paciência.»
Fiquei apreensivo. Não era nada agradável não me lembrar sequer do nome. Oxalá se concretizasse a informação que ela estava a tentar transmitir-me.
«Não te preocupes, Mário.»
Mário. Pelos menos já sei como me chamo.
«Vais recordar em breve quem és.»
«Vou acreditar em ti. Mas uma coisa: disseste há pouco a palavra "descodificaram". Então não tens nada a ver com o rapto.»
«A seu tempo saberás como aconteceu e talvez a razão porque foste escolhido.»
«A escolha foi provocada por um desejo que tive?»
«Muitos também desejaram e não foram escolhidos.»
«Então em que ficamos?»
«É complicado. Agora, concentra-te. Olha bem para mim.»
«Estou a olhar.»
Os olhos dela cresciam, cresciam. Verdes, azuis, cinzentos. Que parvoíce. Bailava na minha mente a frase "da cor do mar", mas não era de todo descabida. Os seus olhos faziam lembrar a cor do mar.
Quem era aquela mulher?
Os cabelos estavam escondidos por uma espécie de toca. O olhar parecia doce, expressivo.
«Já volto. Fica bem.»
Encaminhou-se para o sítio por onde entrou e a parede voltou a rasgar-se. Já do outro lado, sorriu. Depois, a parede fechou-se e deixei de a ver.
Voltou pouco depois.
«Agora os dias são mais longos...»
Ela sorriu mais uma vez. E eu sorri, como resposta.
«Lembras-te?»
Esfreguei os olhos. Não queria acreditar. De repente, ela lembrava-me uma mulher que, um dia, cansou-se de mim e dos meus fantasmas e partiu. Sem uma palavra. Sem um adeus.
«É a segunda vez que me acontece. Lembro-me, sim. Mas foi diferente. Ela estava vestida de preto. Não a reconheci pelo rosto.»
«Estás a sorrir, porquê?»
«Foi o beijo que me deu.»
Os carros da tropa já não passavam e as mulheres tinham-se afastado da praia, com os tabuleiros vazias, à cabeça. Só então dei conta de que o muro não era branco. Cinzento. Pormenor que me tinha passado despercebido até então. Olhei em frente. O mar estava calmo. Cinzento-escuro, também. Sem ondulação. A água devia estar muito fria. Afastei-me, sem pressas, ao longo do muro que separava a estrada da praia. De momentos a momentos os faróis de um automóvel iluminavam a estrada, emprestando-me breves sinais de orientação. Escurecera de repente. Caminhava indeciso, sem saber onde chegar. Para trás iam ficando monstros da noite, que não eram mais do que objetos conhecidos. Sentia-me perdido, sem saber que decisão tomar.
Recuando mais no tempo...
«O senhor está só.»
Aquela tarde do cinema jamais a ia esquecer. Ao regressar a casa, encontrei-me com um corpo frio e inteiriçado nos braços. A única meta que podia ter atingido também me foi negada. Manuela chegou ao limite inferior da felicidade. Viu a solução ideal junto ao fogão de gás, abrindo todos os bicos e respirando uma mistura de propano-butano. E mais nada. Nem uma carta a explicar o porquê daquela atitude levada ao extremo. Nem um simples adeus. Supunha que Manuela tinha tudo. Mas a mulher ingénua que encontrei um dia, por acaso, como fortuitos são sempre os primeiros encontros, e fiz minha amante, não era uma mulher vulgar. Queria-me todo. Em carne e espírito. Mas eu pertencia ao universo. Era um sonhador, um utopista. Foi uma solução prática. Resolveu da melhor maneira o seu problema. Agora era livre. Totalmente do universo e um pouco de outras mulheres que passariam na minha vida.
Passei pelo snack sem me deter. Só as luzes do balcão estavam acesas. Na mesa do costume, um vulto de mulher, talvez duas chávenas de café, talvez um copo meio de água, talvez nada. O copo já não roda. As mesas continuam vazias. Ao fundo, a máquina de discos, silenciosa. O balcão circular com bancos esguios em todo o percurso. Lá fora o ar está carregado de ozono. É sinal de trovoada. As gaivotas já não descem junto ao mar, em voo picado. Não há snack mergulhado no torpor duma tarde abafada de maio, tão característica de F... como, também, convidando à indolência. Há só noite. Noite que caiu sobre a cidade.
Quem é Patrícia? Quem sou eu?
Anoiteceu outra vez. Estou sentado na mesa do costume. Num instante, a bica e o copo chegam à mesa. Agradeço ao empregado. Está tudo igual. O snack quase vazio. O silêncio. O balcão. Os bancos altos, giratórios. O mar lá fora, calmo, como um lago. A máquina de discos, esquecida, ao fundo. Inevitavelmente, a cadeira na minha frente. Vazia. Como a noite. Vazia e longa. Sei disso. Há muito que sei do desencantamento de Patrícia. Um dia cansou-se de mim e partiu também sem um adeus. Sem uma palavra. E eu venho todos os dias aqui, onde fico, à espera, olhando a cadeira em frente que teima em ficar vazia. Como vazia é a minha vida. Acabou-se tudo, embora Patrícia ainda exista, hipoteticamente sentada naquela cadeira vazia. É a noite longa, refletida na dupla ausência de Manuela e Patrícia. A Manuela já não pode voltar, mas sei que virão outras Patrícias, de olhos da cor do mar, ou talvez castanhos, para se entregarem na cama até ao último desfalecimento. Tempo infinitamente pequeno para o outro que passávamos, frente a frente, vigiando cada um o silêncio do outro e seguindo, por vezes, o voo picado da gaivota até à rebentação das ondas. Mais tarde ou mais cedo tinha que acontecer.
Que faço neste snack que talvez já não exista?
Risco um fósforo na noite. Aspiro uma fumaça do cigarro e expulso, com força, o fumo. Depois, atravesso a rua em direção à muralha. O ruído das ondas está mais forte e a noite enche-se de clarões, vacilantes. Os pescadores entregam-se à sua faina pesada, com uma noite inteira à frente.
«E agora, Mário?»
«Deixa-me olhar-te bem. Estou confuso. És mais parecida com a outra mulher que viveu comigo. Chamava-se Patrícia.»
«Vais ter mais tempo para recordar. Ainda tens outra coisa para recordar...»
Bebiam cerveja. Copo a seguir a copo. Bebiam cerveja e conversavam animadamente. À medida que o tempo passava, as pessoas iam saindo da cervejaria e o ambiente tornava-se menos ruidoso. Acabaram por ficar sozinhos: ele, o Gaspar e o Pedro. Os três amigos inseparáveis. E o empregado, claro, que os olhava com um certo desespero.
Compreenderam finalmente que eram os últimos clientes e que o empregado queria fechar a casa. Então, encaminharam-se para o exterior.
A noite estava morna. Uma daquelas noites características de agosto. Passaram a praceta. Ao pôr do sol era digno de ouvir-se o espetáculo dos pássaros chilreando em sobreposição, num crescendo constante até atingir os limites do suportável. Depois, a noite caía e o sossego vinha. Nos troncos das árvores, escondidos entre a ramagem, os pássaros aconchegavam-se uns aos outros e ensaiavam um ligeiro esvoaçar, fase de transição para o sono da noite que antecedia mais um dia.
Chegaram à esplanada e pararam. Àquela hora estava deserta e às escuras.
«Ficamos por aqui?» perguntou Mário.
Como resposta, os outros sentaram-se. Estavam demasiado atordoados para reagirem. Talvez até ajudasse a passar o entorpecimento provocado pelos vapores etílicos.
Ali ficaram, quase sempre calados ou fazendo curtas intervenções que não tinham resposta. A noite era conselheira do silêncio e do sono. Teriam certamente adormecido alguns minutos depois se não surgisse aquilo. De repente.
Mário excitou-se. Sempre sonhara com aquele momento que estava a acontecer. Era real. Não precisava de beliscar-se. O enorme globo, suspenso, envolto em luz e esperança, parecia falar com ele. A seguir ao momento de excitação seguiu-se outro, de bem estar. Não estava receoso. Antes pelo contrário. Envolvia-o uma sensação estranha de alegria ao viver o momento. Queria subir ao globo. Entrar nele. Quiçá partir.
Era um convite?
Tinha quase a certeza que sim.
Olhou para os amigos. Pareciam estátuas. Estranhou.
«Não é fantástico?»
Não responderam. De certeza que estavam hipnotizados. Ele, não. Sentia-se solto, livre de movimentos. Apetecia-lhe aproximar-se daquilo que continuava suspenso, entre os prédios, iluminado por um branco intenso que quase o cegava. O convite continuava no ar.
Aproximou-se. Era atraído por qualquer coisa desconhecida, mas inevitavelmente irresistível. Parou debaixo do globo. Era enorme. Mas fascinante. Apesar da sua grandiosidade assustadora sentia no ar um ambiente amistoso, de segurança e, ao mesmo tempo, um convite surdo:
«Vem. Vem ter connosco. Somos amigos.»
Sentiu uma confiança sem limites ao apelo que vinha do ar. Quem quer que fosse prometia-lhe aquilo que ele costumava chamar impossíveis.
Então, abriu os braços e transformou-se num deus alado...
Ela continuava na sua frente.
«A mulher de preto foi uma sugestão.»
«E o beijo?»
«Bom, deixemos o beijo. O que interessa é que o teu desejo foi satisfeito. E agora, que queres mais saber?»
O contacto mental continuava a fazer-se perfeitamente entre os dois. Não precisavam de mover os lábios. De um momento para o outro estava perante o facto consumado do contacto telepático tão discutido nas comunidades científicas e nunca confirmado a cem por cento. Ouvia. Comunicava. Sem recorrência às cordas vocais. As ideias iam de cérebro para cérebro sem necessidade de qualquer estrutura de apoio.
«Telepatia?»
«Sim. Pura.»
Concentrou-se no seu rosto moreno. Aqueles olhos. Aqueles olhos muito expressivos lembravam-lhe a Patrícia dos primeiros tempos. O rosto sereno, um pouco alongado, onde uns lábios finos pareciam a todo o momento abrir-se para chamarem por um nome. O sorriso de mulher fatal que tanto o atraía.
«Esse encontro, casual ou não, quem sabe, está no desenrolar de todos estes acontecimentos.»
«Não é possível!»
«Achas que não?»
«Como podias ser tu?»
Como resposta, a mulher tirou a cobertura que lhe envolvia a cabeça e deixou ver os cabelos. Cabelos castanhos, curtos. Em poucos segundos passaram imagens estranhas que não admitiu serem verdadeiras.
Era um absurdo pensar que estávamos sentados ocasionalmente na mesma mesa. Observei-a com atenção. Na sua expressão havia algo de estranho. Os olhos dela, claros, contrastavam com o rosto moreno, por natureza. No inverno e no verão todo o seu corpo era moreno. O mesmo não se podia dizer dos olhos, que passavam por várias tonalidades claras, sendo cinzentos, azuis, verdes. Eu igualava-me a si próprio. O mesmo rosto, a aparência pendular de homem pensativo, a pouca verbosidade de todos os dias.
A Patrícia fora comunicativa, entusiástica. Mas o tempo e a minha presença amorfa encarregaram-se de esfumar, lentamente, a vitalidade preciosa que a tornava sempre jovem. De repente, deu consigo triste, reservada. Os primeiros sintomas tinham surgido no começo do ano. A erva ruim germinara da semente do contágio e proliferara de forma assustadora. Nada havia a fazer. Sentia-se vazia. Ausente. Talvez por isso, olhávamo-nos como se fosse a primeira vez, tentando sentir no ar as feromonas mágicas de cheiro que já não existiam.
