quinta-feira, 27 de julho de 2023

Quando a Terra ficou em perigo (3)


Na casa da Mafalda...
«Podemos começar?» perguntou Pedro.
«Acho que sim. Entretanto chega o Tomás. Aquele amigo de que lhes falei. É astrónomo. Conheci-o há uns anos numa conferência. É pessoa de confiança, descansem.»
«Ah sim.»
«Diz então, Pedro.»
«Então.»

«O tempo não está para brincadeiras.»
«Pronto, tens razão. Vamos pôr as coisas no seu sítio. Conforme percebi, esse cataclismo no