O tempo vai correndo devagar, sem quebra, sem alterações sensíveis. Também, devagar, as nuvens vão tomando a configuração de monstros idealizados pelos génios mais maquiavélicos. Ora são figuras horrendas de hidras de múltiplas cabeças, ora tentáculos viscosos que tudo parecem agarrar.
«As tardes são mais longas...»
Baixei a cabeça. Talvez não tivesse ouvido a Patrícia. Apenas o copo rodou com maior velocidade e algumas gotas foram projetadas sobre a mesa. O copo ainda gira mais. Parece que estou interessado em vê-lo dançar, num rito grotesco, como se em cada volta, em cada disposição diferente das moléculas de água, encontre uma nova visão, uma nova forma, restos de imagens utópicas que o consciente já rejeitou.
Seria?, naquele agitar insistente estava vendo alguém?
Tolice. Mário! Só tens a teu lado a bela Patrícia que te seguiu sem saber porquê.
Há muitas coisas que acontecem e não têm razão de acontecer. Uma queda, por exemplo. Cai-se porque se escorregou, ou porque a ambição foi demasiado longe. Há muitas razões lógicas que explicam ou pretendem explicar os fenómenos ocorridos. Tudo é inevitável. O cigarro que se apaga na falta do comburente. As vozes que se perdem no vazio.
Mas uma mulher como a Patrícia...?
Nunca a soube definir. Nem cheguei a conhecer a verdadeira cor dos seus olhos. Agora estavam cinzentos, nublados. Mas atrás deles, sempre o mistério de um pensamento distante, a ideia convicta de que esse pensamento me atraiçoava.
Seria a Patrícia a mulher amedrontada pelo correr dos anos, aquela mesma mulher que viu fugir o amor e, desesperadamente, agarrou-se à primeira tábua que passou próximo?
Um dia, dormimos na mesma cama. Patrícia era meiga. Amadurecida pela experiência, satisfazia-me de maneira a não procurar outras mulheres. No abandono e submissão, atraía-me para um mundo carnal e, ao mesmo tempo, apocalíptico. Éramos dois corpos frementes, trémulos, que se apertavam na ânsia de um orgasmo infinito que só durava um segundo, frações de segundo, tempo sem tempo. Depois, o receio fatal da realidade, de nos encontrarmos, lado a lado, numa mesa de tampo negro, com duas chávenas vazias na sua frente e o vazio de nós próprios por única companhia.
«Vai anoitecer finalmente.»
Mas a vida continua a correr num rio que desenha meandros cada vez mais sinuosos. Sem pressa de chegar porque não tem onde chegar. O dia a dia mata-nos. O tédio começa a corromper o que resta da esperança. Um dia vamos cansar-nos de ver a gaivota que desce em voo picado até às ondas. Da mesa de tampo negro. Das chávenas vazias. Do copo meio de água. Da máquina de discos que teima em manter-se silenciosa.
A Patrícia que vejo na minha frente tem olhos claros. Cinzentos, azuis, verdes. Da cor do mar. Uns olhos diferentes dos meus. Como diferentes somos um do outro.
Pressinto que não tem uma ideia límpida, mas o seu subconsciente está trabalhando na sombra, conferindo, separando as águas. Mais tarde ou mais cedo, quando as gaivotas se afastarem para o largo e ela não mais as olhar com aqueles olhos claros, vou saber porque estava ali, naquele snack, junto a uma mulher que nunca cheguei a conhecer verdadeiramente. Há algo de errado. Desesperado, procuro uma ponta de realidade na própria vida. Na ausência da ligação. No agitar da água que um copo encerra. Mas ainda é cedo para descobrir quando e onde errei. Ou talvez que nunca descubra (1).
«Gostavas de mim?»
Olhei-a fixamente. O mesmo olhar doce e, ao mesmo tempo, estranho. Queria compreender, mas preferi não responder e ir por outros caminhos mais pantanosos, onde me sentia mais à-vontade.
«És mesmo tu?»
«Podes crer.»
«Diz-me que morri e tu também! Que estamos no céu ou isso.»
«Céu? O que é?»
Estranho!
«Perdoa-me por ter fugido. Já não havia saída. Sei que te fiz sofrer. Gostava de ti. Muito! À minha maneira. Mas tínhamos chegado ao fim da estrada. Tu estavas sempre mergulhado nesse fantasma obcecante que te torturava.»
«Onde estou, Patrícia?»
Provavelmente do outro lado da porta.
Aí a vida também era corpórea?
«Conforme já te disse, no interior de uma nave interestelar. Foi o que sempre desejaste. E eu estou aqui a teu lado, porque também foi o desejo do teu subconsciente.»
Não sentia vontade de a abraçar. A nossa comunicação era fria. Distante. Estranhamente distante. Faltava-lhe qualquer coisa e isso assustava-me. Assustava-me muito.
«Estou aqui para pôr fim à frustração em que viveste desde que te deixei.»
«Para onde foste?»
«Para caminhos desencontrados dos teus.»
«Ficaste a odiar-me?»
«Apenas quis sair da tua vida. Já não dava.»
«E agora voltaste e dizes que te chamei. E a Manuela?»
«Admitimos essa hipótese. Mas ela morreu. Lembra-te. Tiveste nos braços o seu corpo frio.»
Ela disse "admitimos"?
A maldita mistura de propano-butano que matou Manuela. Vi-a hirta, serena. Tentei reanimá-la, mas o seu corpo já estava frio. Era demasiado tarde. Vi o coveiro deitar pazadas de terra sobre o seu caixão.
«Viste?»
«Perdoa-me, estou a mentir. Não consegui. Mas como sabes que não estava lá...?»
«Já te disse há pouco que eles sondaram a tua memória.»
«É verdade. Mas deixa que te veja melhor. Foi há muitos anos que vivemos juntos e o teu rosto permanece igual. Nem uma ruga. Continuas jovem. E eu? Parece que sou teu pai, que tenho o dobro da tua idade!»
«Como assim?»
«O que acabei de dizer.»
«Não disseste à tua amiga que te parecia teres dois rostos? Voltaste a ser jovem, Mário! Eu vejo-te jovem. Como no tempo em que nos amámos.»
«Mário... estás a dramatizar? Basta de vinganças. Pronto, eu peço perdão pelo que fiz. E até confesso que fiquei arrependida e tentei remediar o erro. Passei ontem pelo snack e não te vi. Onde andavas?»
Que se passava?
«Era o teu refúgio habitual depois do toque à ordem no quartel. Ficávamos, frente a frente, de olhos nos olhos, sem dizer uma palavra. Queria adivinhar os teus pensamentos, mas não conseguia. Era na Manuela que pensavas, não era?»
«A Manuela...»
Senti as mãos húmidas e procurei o lenço nos bolsos.
«Que cara é essa, Mário?»
Não tive tempo de responder. De repente, em vez de se fazer mais luz na memória, senti tudo escuro à minha volta.
Olhava o céu, perplexo. Àquela hora a esplanada já estava deserta. Eu e os meu amigos tínhamos por hábito ficar sentados, no escuro, continuando conversas insípidas, ou inspirando simplesmente o ar morno das noites de agosto. Por vezes ficavam outros grupos a conversar, mas naquele momento não havia mais ninguém presente. Admiti que era pura coincidência.
Aquilo tinha surgido de repente, ficando a pairar, entre os prédios, a alguns metros da estrada. A iluminação existente deixava adivinhar uma forma quase esférica, aparentemente opaca. Numa pausa entre dois temas, um que se tinha esgotado e outro que demorava a surgir, um zumbido estranho, quase impercetível, obrigou-me a levantar mais os olhos. Depois, veio um misto de espanto e de dúvida. Fosse o que quer que fosse, mantinha-se imóvel entre os prédios, zumbindo em surdina e rodando sempre, lentamente. Ao mesmo tempo que o fenómeno aconteceu, senti uma estranha presença. Um olho invisível perturbador, desnudando tudo em mim o que de mais íntimo tinha.Levantei-me como um autómato. Sentia-me atraído por aquela coisa. Olhei para o meu lado direito. Os outros queriam falar, mas a voz não saía. Os braços estavam tensos, sobre a mesa, e as pernas soldadas ao chão. Apenas dava-me a ideia que sabiam da existência daquilo. Sim, existia. Provavelmente, como acontecia comigo, penetrava neles como uma broca silenciosa, ou mil brocas, de descoberta em descoberta. Sentiam-se indefesos e esvaziados de qualquer pensamento reativo. Tinha a certeza que estavam à mercê daquilo. Não sentia medo perante aquela situação insólita. Havia na noite qualquer coisa nova que me aguçava a curiosidade e levava para longe o medo. Apenas aguardava um sinal, um indício vindo do globo luminoso, enorme, que zumbia e rodava em torno de si próprio. Um fio invisível tentava estabelecer contacto. Queria entender. Por isso mostrava-me cada vez mais recetivo. Quantas vezes sonhara com aquele momento! Deixava a imaginação fluir e, aos poucos, ia compondo o puzzle de peças espalhadas ao acaso. Mas ainda não dava certo. Faltavam elementos importantes. Então, voltava a misturar as peças e recomeçava. O ato de imaginar de novo cada vez mais tomava os contornos de premonição. Teria mesmo que acontecer, mais tarde ou mais cedo. Pressentia. Mais um agrupamento das peças e tinha a meus pés o momento sonhado.
Um foco desceu do globo e iluminou o chão. Pareceu-me que era o sinal combinado. Aproximei-me, lentamente, do foco. Os meus amigos certamente adivinharam a intenção. Impotentes, continuavam como simples observadores. Sorri para eles, tranquilo.
«Não tenham receio.»
Tentaram chamar-me, mas nenhuma voz saiu, nenhuma perna se moveu. O círculo luminoso formado pelo foco tornou-se mais intenso quando o pisei. Levantei mais a cabeça, indiferente à intensidade do foco. E nesse instante o globo aumentou a velocidade de rotação e ensaiou um espetáculo de cores e som que me atraíram ainda mais. Os zumbidos tinham cessado e sido substituídos por novos sons, harmónicos, talvez de saudação. Era o sinal, pressenti. O momento esperado.
Olhando para o globo, levantei os braços e elevei-me, de imediato, ao longo do foco, como um deus que envolve a eternidade num abraço. Depois, desapareci da vista dos meus amigos, não sem antes tomar consciência que o espetáculo de cores e magia tinha subido de intensidade e os zumbidos estavam de volta. O momento seguinte deve ter sido só para as testemunhas imobilizadas, completamente inertes, impotentes para reagirem. Então o globo começou a rodar mais lentamente, como um pião nas últimas rotações, mas sem estar em desequilíbrio. Novo momento. Fez-se silêncio e a escuridão voltou. O pesadelo tinha acabado. A noite encheu-se de novo.
Caía vertiginosamente num poço escuro. A queda era alucinante e parecia não ter fim. O meu corpo ondulava em função da velocidade alcançada. Estive assim uma eternidade (o tempo era incontrolável). Aos poucos, fui desacelerando e quase que flutuava. Desta vez pareceu ser um momento. Senti-me de novo lançado no vazio. Cada vez mais depressa. Asfixiava. A queda no abismo não tinha fim. Mergulhava no desconhecido numa queda livre inevitável. Queria parar, mas continuava a cair. Sempre a cair. No poço escuro e silencioso. Vazio. Aquilo era um pesadelo. Uma sensação de náusea que nascia nas entranhas. Um vómito. Um vómito horrível. Vomitava as tripas. Uma corda que puxava do interior da boca e que não tinha fim. Era uma sensação desagradável, mas senti que a corda travava a queda. Talvez fosse a solução. Continuar a puxar a corda. Cada vez mais depressa. Era isso. A velocidade abrandava. Mas onde estava o fundo do abismo? Só via escuridão à sua volta. Ah!, a náusea! De novo a náusea. Intolerável. A corda já não saía. Não havia mais corda. Quis gritar. O som morreu à saída da boca. O som não existia. Nem a boca. Talvez nem eu...
Agora flutuava. Via, em baixo, o fundo. Perto. Negro. O fundo era ali. Tinha a certeza de flutuar em rotação lenta. Flutuava, finalmente. Um vento frio soprava-me no rosto. Não. Não tinha rosto. As mãos não encontravam o rosto. Onde estavam as mãos? E o rosto era uma massa informe depois de embater no vazio e estacar. Finalmente acabava o pesadelo. Tentei sentir o corpo. Nada encontrei. Era só alma, ou isso de alma. Mas... Sim. Já podia controlar os movimentos, planar, ou descer. Descer para lá do fundo, lentamente, até focar. Era isso, focava entre a bruma e podia ver imagens. Nítidas. Uma a seguir à outra. Como num filme. Mas não as pude recordar. Todas as imagens mais antigas tinham sido bloqueadas. Só as recentes.
Sem saber como, comecei a assistir à reação do Pedro e do Gaspar depois de terem perdido o contacto comigo...
Olharam um para o outro. Podiam beliscar-se, já que pareciam duvidar da sua existência. Mas esses momentos tinham acontecido. As imagens não se desvaneciam. Ganhavam força. Saltavam para fora, projetando-se em repetições sucessivas. Sentiam-se suspensos entre o sonho e a realidade.
Olharam em volta. A esplanada continuava deserta. Tinham visto o globo. Logo a seguir foi a inação. O torpor. A mordaça. Ficaram agarrados às cadeiras. E foram assistindo a tudo, até que o globo desapareceu como se tivesse tocado por uma varinha de condão. Mário já não estava com eles.
Passavam férias naquela vila e ninguém os conhecia. Não havia problema. Podiam ignorar. Pôr uma pedra. Talvez...
Pedro olhou para o amigo.
Onde queria ele chegar?
Não podiam pôr uma pedra sobre o túmulo do Mário, simplesmente porque não havia túmulo e era impossível chegarem à conclusão que nada tinha acontecido. Os amigos iam perguntar. Depois as autoridades seriam alertadas por uma possível denúncia. E nada podiam dizer de esclarecedor. Segundo os cânones da lógica, o amigo não podia desaparecer, assim, sem mais nem menos, levado, e de livre vontade, por seres extraterrestres. Não era coisa natural de acontecer. Sem dúvida que não. Mais fácil seria acreditar na história da carochinha. Tinham que ser racionais e encontrar uma história mais consistente. Além do mais, o Mário não merecia o silêncio proposto pelo Gaspar. Era um grande amigo, do peito. Um camarada dos tempos heroicos que nunca foram esquecidos. Para a vida e para a morte.
O medo continuou a falar pela boca do Gaspar. O amigo seria mais um dos milhares de pessoas que desapareciam todos os anos como o fumo se desvanece. Não podiam arriscar-se a comunicar o desaparecimento do Mário, pois, ao fazê-lo, tornavam-se suspeitos. Aliás, pouco ou nada sabiam. O amigo elevou-se no ar, como um deus, ou a caminho de Deus, e eles tinham ficado amarrados às cadeiras, incapazes de reagir.
O zumbido deixou de ouvir-se. O Mário desapareceu sem deixar rasto. Perdeu-se no negrume da noite, nas mãos de seres que eles nem sequer tinham detetado. Perdeu-se rumo ao desconhecido e transformou-se num viajante acidental das estrelas, atravessando galáxias e fugindo, talvez de fantasmas do passado, ou dele próprio.
Não, não havia pistas. E para as autoridades seria mais um processo levantado depois de alguns dias de ausência no emprego. Na ausência natural de dados ou indícios o mesmo processo seria automaticamente arquivado.
«Nem uma palavra? Esquecermos assim cobardemente o nosso amigo dos tempos heroicos?»
«Falhados, Pedro. Não te esqueças. Tempos falhados.»
«Nunca lhe perdoaste. Sabes bem que a culpa não foi só dele. Mas não interessa discutir assuntos enterrados há muito. Além do mais, estás a esquecer-te de uma coisa importante.»
«De quê?» perguntou o Gaspar.
«A Mafalda sabe que viemos para cá. Vai revolver montes e vales para o encontrar. Podemos ficar em maus lençóis se não lhe contarrmos a verdade.»
Gaspar insistiu. Faziam as malas e saíam dali. Quanto mais depressa melhor. Ninguém viu. A esplanada estava deserta quando aquela coisa estranha apareceu e levou o Mário. Foram as únicas testemunhas. E depois a polícia ia apertar com eles. Os processos eram levantados e corriam grandes riscos de serem engavetados.
«Reparaste como ele bebeu esta noite?»
«Bebemos os três bem. Não foi só ele, porra!»
«Mas ele ainda bebeu mais do que nós!» teimou.
Estavam de pé e interrogavam-se. Fora tudo muito estranho. Se não tivessem ficado grudados às cadeiras e visto com os próprios olhos o que se passou, dir-se-ia que tinham sonhado. Mas era verdade. O globo, enorme, suspenso entre os prédios, sobre o meio da rua...
«Pois é. Queria suster o Mário mas não conseguia. Havia qualquer coisa que me controlava e que parecia vir de cá dentro. Não aconteceu o mesmo contigo, Gaspar?»
«Sim. O cérebro não mandava no corpo. Foi mesmo como disseste.»
Tinham-se aproximado do sítio onde o Mário desapareceu. Pedro aspirou uma grande lufada de ar. O globo não deixara qualquer cheiro.
«Uma coisa é certa.» Disse o Pedro.
«Sim?»
«Nós vimos. Aquilo era um ovni. E o Mário partiu com eles. Já não está aqui connosco. Nunca mais o veremos.»
Gaspar sorriu. Nunca acreditara nas histórias de ovnis. Já ouvira falar muito de casos incríveis em que raptavam pessoas. Raptavam. O sorriso ficou em meio.
Que outra coisa podia ter sido?
Afastaram-se do local pela estrada em frente à esplanada e percorreram alguns metros, até estacarem junto ao gradeamento do viaduto. O Pedro, por sua vez, era menos cético. Já tinha lido alguns livros sobre desaparições misteriosas de pessoas. Lembrava-se de um caso ocorrido há alguns anos atrás em que uma família inteira se volatilizara no ar, pura e simplesmente. Tinham ido dar um passeio até ao campo e nunca mais regressaram. O carro foi encontrado aberto. À frente, havia pegadas de três pessoas marcadas no terreno arenoso. Depois, mais nada. As marcas interrompiam-se bruscamente. Não havia precipícios ou buracos e o terreno não era acidentado. Dava a impressão que, alguém vindo do ar, os tinha levado inesperadamente. Nunca mais apareceram. Nem uma peça de roupa, nem um brinquedo de criança. O carro não apresentava sinais de fogo. Apenas estava aberto e vazio.
Este caso tinha-o impressionado muito. Quem seriam os raptores? Navegantes das estrelas, vindos de galáxias longínquas e que dominavam o espaço e o tempo?
Seres diferentes, com outra constituição anatómica, com outra ética?
«Ele foi sugado pelo foco. Não podemos negar. Mas quem vai acreditar em nós?» perguntou o Gaspar, renitente.
«Não é caso para desistirmos.»
«Certo. Mas só queria que me dissesses como vamos sair desta embrulhada. As suspeitas vão recair sobre as nossas cabeças. Acho que devemos ficar quietos e esperar.»
Pedro não respondeu. Estava ainda hesitante. Involuntariamente batia com o pé no gradeamento do viaduto. O som ressoava forte. Tinham que pensar bem. Lembrou-se de novo da Mafalda e de toda uma dedicação velada pelo Mário. A suspeita. Quem podia afastar dela a suspeita? Um arrepio indefinido percorreu-lhe o corpo de alto a baixo. Não sentia frio. Apenas medo de um amanhã incerto que não morava longe.
Sem darem conta já estavam na praia. Era estranha a praia de noite. Estranhamente bela e envolta em mistérios de ruídos que não conseguiam decifrar. O odor a maresia entrava-lhes pelas narinas deixando adivinhar que era maré vazia. Mas não sabiam onde estava o limite próximo das águas. De dia era diferente. As águas do mar iam variando de cor, passando, rapidamente, do verde ao azul, sendo, por vezes, cinzentas, junto à rebentação. Depois, era o colorido dos toldos, da multidão que disputava as areias, palmo a palmo, e o espetáculo dos biquinis que deixavam antever promontórios por onde a vista se estendia no imaginário de montes e vales à espera de poderem ser explorados. Mas a praia falava ainda de outras belezas escondidas no mistério do negrume de uma noite de lua nova que só as estrelas distantes iluminavam. Apenas o ruído das ondas testemunhava a existência do mar.
Na negritude do céu brilhavam pirilampos mágicos que também podiam falar de sereias escondidas aos olhos cegos do Pedro que adivinhavam monstros que tinham tragado o amigo. Deuses construtores de mares com outras cores e que navegavam no espaço, sem tempo para gerir. Talvez até dominassem a eternidade, tudo o que estava para lá do infinito.
Costumavam passar horas a fio sentados na muralha, a observar em silêncio toda aquela confusão de pés que se atropelavam, os corpos que se abraçavam, as crianças que escavavam buracos na areia e atiravam-na, inocentemente, aos adultos. Enfim, era uma confusão que lhes enchia os olhos. Depois corriam pela areia fina até à beira-mar e mergulhavam nas ondas de chapão.
Ele ficava mais tempo. Era um observador constante que nunca contava o que via. Limitava-se a olhar em frente, fixamente. Os olhos perdiam-se no horizonte e pareciam ultrapassar os seus limites. O tempo não contava porque Mário saltava nele como um cavaleiro hábil que evitava obstáculos. No voo da gaivota, planando no ar, galgava anos-luz de esperança, ou refugiava-se nos meandros da própria existência. Depois regressava, sempre desencantado. O impacto com a realidade era duro. Implacável. Regressava derrotado. Como acontecia com as ondas que perdiam quase toda a força na zona da rebentação, avançando aparentemente ameaçadoras, alterosas, e enfraquecendo em cada metro galgado, até beijarem a areia que foi alisada por outras ondas do passado.
Agora a praia transfigurava-se. Estava vazia e escura. Apenas as estrelas brilhavam nas distâncias que simulavam ultrapassar o fim do mundo e emprestavam uma acalmia reconfortante. À noite a praia, obscurecida, existia apenas pelo ouvir do quebrar constante das ondas e pelo sentir na cara dos salpicos do ar húmido. O cheiro forte a maresia enchia-lhes as narinas. A noite descia até eles e cobria-os com o seu manto misterioso.
«É maré vazia. As ondas estão mais longe...»
Pedro queria recordar. Tinham vindo diretamente da cervejaria para a esplanada, onde a obscuridade e o silêncio foram ingredientes importantes para permanecerem ali durante bastante tempo. Sabia que os dias bons estavam a acabar. Restavam apenas dois para voltar ao trabalho aborrecido de encher de dados ficheiros que nada lhe diziam, que não eram dele. Input. Sempre. A obsessão das novas tecnologias que não paravam de evoluir, cada vez mais perfeitas, despersonalizadas, implacavelmente cheias de rotinas que não falhavam. Delete all? Quem lhe dera. Apagar aqueles buracos negros, devoradores de dados, infalíveis, e ausentes de emoções. Para o diabo com os computadores.
Mário tinha-lhe falado de um novo projeto.
«Este é cem por cento seguro, acredita. Êxito garantido. Só com um senão. Preciso de tempo para o desenvolver mais, para o aperfeiçoar. E dinheiro, claro. Sem dinheiro, adeus projeto. E não é preciso muito.»
«Exportar minhocas para o deserto? Estás louco!»
Pedro farejava à distância os projetos nado-mortos do amigo. Sabia que o êxito estava na razão inversa do entusiasmo. Aliás, já caíra mais que uma vez na voragem de projetos parecidos e sempre falhados.
«Não gozes. É cá uma coisa que ando a engendrar e acredito que vai dar certo. Falta ainda acertar alguns pormenores. Coisa de pouca monta.»
«Água potável. Já me contaste.»
«Muito simples. Sei onde ir buscá-la.»
«Também já me disseste. Ao Pólo Norte.»
«No verão, depois de se separarem dos glaciares continentais, os icebergues deslizam ao longo das rotas marítimas entre a Europa e a América do Norte...»
«A quem o dizes. E depois, sonhador?»
«Há que os controlar e conduzir até ao sítio certo. Milhões de metros cúbicos de água doce à nossa disposição. O último vértice do triângulo que faltava. Água, areia e minhocas. Os ingredientes necessários para acabar com os desertos que se estendem do norte de África para sul.»
«Só aí vais encontrar desertos? Seja. Mas ainda não pensaste no problema do impacto ambiental que a tua ideia vai causar no deserto. Imagina só isto. O deserto ao desaparecer arrasta na sua extinção toda a fauna e flora características. E a guerra com os ambientalistas que nunca mais te deixam os cornos em paz e sossego? E os oásis alargados?, já pensaste? Vão proliferar por todo o lado com essa água toda que queres trazer das regiões polares. Só não percebo uma coisa. Como conseguirás controlar os ditos icebergues?»
«Estou a pensar nisso.»
«Talvez com rebocadores. Um atrás, outro à frente, e mais dois nos flancos. Muito simples. Ou então sopras em cima deles porque és Deus. Dum lado e doutro, para controlares o rumo. Olá! Desce à Terra, Mário.»
«Deixa-te de graçolas. De facto ainda não descobri maneira, mas já faltou mais. Respeita-me, Pedro. Por favor! Durmo poucas horas por noite e vocês os dois andam no bem bom.»
«Ah! Bem me parecia. Nem é preciso ter um dedo mágico que adivinha. Mas não me disseste que a informática era a tua nova paixão? Foi assim tão efémera?»
«Efémera é a tua tia. Claro que ainda tenho uma grande paixão. Mas deram-me um lugar pouco digno. Imagina. Operador informático. Sou como um autómato que aperta milhões de parafusos numa fábrica de montagem. Carrego dados e manipulo programas. Não os crio. Não tenho um projeto viável a que possa dar vida. Esta merda não é para mim.»
«Então já sei. Queres programar. Não me digas!»
«E estou a programar, mas não na empresa. É diferente. Não imaginas o que já consegui fazer. Ficheiros às dúzias que, depois de compilados, são “ligados” e transformados num único ficheiro de comando. Como quem mistura ingredientes para fazer um bolo...»
«Não consideras que te pagam bem? Ganhas mais do que o dobro que eu e não estás satisfeito!» intrometeu-se o Gaspar, com um sorriso sarcástico que a noite escondeu parcialmente.
«Não saí ainda porque preciso de muito dinheiro para concretizar este sonho.»
«Sonho, dizes bem. Projetos sem alicerce. Poços sem fundo que engolem o teu dinheiro e também o nosso.»
«Dá-me resultados palpáveis dessa programação. Sempre quero ver.» Pediu o Pedro.
«Olha, estou a desenvolver um programa de apostas no totobola que tem fortes probabilidades de êxito.»
«Em probabilidades ninguém te leva a palma. O pior é o resto. Naturalmente que precisas de financiamento. E essa história que nos contaste das formigas ecológicas, predadoras dos caracóis?»
Fez-se silêncio. Os amigos aguardavam uma resposta.
Respirou fundo. Maldita cerveja. Fazia-o falar demasiado. Ia fechar a torneira das informações. Até porque a história das formigas era muito complicada. Descobriu na Argentina as formigas mais devoradoras que existiam ao cimo da Terra, mas esqueceu-se que eram seres irracionais. Deu conta quando começaram a atacar as outras espécies de formigas e depois devoraram-se umas às outras por terem perdido os instintos gregários. Diagnóstico: grave alteração comportamental provocada pelo novo meio ambiente. E os caracóis, livres das potenciais predadoras, continuaram a reproduzir-se em exponencial. De certo modo eram como as fusões entre multinacionais ou entre buracos negros. Também havia canibalismo nas galáxias. Não. Não ia contar aos amigos o fracasso que teve com a porra das formigas.
«E as inesquecíveis formigas?»
Afinal tinha que emendar a mão.
«Cheguei à conclusão, depois de alguns cálculos, que não conseguia tirar do projeto a rendibilidade prevista. Os caracóis reproduzem-se aos milhares e são precisas muitas formigas para devorarem um caracol. A taxa de cobertura não me convenceu.»
«Sabes uma coisa, Mário? Estás é com uma grande pedrada!»
«Ou isso.»
Era uma saída airosa. Aliás, estavam os três bem “carregados”. Ele, de inspiração; os amigos, escaldados por um ceticismo não construtivo.
O segredo do controlo dos icebergues passava por um programa eficaz e pressentia que andava perto da verdade. Faltava abrir mais algumas cortinas. Devia, contudo, calar-se. Eles não acreditavam e não era salutar para si abrir mais o véu. O seu projeto poderia vir a ser bloqueado pelas vibrações negativas que eles emitiam a todo o momento. Quanto à cultura de minhocas, verdadeiras transformadoras de terra pobre em arável, essa ia de vento em popa. Só que precisava de vinte anos para amortizar o capital investido e começar então a obter lucros.
E onde ia buscar o financiamento?
Que vida difícil a sua!
O silêncio ganhou ainda mais força. Os sentidos ficaram em fase de vigília. O ar estava cálido. Era quase desesperante. Nem uma brisa para acariciar os rostos quentes do efeito do álcool. Começavam a ficar entorpecidos. As palavras gastaram-se com o caso da última formiga antropófaga que entretanto morreu no dilema de se devorar ou não a si própria. O silêncio da noite começava a envolvê-los num abraço convidativo ao sono. Nada os preocupava. Nem que caíssem do céu raios e coriscos.
Mas não iam dormir nessa noite porque, de repente, aquilo aconteceu. O zumbido caiu bruscamente sobre eles e olharam para o céu. Lá estava. Muito luminoso. Aquele objeto enorme, suspenso no ar e a rodar, lentamente. Saíram de uma embriaguez etílica para entrarem noutra embriaguez que os paralisava.
O fenómeno durou um minuto?,... dez?
O tempo deixou de ter significado.
«Sabes uma coisa, Pedro?»
«Diz.»
«Estou a pensar que este caso não pode ser tratado pela polícia. Imagina o ar incrédulo deles ao ouvirem dizer que o Mário foi sugado por uma luz.»
«E tens outra ideia melhor?»
«Estou a lembrar-me de uma coisa. É isso!»
«Isso o quê?»
«Se contactássemos um jornalista?»
«Já estás a ser mais racional. Talvez tenhas razão. Têm vindo nos jornais relatos de muitos casos no estilo deste. O nosso pode dar uma boa reportagem e chamar, de outra maneira, a atenção das autoridades.
«Genial! E o anonimato fica salvaguardado.»
«Vês? O próprio jornalista pode até interessar-se pelo caso. Mas vamos agora ao caso mais complicado. Onde vamos encontrar um jornalista de confiança. Conheces alguém?»
«Por acaso, sim.» Confirmou Pedro.
«Tens a certeza?»
«Já lá dizia Einstein que tudo era relativo.»
«Porra! Afinal, tens ou não tens?»
Pegar ou largar. E o Pedro não hesitou. Era a única saída.
«Conheci um jornalista há pouco tempo numa festa. É amigo de um colega meu. Parece ser um indivíduo até muito interessado pelos fenómenos insólitos. Até tem um arquivo especial.»
Tinha acabado de ler as anotações alinhavadas à pressa. Um caso bem bizarro, pensou. Acreditar ou não acreditar. Como de costume. Era apenas uma questão de palpite.
Três homens. Três amigos. Três bebedeiras de caixão à cova. Ficaram na cervejaria bebendo mais do que conversavam. A noite morna convidava a beber. Depois, foram curtir para a esplanada principal que já estava deserta àquela hora. Passava das duas da manhã. Que conversa? Negócios. Os sonhos lunáticos do amigo que desapareceu. Já estavam habituados. Depois dos “tempos áureos” nunca mais fora o mesmo. Tempos áureos? Que queriam dizer?, perguntou na altura. Lembrava-se que tinham olhado um para o outro e que não deram resposta. Primeira omissão, portanto. Nesses “tempos áureos” eles podiam ter sido, por exemplo, traficantes de drogas ou armas, ou de ambas as coisas.
«Cheira-me a esturro.»
A cerveja começava a fazer efeito. Sentiam-se entorpecidos. O sono ganhava espaço para se aninhar. Foi precisamente nessa altura que ouviram o silvo da máquina.
Leu em livros da especialidade que, quando do aparecimento de um ovni, nem sempre havia ruído. Por vezes, as máquinas pareciam deslocar-se silenciosamente, mas ouviram uma espécie de zumbido. Reações físicas: de súbito, ficaram estáticos. Reações psíquicas: estavam conscientes, mas bloqueados e não podiam comunicar um com o outro. Tinham o ovni na sua frente. Enorme. Luminoso. Opaco. Não se sentiam indispostos nem em pânico e só podiam observar o que se estava a passar a poucos metros. Eram meros espetadores de um sequestro que ocorria nas suas barbas e que teria consequências imprevisíveis. Ao mesmo tempo sentiam-se despidos interiormente, pressentindo que estavam a ser analisados até ao mínimo pormenor. Então, aconteceu o insólito. O amigo, já sob o globo, ergueu os braços e elevou-se, lentamente, aspirado pela luz. Mas pareceu que aquele “lentamente” durou para eles uma eternidade.
E afinal onde estava agora o tal Mário?
Sentia inveja. Nunca teve um “encontro imediato do terceiro grau”.
Como seria a sua reação?
Talvez se borrasse todo. Mas valia a pena. Deixou escapar um sorriso ante a perspetiva de se borrar. Devia ser algo incómodo.
O telefone retiniu. Pousou o documento sobre a secretária e estendeu o braço, contrariado. Tinham-lhe interrompido o fio do pensamento.
«Estás aí e não dizias?»
«Ah!, és tu...»
«Quem querias que fosse, Fonseca?»
Era a Odete, a secretária do diretor.
«Ele quer falar comigo?» perguntou.
«E aviso-te que não está bem disposto.»
«Calha bem. Também eu não estou bem disposto.»
Principalmente porque não conseguira ainda decidir-se sobre a veracidade do depoimento que acabara de ler. Precisava de tempo antes de falar com o diretor. Sentia-se um pouco sensível à sinceridade aparente das testemunhas.
«Então? Nem sequer me estás a ouvir. Parece que houve uma bronca com uma entrevista que fizeste a semana passada. Truncaste uma resposta. Se não te retratares bem podes pôr as barbas de molho. O homem que entrevistaste está disposto a processar o jornal.»
Encolheu os ombros. A entrevista que fosse para o diabo. E a culpa não era dele. Se lhe tivessem dado mais espaço no jornal já ele não emendava frases.
«Vou já...»
Passou entre as mesas de trabalho dos colegas e saiu da enorme sala. Agora atravessava, apressado, um corredor comprido. O som de fundo do matraquear das teclas vinha de mais longe. Entretanto a Odete esperava-o, ao fundo. O seu sexto sentido de mulher tinha-lhe dado um sinal que alguma coisa não estava bem.
Olharam-se. Ele sorriu.
«Estás zangada comigo. Não me esqueci do jantar de ontem. Só que tive uma coisa importante entre mãos...»
«Não podes é ver um rabo de saias! Traste!»
«Palavra. Ontem à noite fui abordado por dois indivíduos que me contaram uma história muito estranha. Calcula tu que...»
«Foi assim tão importante para esqueceres o jantar?»
«Já disse que não me esqueci.»
«E telefonaste?»
«Não faças beicinho, Odete. Este caso escalda por todos os lados e preciso de ir beber na fonte.»
«As tuas bebidas foram outras, estou mesmo a ver. Olha, o chefe quer falar contigo. É a respeito da tal entrevista.»
Fonseca acariciou-lhe os cabelos, sorrindo.
«Preciso de pôr-me ao fresco e já. Depois telefono-te.»
«Espera. E a entrevista?»
Impacientou-se.
«A entrevista que vá para o diabo. Diz ao velho que desapareci. Olha, fui levado por uma luz. Isso mesmo que estou a dizer-te. Como aconteceu ao outro tipo, a luz da nave sugou-me.»
«Sugou-te? E qual nave? Não estás bom da cabeça...»
«E tu também não vais ficar, Odete, quando te contar o raio da história. Agora vou indo. Ouve uma coisa, ainda te dás bem com o tipo dos serviços de segurança?»
«Não posso crer!»
«És um anjo. Espera pelo meu telefonema. Não saias de casa logo à noite.»
«E se tiver um compromisso?»
Beijou-a.
«O teu compromisso sou eu. Ou não?»
«Ele foi sugado pelo foco. Não podemos negar. Mas quem vai acreditar em nós?» perguntou o Gaspar, renitente.
«Não é caso para desistirmos.»
«Certo. Mas só queria que me dissesses como vamos sair desta embrulhada. As suspeitas vão recair sobre as nossas cabeças. Acho que devemos ficar quietos e esperar.»
Pedro não respondeu. Estava ainda hesitante. Involuntariamente batia com o pé no gradeamento do viaduto. O som ressoava forte. Tinham que pensar bem. Lembrou-se de novo da Mafalda e de toda uma dedicação velada pelo Mário. A suspeita. Quem podia afastar dela a suspeita? Um arrepio indefinido percorreu-lhe o corpo de alto a baixo. Não sentia frio. Apenas medo de um amanhã incerto que não morava longe.
Sem darem conta já estavam na praia. Era estranha a praia de noite. Estranhamente bela e envolta em mistérios de ruídos que não conseguiam decifrar. O odor a maresia entrava-lhes pelas narinas deixando adivinhar que era maré vazia. Mas não sabiam onde estava o limite próximo das águas. De dia era diferente. As águas do mar iam variando de cor, passando, rapidamente, do verde ao azul, sendo, por vezes, cinzentas, junto à rebentação. Depois, era o colorido dos toldos, da multidão que disputava as areias, palmo a palmo, e o espetáculo dos biquinis que deixavam antever promontórios por onde a vista se estendia no imaginário de montes e vales à espera de poderem ser explorados. Mas a praia falava ainda de outras belezas escondidas no mistério do negrume de uma noite de lua nova que só as estrelas distantes iluminavam. Apenas o ruído das ondas testemunhava a existência do mar.
Na negritude do céu brilhavam pirilampos mágicos que também podiam falar de sereias escondidas aos olhos cegos do Pedro que adivinhavam monstros que tinham tragado o amigo. Deuses construtores de mares com outras cores e que navegavam no espaço, sem tempo para gerir. Talvez até dominassem a eternidade, tudo o que estava para lá do infinito.
Costumavam passar horas a fio sentados na muralha, a observar em silêncio toda aquela confusão de pés que se atropelavam, os corpos que se abraçavam, as crianças que escavavam buracos na areia e atiravam-na, inocentemente, aos adultos. Enfim, era uma confusão que lhes enchia os olhos. Depois corriam pela areia fina até à beira-mar e mergulhavam nas ondas de chapão.
Ele ficava mais tempo. Era um observador constante que nunca contava o que via. Limitava-se a olhar em frente, fixamente. Os olhos perdiam-se no horizonte e pareciam ultrapassar os seus limites. O tempo não contava porque Mário saltava nele como um cavaleiro hábil que evitava obstáculos. No voo da gaivota, planando no ar, galgava anos-luz de esperança, ou refugiava-se nos meandros da própria existência. Depois regressava, sempre desencantado. O impacto com a realidade era duro. Implacável. Regressava derrotado. Como acontecia com as ondas que perdiam quase toda a força na zona da rebentação, avançando aparentemente ameaçadoras, alterosas, e enfraquecendo em cada metro galgado, até beijarem a areia que foi alisada por outras ondas do passado.
Agora a praia transfigurava-se. Estava vazia e escura. Apenas as estrelas brilhavam nas distâncias que simulavam ultrapassar o fim do mundo e emprestavam uma acalmia reconfortante. À noite a praia, obscurecida, existia apenas pelo ouvir do quebrar constante das ondas e pelo sentir na cara dos salpicos do ar húmido. O cheiro forte a maresia enchia-lhes as narinas. A noite descia até eles e cobria-os com o seu manto misterioso.
«É maré vazia. As ondas estão mais longe...»
Pedro queria recordar. Tinham vindo diretamente da cervejaria para a esplanada, onde a obscuridade e o silêncio foram ingredientes importantes para permanecerem ali durante bastante tempo. Sabia que os dias bons estavam a acabar. Restavam apenas dois para voltar ao trabalho aborrecido de encher de dados ficheiros que nada lhe diziam, que não eram dele. Input. Sempre. A obsessão das novas tecnologias que não paravam de evoluir, cada vez mais perfeitas, despersonalizadas, implacavelmente cheias de rotinas que não falhavam. Delete all? Quem lhe dera. Apagar aqueles buracos negros, devoradores de dados, infalíveis, e ausentes de emoções. Para o diabo com os computadores.
Mário tinha-lhe falado de um novo projeto.
«Este é cem por cento seguro, acredita. Êxito garantido. Só com um senão. Preciso de tempo para o desenvolver mais, para o aperfeiçoar. E dinheiro, claro. Sem dinheiro, adeus projeto. E não é preciso muito.»
«Exportar minhocas para o deserto? Estás louco!»
Pedro farejava à distância os projetos nado-mortos do amigo. Sabia que o êxito estava na razão inversa do entusiasmo. Aliás, já caíra mais que uma vez na voragem de projetos parecidos e sempre falhados.
«Não gozes. É cá uma coisa que ando a engendrar e acredito que vai dar certo. Falta ainda acertar alguns pormenores. Coisa de pouca monta.»
«Água potável. Já me contaste.»
«Muito simples. Sei onde ir buscá-la.»
«Também já me disseste. Ao Pólo Norte.»
«No verão, depois de se separarem dos glaciares continentais, os icebergues deslizam ao longo das rotas marítimas entre a Europa e a América do Norte...»
«A quem o dizes. E depois, sonhador?»
«Há que os controlar e conduzir até ao sítio certo. Milhões de metros cúbicos de água doce à nossa disposição. O último vértice do triângulo que faltava. Água, areia e minhocas. Os ingredientes necessários para acabar com os desertos que se estendem do norte de África para sul.»
«Só aí vais encontrar desertos? Seja. Mas ainda não pensaste no problema do impacto ambiental que a tua ideia vai causar no deserto. Imagina só isto. O deserto ao desaparecer arrasta na sua extinção toda a fauna e flora características. E a guerra com os ambientalistas que nunca mais te deixam os cornos em paz e sossego? E os oásis alargados?, já pensaste? Vão proliferar por todo o lado com essa água toda que queres trazer das regiões polares. Só não percebo uma coisa. Como conseguirás controlar os ditos icebergues?»
«Estou a pensar nisso.»
«Talvez com rebocadores. Um atrás, outro à frente, e mais dois nos flancos. Muito simples. Ou então sopras em cima deles porque és Deus. Dum lado e doutro, para controlares o rumo. Olá! Desce à Terra, Mário.»
«Deixa-te de graçolas. De facto ainda não descobri maneira, mas já faltou mais. Respeita-me, Pedro. Por favor! Durmo poucas horas por noite e vocês os dois andam no bem bom.»
«Ah! Bem me parecia. Nem é preciso ter um dedo mágico que adivinha. Mas não me disseste que a informática era a tua nova paixão? Foi assim tão efémera?»
«Efémera é a tua tia. Claro que ainda tenho uma grande paixão. Mas deram-me um lugar pouco digno. Imagina. Operador informático. Sou como um autómato que aperta milhões de parafusos numa fábrica de montagem. Carrego dados e manipulo programas. Não os crio. Não tenho um projeto viável a que possa dar vida. Esta merda não é para mim.»
«Então já sei. Queres programar. Não me digas!»
«E estou a programar, mas não na empresa. É diferente. Não imaginas o que já consegui fazer. Ficheiros às dúzias que, depois de compilados, são “ligados” e transformados num único ficheiro de comando. Como quem mistura ingredientes para fazer um bolo...»
«Não consideras que te pagam bem? Ganhas mais do que o dobro que eu e não estás satisfeito!» intrometeu-se o Gaspar, com um sorriso sarcástico que a noite escondeu parcialmente.
«Não saí ainda porque preciso de muito dinheiro para concretizar este sonho.»
«Sonho, dizes bem. Projetos sem alicerce. Poços sem fundo que engolem o teu dinheiro e também o nosso.»
«Dá-me resultados palpáveis dessa programação. Sempre quero ver.» Pediu o Pedro.
«Olha, estou a desenvolver um programa de apostas no totobola que tem fortes probabilidades de êxito.»
«Em probabilidades ninguém te leva a palma. O pior é o resto. Naturalmente que precisas de financiamento. E essa história que nos contaste das formigas ecológicas, predadoras dos caracóis?»
Fez-se silêncio. Os amigos aguardavam uma resposta.
Respirou fundo. Maldita cerveja. Fazia-o falar demasiado. Ia fechar a torneira das informações. Até porque a história das formigas era muito complicada. Descobriu na Argentina as formigas mais devoradoras que existiam ao cimo da Terra, mas esqueceu-se que eram seres irracionais. Deu conta quando começaram a atacar as outras espécies de formigas e depois devoraram-se umas às outras por terem perdido os instintos gregários. Diagnóstico: grave alteração comportamental provocada pelo novo meio ambiente. E os caracóis, livres das potenciais predadoras, continuaram a reproduzir-se em exponencial. De certo modo eram como as fusões entre multinacionais ou entre buracos negros. Também havia canibalismo nas galáxias. Não. Não ia contar aos amigos o fracasso que teve com a porra das formigas.
«E as inesquecíveis formigas?»
Afinal tinha que emendar a mão.
«Cheguei à conclusão, depois de alguns cálculos, que não conseguia tirar do projeto a rendibilidade prevista. Os caracóis reproduzem-se aos milhares e são precisas muitas formigas para devorarem um caracol. A taxa de cobertura não me convenceu.»
«Sabes uma coisa, Mário? Estás é com uma grande pedrada!»
«Ou isso.»
Era uma saída airosa. Aliás, estavam os três bem “carregados”. Ele, de inspiração; os amigos, escaldados por um ceticismo não construtivo.
O segredo do controlo dos icebergues passava por um programa eficaz e pressentia que andava perto da verdade. Faltava abrir mais algumas cortinas. Devia, contudo, calar-se. Eles não acreditavam e não era salutar para si abrir mais o véu. O seu projeto poderia vir a ser bloqueado pelas vibrações negativas que eles emitiam a todo o momento. Quanto à cultura de minhocas, verdadeiras transformadoras de terra pobre em arável, essa ia de vento em popa. Só que precisava de vinte anos para amortizar o capital investido e começar então a obter lucros.
E onde ia buscar o financiamento?
Que vida difícil a sua!
O silêncio ganhou ainda mais força. Os sentidos ficaram em fase de vigília. O ar estava cálido. Era quase desesperante. Nem uma brisa para acariciar os rostos quentes do efeito do álcool. Começavam a ficar entorpecidos. As palavras gastaram-se com o caso da última formiga antropófaga que entretanto morreu no dilema de se devorar ou não a si própria. O silêncio da noite começava a envolvê-los num abraço convidativo ao sono. Nada os preocupava. Nem que caíssem do céu raios e coriscos.
Mas não iam dormir nessa noite porque, de repente, aquilo aconteceu. O zumbido caiu bruscamente sobre eles e olharam para o céu. Lá estava. Muito luminoso. Aquele objeto enorme, suspenso no ar e a rodar, lentamente. Saíram de uma embriaguez etílica para entrarem noutra embriaguez que os paralisava.
O fenómeno durou um minuto?,... dez?
O tempo deixou de ter significado.
«Sabes uma coisa, Pedro?»
«Diz.»
«Estou a pensar que este caso não pode ser tratado pela polícia. Imagina o ar incrédulo deles ao ouvirem dizer que o Mário foi sugado por uma luz.»
«E tens outra ideia melhor?»
«Estou a lembrar-me de uma coisa. É isso!»
«Isso o quê?»
«Se contactássemos um jornalista?»
«Já estás a ser mais racional. Talvez tenhas razão. Têm vindo nos jornais relatos de muitos casos no estilo deste. O nosso pode dar uma boa reportagem e chamar, de outra maneira, a atenção das autoridades.
«Genial! E o anonimato fica salvaguardado.»
«Vês? O próprio jornalista pode até interessar-se pelo caso. Mas vamos agora ao caso mais complicado. Onde vamos encontrar um jornalista de confiança. Conheces alguém?»
«Por acaso, sim.» Confirmou Pedro.
«Tens a certeza?»
«Já lá dizia Einstein que tudo era relativo.»
«Porra! Afinal, tens ou não tens?»
Pegar ou largar. E o Pedro não hesitou. Era a única saída.
«Conheci um jornalista há pouco tempo numa festa. É amigo de um colega meu. Parece ser um indivíduo até muito interessado pelos fenómenos insólitos. Até tem um arquivo especial.»
Tinha acabado de ler as anotações alinhavadas à pressa. Um caso bem bizarro, pensou. Acreditar ou não acreditar. Como de costume. Era apenas uma questão de palpite.
Três homens. Três amigos. Três bebedeiras de caixão à cova. Ficaram na cervejaria bebendo mais do que conversavam. A noite morna convidava a beber. Depois, foram curtir para a esplanada principal que já estava deserta àquela hora. Passava das duas da manhã. Que conversa? Negócios. Os sonhos lunáticos do amigo que desapareceu. Já estavam habituados. Depois dos “tempos áureos” nunca mais fora o mesmo. Tempos áureos? Que queriam dizer?, perguntou na altura. Lembrava-se que tinham olhado um para o outro e que não deram resposta. Primeira omissão, portanto. Nesses “tempos áureos” eles podiam ter sido, por exemplo, traficantes de drogas ou armas, ou de ambas as coisas.
«Cheira-me a esturro.»
A cerveja começava a fazer efeito. Sentiam-se entorpecidos. O sono ganhava espaço para se aninhar. Foi precisamente nessa altura que ouviram o silvo da máquina.
Leu em livros da especialidade que, quando do aparecimento de um ovni, nem sempre havia ruído. Por vezes, as máquinas pareciam deslocar-se silenciosamente, mas ouviram uma espécie de zumbido. Reações físicas: de súbito, ficaram estáticos. Reações psíquicas: estavam conscientes, mas bloqueados e não podiam comunicar um com o outro. Tinham o ovni na sua frente. Enorme. Luminoso. Opaco. Não se sentiam indispostos nem em pânico e só podiam observar o que se estava a passar a poucos metros. Eram meros espetadores de um sequestro que ocorria nas suas barbas e que teria consequências imprevisíveis. Ao mesmo tempo sentiam-se despidos interiormente, pressentindo que estavam a ser analisados até ao mínimo pormenor. Então, aconteceu o insólito. O amigo, já sob o globo, ergueu os braços e elevou-se, lentamente, aspirado pela luz. Mas pareceu que aquele “lentamente” durou para eles uma eternidade.
E afinal onde estava agora o tal Mário?
Sentia inveja. Nunca teve um “encontro imediato do terceiro grau”.
Como seria a sua reação?
Talvez se borrasse todo. Mas valia a pena. Deixou escapar um sorriso ante a perspetiva de se borrar. Devia ser algo incómodo.
O telefone retiniu. Pousou o documento sobre a secretária e estendeu o braço, contrariado. Tinham-lhe interrompido o fio do pensamento.
«Estás aí e não dizias?»
«Ah!, és tu...»
«Quem querias que fosse, Fonseca?»
Era a Odete, a secretária do diretor.
«Ele quer falar comigo?» perguntou.
«E aviso-te que não está bem disposto.»
«Calha bem. Também eu não estou bem disposto.»
Principalmente porque não conseguira ainda decidir-se sobre a veracidade do depoimento que acabara de ler. Precisava de tempo antes de falar com o diretor. Sentia-se um pouco sensível à sinceridade aparente das testemunhas.
«Então? Nem sequer me estás a ouvir. Parece que houve uma bronca com uma entrevista que fizeste a semana passada. Truncaste uma resposta. Se não te retratares bem podes pôr as barbas de molho. O homem que entrevistaste está disposto a processar o jornal.»
Encolheu os ombros. A entrevista que fosse para o diabo. E a culpa não era dele. Se lhe tivessem dado mais espaço no jornal já ele não emendava frases.
«Vou já...»
Passou entre as mesas de trabalho dos colegas e saiu da enorme sala. Agora atravessava, apressado, um corredor comprido. O som de fundo do matraquear das teclas vinha de mais longe. Entretanto a Odete esperava-o, ao fundo. O seu sexto sentido de mulher tinha-lhe dado um sinal que alguma coisa não estava bem.
Olharam-se. Ele sorriu.
«Estás zangada comigo. Não me esqueci do jantar de ontem. Só que tive uma coisa importante entre mãos...»
«Não podes é ver um rabo de saias! Traste!»
«Palavra. Ontem à noite fui abordado por dois indivíduos que me contaram uma história muito estranha. Calcula tu que...»
«Foi assim tão importante para esqueceres o jantar?»
«Já disse que não me esqueci.»
«E telefonaste?»
«Não faças beicinho, Odete. Este caso escalda por todos os lados e preciso de ir beber na fonte.»
«As tuas bebidas foram outras, estou mesmo a ver. Olha, o chefe quer falar contigo. É a respeito da tal entrevista.»
Fonseca acariciou-lhe os cabelos, sorrindo.
«Preciso de pôr-me ao fresco e já. Depois telefono-te.»
«Espera. E a entrevista?»
Impacientou-se.
«A entrevista que vá para o diabo. Diz ao velho que desapareci. Olha, fui levado por uma luz. Isso mesmo que estou a dizer-te. Como aconteceu ao outro tipo, a luz da nave sugou-me.»
«Sugou-te? E qual nave? Não estás bom da cabeça...»
«E tu também não vais ficar, Odete, quando te contar o raio da história. Agora vou indo. Ouve uma coisa, ainda te dás bem com o tipo dos serviços de segurança?»
«Não posso crer!»
«És um anjo. Espera pelo meu telefonema. Não saias de casa logo à noite.»
«E se tiver um compromisso?»
Beijou-a.
«O teu compromisso sou eu. Ou não?»
Tentei abrir uma janela no consciente. Só me lembrava daquela horrível queda que tinha durado uma eternidade. Pouco a pouco, a vista voltava. Primeiro, uma luz ténue. Depois tornou-se mais forte. Via. Finalmente, via. Estava deitado numa cama muito baixa, rente ao chão. O edredão era muito fino, suficiente contudo para me isolar do ambiente exterior em relação à cama. O colchão, muito macio, parecia não dar de si. Não vi qualquer almofada, mas a cabeça estava suficientemente alta.
Ainda deitado, olhei em volta. As paredes da sala, nuas, dum tom azulado, brilhavam. Não havia janelas ou portas. Nem mais móveis, a não ser aquela cama esquisita. Fiz um esforço enorme para recordar-me como tinha aparecido ali. A única coisa lógica que me ocorria é que talvez tivesse viajado no tempo. Sorri ante a ideia. Parvoíce. Não era possível viajar no tempo como quem trocava de camisa. Contudo, qualquer coisa parecia não jogar certo. Experimentei mexer-me. Ergui-me de joelhos, sem sair da cama e só então reparei no fato que tinha vestido. Uma espécie de fato de macaco formado por uma peça única, prateada, muito elástica, que se moldava perfeitamente ao corpo e não tolhia os movimentos. Não tinha um único botão, o que me fez franzir o sobrolho.
Então, como satisfazer as necessidades excretoras?
Saltei da cama e ensaiei alguns movimentos. Perfeito. Não devia ter estado muito tempo imobilizado. Fazia todos os movimentos sem problemas. Sentia-me tão à-vontade naquela indumentária esquisita que dir-se-ia já estar habituado a ela. As próprias passadas saíram normais.
Mas como sair daquela sala que não tinha portas nem janelas?
Aquilo era uma prisão. Então gritei. Estranhamente não ouvi o grito.
Mas o que não era estranho?
A parede devia absorver qualquer som. Gritei de novo. Confirmação. Não ouvi de novo o grito e também ninguém apareceu. Restava-me esperar.
Continuei a explorar a sala em que estava encerrado. Curioso! As paredes não tinham cantos. As portas deviam ser de abertura automática e, conforme já constatara, se existiam estavam bem dissimuladas. Depois, havia a cama. Era muito baixa e não devia assentar no chão branco, brilhante como as paredes e feito de um material sintético semelhante ao mármore, certamente mais resistente. Baixei-me a confirmar e bati mesmo no chão com as nozes dos dedos, continuando a não ouvir o mínimo som. Quanto à cama, talvez estivesse suspensa por uma almofada de ar e sob grande pressão. Era macia mas não cedia ao peso do corpo, nem mesmo quando me sentava.
Deitei-me na cama, de pernas fletidas, estiquei os braços para atrás e pus as mãos na nuca. Estava num sítio desconhecido e não sabia como aparecera ali e donde viera. As interrogações surgiam em catadupa sem que tivesse resposta para uma só: onde estava, quem era, quem me mantinha ali prisioneiro.
Ainda deitado, olhei em volta. As paredes da sala, nuas, dum tom azulado, brilhavam. Não havia janelas ou portas. Nem mais móveis, a não ser aquela cama esquisita. Fiz um esforço enorme para recordar-me como tinha aparecido ali. A única coisa lógica que me ocorria é que talvez tivesse viajado no tempo. Sorri ante a ideia. Parvoíce. Não era possível viajar no tempo como quem trocava de camisa. Contudo, qualquer coisa parecia não jogar certo. Experimentei mexer-me. Ergui-me de joelhos, sem sair da cama e só então reparei no fato que tinha vestido. Uma espécie de fato de macaco formado por uma peça única, prateada, muito elástica, que se moldava perfeitamente ao corpo e não tolhia os movimentos. Não tinha um único botão, o que me fez franzir o sobrolho.
Então, como satisfazer as necessidades excretoras?
Saltei da cama e ensaiei alguns movimentos. Perfeito. Não devia ter estado muito tempo imobilizado. Fazia todos os movimentos sem problemas. Sentia-me tão à-vontade naquela indumentária esquisita que dir-se-ia já estar habituado a ela. As próprias passadas saíram normais.
Mas como sair daquela sala que não tinha portas nem janelas?
Aquilo era uma prisão. Então gritei. Estranhamente não ouvi o grito.
Mas o que não era estranho?
A parede devia absorver qualquer som. Gritei de novo. Confirmação. Não ouvi de novo o grito e também ninguém apareceu. Restava-me esperar.
Continuei a explorar a sala em que estava encerrado. Curioso! As paredes não tinham cantos. As portas deviam ser de abertura automática e, conforme já constatara, se existiam estavam bem dissimuladas. Depois, havia a cama. Era muito baixa e não devia assentar no chão branco, brilhante como as paredes e feito de um material sintético semelhante ao mármore, certamente mais resistente. Baixei-me a confirmar e bati mesmo no chão com as nozes dos dedos, continuando a não ouvir o mínimo som. Quanto à cama, talvez estivesse suspensa por uma almofada de ar e sob grande pressão. Era macia mas não cedia ao peso do corpo, nem mesmo quando me sentava.
Deitei-me na cama, de pernas fletidas, estiquei os braços para atrás e pus as mãos na nuca. Estava num sítio desconhecido e não sabia como aparecera ali e donde viera. As interrogações surgiam em catadupa sem que tivesse resposta para uma só: onde estava, quem era, quem me mantinha ali prisioneiro.
Acho que estou amnésico. Nem sei como me chamo. Aconteceu-me qualquer coisa de grave. Penso e não consigo falar. Ou então não me oiço. Porquê, não sei. Talvez a amnésia seja temporária.
Tento encaixar-me no esquema. Não interessa falar. Mas o som só não se propaga através do vazio. Disparate! Tem que haver oxigénio. Pelo menos. Ah!, lembro-me de temas básicos da Física. Parece que a memória está a voltar...
Vejamos a velocidade da luz. Trezentos mil quilómetros por segundo. A Terra é o meu planeta. E há mais planetas do mesmo grupo da Terra. Júpiter podia ter sido uma estrela te tivesse mais massa.
Afinal não estou de todo amnésico. E também me lembro da noite em que fomos curtir a embriaguez para a esplanada.
Finalmente rasgou-se a parede em frente e entrou uma mulher. Acreditei que mais respostas iam aparecer. Ergui-me e encostei o occipital à parede. Não perdia de vista a mulher que tinha na frente. As feições do rosto eram normais e vestia como eu. O tecido que se cingia ao corpo era azul. Ela aproximou-se mais. Os olhos eram azuis-esverdeados.
«Curioso...»
A mulher sorriu.
«Os meus olhos dizem-te alguma coisa?»
Olhei-a, admirado. Não moveu os lábios mas tinha-a ouvido. Como se a voz estivesse sempre dentro de mim. Ao mesmo tempo, pareceu que ela descobriu o fio dos meus pensamentos.
«Onde estou?»
Podia falar sem que os lábios se movessem. Ela voltou a sorriu.
«Morri?»
«Claro que não. Estás numa nave. No espaço. Longe da Terra.»
Adeus, Terra. Adeus companheiros dos tempos gloriosos que nunca mais vos vejo. Adeus, vida. Não morri mas, se calhar, é pior do que se tivesse morrido.
«Quem me sequestrou?»
«Vieste por tua livre vontade. Desejaste, compreendes?»
Quando era criança e via uma estrela cadente formulava logo um desejo. Diziam que esse desejo era realizado. Nem que demorassem muitos anos. Crendices. Como aquela de apontar o indicador para as estrelas. Fazia, verrugas, diziam.
«E tu...?»
Não foi preciso completar a frase.
«Quem sou? É difícil explicar.»
«E para mim, difícil de compreender. Quando uma pessoa diz que não sabe quem é, das duas, uma: ou sofre de amnésia, ou não quer mesmo explicar.»
«Digamos que sou também a concretização de um sonho...»
«Um sonho?»
«Sim.»
«Um sonho de quem?»
«Teu. Um sonho que viveste há muito tempo. Em grande parte, é por mim que estás aqui.»
«Por ti? Mas afinal quem és tu?»
A mulher aproximou-se mais. Tinha qualquer coisa no olhar que me acalmava. Um olhar sereno.
«Olha bem para mim. Não te recordas...?»
«Não. Por acaso já vivemos uma vida a dois?»
«É verdade. Eu já vivi contigo. Há muitos anos. Um dia parti e tu ficaste. Não te recordas. É natural. Foste submetido a um exame complexo e demorado.»
«Que me fizeram? Só me lembro da noite de ontem, se é que foi ontem.»
«Digamos que descodificaram a tua a memória.»
«E agora sou um Alzheimer.»
«Alzheimer?»
«Perdi a memória.»
«Temporariamente. Mas vais recordar-te de tudo. Aos poucos. Tem paciência.»
Fiquei apreensivo. Não era nada agradável não me lembrar sequer do nome. Oxalá se concretizasse a informação que ela estava a tentar transmitir-me.
«Não te preocupes, Mário.»
Mário. Pelos menos já sei como me chamo.
«Vais recordar em breve quem és.»
«Vou acreditar em ti. Mas uma coisa: disseste há pouco a palavra "descodificaram". Então não tens nada a ver com o rapto.»
«A seu tempo saberás como aconteceu e talvez a razão porque foste escolhido.»
«A escolha foi provocada por um desejo que tive?»
«Muitos também desejaram e não foram escolhidos.»
«Então em que ficamos?»
«É complicado. Agora, concentra-te. Olha bem para mim.»
«Estou a olhar.»
Os olhos dela cresciam, cresciam. Verdes, azuis, cinzentos. Que parvoíce. Bailava na minha mente a frase "da cor do mar", mas não era de todo descabida. Os seus olhos faziam lembrar a cor do mar.
Quem era aquela mulher?
Os cabelos estavam escondidos por uma espécie de toca. O olhar parecia doce, expressivo.
«Já volto. Fica bem.»
Encaminhou-se para o sítio por onde entrou e a parede voltou a rasgar-se. Já do outro lado, sorriu. Depois, a parede fechou-se e deixei de a ver.
Voltou pouco depois.
«Agora os dias são mais longos...»
Ela sorriu mais uma vez. E eu sorri, como resposta.
«Lembras-te?»
Esfreguei os olhos. Não queria acreditar. De repente, ela lembrava-me uma mulher que, um dia, cansou-se de mim e dos meus fantasmas e partiu. Sem uma palavra. Sem um adeus.
«É a segunda vez que me acontece. Lembro-me, sim. Mas foi diferente. Ela estava vestida de preto. Não a reconheci pelo rosto.»
«Estás a sorrir, porquê?»
«Foi o beijo que me deu.»
Os carros da tropa já não passavam e as mulheres tinham-se afastado da praia, com os tabuleiros vazias, à cabeça. Só então dei conta de que o muro não era branco. Cinzento. Pormenor que me tinha passado despercebido até então. Olhei em frente. O mar estava calmo. Cinzento-escuro, também. Sem ondulação. A água devia estar muito fria. Afastei-me, sem pressas, ao longo do muro que separava a estrada da praia. De momentos a momentos os faróis de um automóvel iluminavam a estrada, emprestando-me breves sinais de orientação. Escurecera de repente. Caminhava indeciso, sem saber onde chegar. Para trás iam ficando monstros da noite, que não eram mais do que objetos conhecidos. Sentia-me perdido, sem saber que decisão tomar.
Recuando mais no tempo...
«O senhor está só.»
Aquela tarde do cinema jamais a ia esquecer. Ao regressar a casa, encontrei-me com um corpo frio e inteiriçado nos braços. A única meta que podia ter atingido também me foi negada. Manuela chegou ao limite inferior da felicidade. Viu a solução ideal junto ao fogão de gás, abrindo todos os bicos e respirando uma mistura de propano-butano. E mais nada. Nem uma carta a explicar o porquê daquela atitude levada ao extremo. Nem um simples adeus. Supunha que Manuela tinha tudo. Mas a mulher ingénua que encontrei um dia, por acaso, como fortuitos são sempre os primeiros encontros, e fiz minha amante, não era uma mulher vulgar. Queria-me todo. Em carne e espírito. Mas eu pertencia ao universo. Era um sonhador, um utopista. Foi uma solução prática. Resolveu da melhor maneira o seu problema. Agora era livre. Totalmente do universo e um pouco de outras mulheres que passariam na minha vida.
Passei pelo snack sem me deter. Só as luzes do balcão estavam acesas. Na mesa do costume, um vulto de mulher, talvez duas chávenas de café, talvez um copo meio de água, talvez nada. O copo já não roda. As mesas continuam vazias. Ao fundo, a máquina de discos, silenciosa. O balcão circular com bancos esguios em todo o percurso. Lá fora o ar está carregado de ozono. É sinal de trovoada. As gaivotas já não descem junto ao mar, em voo picado. Não há snack mergulhado no torpor duma tarde abafada de maio, tão característica de F... como, também, convidando à indolência. Há só noite. Noite que caiu sobre a cidade.
Quem é Patrícia? Quem sou eu?
Anoiteceu outra vez. Estou sentado na mesa do costume. Num instante, a bica e o copo chegam à mesa. Agradeço ao empregado. Está tudo igual. O snack quase vazio. O silêncio. O balcão. Os bancos altos, giratórios. O mar lá fora, calmo, como um lago. A máquina de discos, esquecida, ao fundo. Inevitavelmente, a cadeira na minha frente. Vazia. Como a noite. Vazia e longa. Sei disso. Há muito que sei do desencantamento de Patrícia. Um dia cansou-se de mim e partiu também sem um adeus. Sem uma palavra. E eu venho todos os dias aqui, onde fico, à espera, olhando a cadeira em frente que teima em ficar vazia. Como vazia é a minha vida. Acabou-se tudo, embora Patrícia ainda exista, hipoteticamente sentada naquela cadeira vazia. É a noite longa, refletida na dupla ausência de Manuela e Patrícia. A Manuela já não pode voltar, mas sei que virão outras Patrícias, de olhos da cor do mar, ou talvez castanhos, para se entregarem na cama até ao último desfalecimento. Tempo infinitamente pequeno para o outro que passávamos, frente a frente, vigiando cada um o silêncio do outro e seguindo, por vezes, o voo picado da gaivota até à rebentação das ondas. Mais tarde ou mais cedo tinha que acontecer.
Que faço neste snack que talvez já não exista?
Risco um fósforo na noite. Aspiro uma fumaça do cigarro e expulso, com força, o fumo. Depois, atravesso a rua em direção à muralha. O ruído das ondas está mais forte e a noite enche-se de clarões, vacilantes. Os pescadores entregam-se à sua faina pesada, com uma noite inteira à frente.
«E agora, Mário?»
«Deixa-me olhar-te bem. Estou confuso. És mais parecida com a outra mulher que viveu comigo. Chamava-se Patrícia.»
«Vais ter mais tempo para recordar. Ainda tens outra coisa para recordar...»
Bebiam cerveja. Copo a seguir a copo. Bebiam cerveja e conversavam animadamente. À medida que o tempo passava, as pessoas iam saindo da cervejaria e o ambiente tornava-se menos ruidoso. Acabaram por ficar sozinhos: ele, o Gaspar e o Pedro. Os três amigos inseparáveis. E o empregado, claro, que os olhava com um certo desespero.
Compreenderam finalmente que eram os últimos clientes e que o empregado queria fechar a casa. Então, encaminharam-se para o exterior.
A noite estava morna. Uma daquelas noites características de agosto. Passaram a praceta. Ao pôr do sol era digno de ouvir-se o espetáculo dos pássaros chilreando em sobreposição, num crescendo constante até atingir os limites do suportável. Depois, a noite caía e o sossego vinha. Nos troncos das árvores, escondidos entre a ramagem, os pássaros aconchegavam-se uns aos outros e ensaiavam um ligeiro esvoaçar, fase de transição para o sono da noite que antecedia mais um dia.
Chegaram à esplanada e pararam. Àquela hora estava deserta e às escuras.
«Ficamos por aqui?» perguntou Mário.
Como resposta, os outros sentaram-se. Estavam demasiado atordoados para reagirem. Talvez até ajudasse a passar o entorpecimento provocado pelos vapores etílicos.
Ali ficaram, quase sempre calados ou fazendo curtas intervenções que não tinham resposta. A noite era conselheira do silêncio e do sono. Teriam certamente adormecido alguns minutos depois se não surgisse aquilo. De repente.
Mário excitou-se. Sempre sonhara com aquele momento que estava a acontecer. Era real. Não precisava de beliscar-se. O enorme globo, suspenso, envolto em luz e esperança, parecia falar com ele. A seguir ao momento de excitação seguiu-se outro, de bem estar. Não estava receoso. Antes pelo contrário. Envolvia-o uma sensação estranha de alegria ao viver o momento. Queria subir ao globo. Entrar nele. Quiçá partir.
Era um convite?
Tinha quase a certeza que sim.
Olhou para os amigos. Pareciam estátuas. Estranhou.
«Não é fantástico?»
Não responderam. De certeza que estavam hipnotizados. Ele, não. Sentia-se solto, livre de movimentos. Apetecia-lhe aproximar-se daquilo que continuava suspenso, entre os prédios, iluminado por um branco intenso que quase o cegava. O convite continuava no ar.
Aproximou-se. Era atraído por qualquer coisa desconhecida, mas inevitavelmente irresistível. Parou debaixo do globo. Era enorme. Mas fascinante. Apesar da sua grandiosidade assustadora sentia no ar um ambiente amistoso, de segurança e, ao mesmo tempo, um convite surdo:
«Vem. Vem ter connosco. Somos amigos.»
Sentiu uma confiança sem limites ao apelo que vinha do ar. Quem quer que fosse prometia-lhe aquilo que ele costumava chamar impossíveis.
Então, abriu os braços e transformou-se num deus alado...
Ela continuava na sua frente.
«A mulher de preto foi uma sugestão.»
«E o beijo?»
«Bom, deixemos o beijo. O que interessa é que o teu desejo foi satisfeito. E agora, que queres mais saber?»
O contacto mental continuava a fazer-se perfeitamente entre os dois. Não precisavam de mover os lábios. De um momento para o outro estava perante o facto consumado do contacto telepático tão discutido nas comunidades científicas e nunca confirmado a cem por cento. Ouvia. Comunicava. Sem recorrência às cordas vocais. As ideias iam de cérebro para cérebro sem necessidade de qualquer estrutura de apoio.
«Telepatia?»
«Sim. Pura.»
Concentrou-se no seu rosto moreno. Aqueles olhos. Aqueles olhos muito expressivos lembravam-lhe a Patrícia dos primeiros tempos. O rosto sereno, um pouco alongado, onde uns lábios finos pareciam a todo o momento abrir-se para chamarem por um nome. O sorriso de mulher fatal que tanto o atraía.
«Esse encontro, casual ou não, quem sabe, está no desenrolar de todos estes acontecimentos.»
«Não é possível!»
«Achas que não?»
«Como podias ser tu?»
Como resposta, a mulher tirou a cobertura que lhe envolvia a cabeça e deixou ver os cabelos. Cabelos castanhos, curtos. Em poucos segundos passaram imagens estranhas que não admitiu serem verdadeiras.
Era um absurdo pensar que estávamos sentados ocasionalmente na mesma mesa. Observei-a com atenção. Na sua expressão havia algo de estranho. Os olhos dela, claros, contrastavam com o rosto moreno, por natureza. No inverno e no verão todo o seu corpo era moreno. O mesmo não se podia dizer dos olhos, que passavam por várias tonalidades claras, sendo cinzentos, azuis, verdes. Eu igualava-me a si próprio. O mesmo rosto, a aparência pendular de homem pensativo, a pouca verbosidade de todos os dias.
A Patrícia fora comunicativa, entusiástica. Mas o tempo e a minha presença amorfa encarregaram-se de esfumar, lentamente, a vitalidade preciosa que a tornava sempre jovem. De repente, deu consigo triste, reservada. Os primeiros sintomas tinham surgido no começo do ano. A erva ruim germinara da semente do contágio e proliferara de forma assustadora. Nada havia a fazer. Sentia-se vazia. Ausente. Talvez por isso, olhávamo-nos como se fosse a primeira vez, tentando sentir no ar as feromonas mágicas de cheiro que já não existiam.
O tempo vai correndo devagar, sem quebra, sem alterações sensíveis. Também, devagar, as nuvens vão tomando a configuração de monstros idealizados pelos génios mais maquiavélicos. Ora são figuras horrendas de hidras de múltiplas cabeças, ora tentáculos viscosos que tudo parecem agarrar.
«As tardes são mais longas...»
Baixei a cabeça. Talvez não tivesse ouvido a Patrícia. Apenas o copo rodou com maior velocidade e algumas gotas foram projetadas sobre a mesa. O copo ainda gira mais. Parece que estou interessado em vê-lo dançar, num rito grotesco, como se em cada volta, em cada disposição diferente das moléculas de água, encontre uma nova visão, uma nova forma, restos de imagens utópicas que o consciente já rejeitou.
Seria?, naquele agitar insistente estava vendo alguém?
Tolice. Mário! Só tens a teu lado a bela Patrícia que te seguiu sem saber porquê.
Há muitas coisas que acontecem e não têm razão de acontecer. Uma queda, por exemplo. Cai-se porque se escorregou, ou porque a ambição foi demasiado longe. Há muitas razões lógicas que explicam ou pretendem explicar os fenómenos ocorridos. Tudo é inevitável. O cigarro que se apaga na falta do comburente. As vozes que se perdem no vazio.
Mas uma mulher como a Patrícia...?
Nunca a soube definir. Nem cheguei a conhecer a verdadeira cor dos seus olhos. Agora estavam cinzentos, nublados. Mas atrás deles, sempre o mistério de um pensamento distante, a ideia convicta de que esse pensamento me atraiçoava.
Seria a Patrícia a mulher amedrontada pelo correr dos anos, aquela mesma mulher que viu fugir o amor e, desesperadamente, agarrou-se à primeira tábua que passou próximo?
Um dia, dormimos na mesma cama. Patrícia era meiga. Amadurecida pela experiência, satisfazia-me de maneira a não procurar outras mulheres. No abandono e submissão, atraía-me para um mundo carnal e, ao mesmo tempo, apocalíptico. Éramos dois corpos frementes, trémulos, que se apertavam na ânsia de um orgasmo infinito que só durava um segundo, frações de segundo, tempo sem tempo. Depois, o receio fatal da realidade, de nos encontrarmos, lado a lado, numa mesa de tampo negro, com duas chávenas vazias na sua frente e o vazio de nós próprios por única companhia.
«Vai anoitecer finalmente.»
Mas a vida continua a correr num rio que desenha meandros cada vez mais sinuosos. Sem pressa de chegar porque não tem onde chegar. O dia a dia mata-nos. O tédio começa a corromper o que resta da esperança. Um dia vamos cansar-nos de ver a gaivota que desce em voo picado até às ondas. Da mesa de tampo negro. Das chávenas vazias. Do copo meio de água. Da máquina de discos que teima em manter-se silenciosa.
A Patrícia que vejo na minha frente tem olhos claros. Cinzentos, azuis, verdes. Da cor do mar. Uns olhos diferentes dos meus. Como diferentes somos um do outro.
Pressinto que não tem uma ideia límpida, mas o seu subconsciente está trabalhando na sombra, conferindo, separando as águas. Mais tarde ou mais cedo, quando as gaivotas se afastarem para o largo e ela não mais as olhar com aqueles olhos claros, vou saber porque estava ali, naquele snack, junto a uma mulher que nunca cheguei a conhecer verdadeiramente. Há algo de errado. Desesperado, procuro uma ponta de realidade na própria vida. Na ausência da ligação. No agitar da água que um copo encerra. Mas ainda é cedo para descobrir quando e onde errei. Ou talvez que nunca descubra (1).
«Gostavas de mim?»
Olhei-a fixamente. O mesmo olhar doce e, ao mesmo tempo, estranho. Queria compreender, mas preferi não responder e ir por outros caminhos mais pantanosos, onde me sentia mais à-vontade.
«És mesmo tu?»
«Podes crer.»
«Diz-me que morri e tu também! Que estamos no céu ou isso.»
«Céu? O que é?»
Estranho!
«Perdoa-me por ter fugido. Já não havia saída. Sei que te fiz sofrer. Gostava de ti. Muito! À minha maneira. Mas tínhamos chegado ao fim da estrada. Tu estavas sempre mergulhado nesse fantasma obcecante que te torturava.»
«Onde estou, Patrícia?»
Provavelmente do outro lado da porta.
Aí a vida também era corpórea?
«Conforme já te disse, no interior de uma nave interestelar. Foi o que sempre desejaste. E eu estou aqui a teu lado, porque também foi o desejo do teu subconsciente.»
Não sentia vontade de a abraçar. A nossa comunicação era fria. Distante. Estranhamente distante. Faltava-lhe qualquer coisa e isso assustava-me. Assustava-me muito.
«Estou aqui para pôr fim à frustração em que viveste desde que te deixei.»
«Para onde foste?»
«Para caminhos desencontrados dos teus.»
«Ficaste a odiar-me?»
«Apenas quis sair da tua vida. Já não dava.»
«E agora voltaste e dizes que te chamei. E a Manuela?»
«Admitimos essa hipótese. Mas ela morreu. Lembra-te. Tiveste nos braços o seu corpo frio.»
Ela disse "admitimos"?
A maldita mistura de propano-butano que matou Manuela. Vi-a hirta, serena. Tentei reanimá-la, mas o seu corpo já estava frio. Era demasiado tarde. Vi o coveiro deitar pazadas de terra sobre o seu caixão.
«Viste?»
«Perdoa-me, estou a mentir. Não consegui. Mas como sabes que não estava lá...?»
«Já te disse há pouco que eles sondaram a tua memória.»
«É verdade. Mas deixa que te veja melhor. Foi há muitos anos que vivemos juntos e o teu rosto permanece igual. Nem uma ruga. Continuas jovem. E eu? Parece que sou teu pai, que tenho o dobro da tua idade!»
«Como assim?»
«O que acabei de dizer.»
«Não disseste à tua amiga que te parecia teres dois rostos? Voltaste a ser jovem, Mário! Eu vejo-te jovem. Como no tempo em que nos amámos.»
«Não pode ser verdade!»
«Mas é.»
Agora acreditava. Não sabia como era possível, mas tinha outra vez na frente um dos passados que deixei escorregar. Não podia perder a oportunidade que me era dada de novo. Não sabia a quem devia agradecer.
A Deus?
«Patrícia, isto é sonho?»
«Não. De certa maneira é a concretização de um sonho antigo. Mas antes de continuarmos a conversar, observa o que se está passar...»
Agora acreditava. Não sabia como era possível, mas tinha outra vez na frente um dos passados que deixei escorregar. Não podia perder a oportunidade que me era dada de novo. Não sabia a quem devia agradecer.
A Deus?
«Patrícia, isto é sonho?»
«Não. De certa maneira é a concretização de um sonho antigo. Mas antes de continuarmos a conversar, observa o que se está passar...»



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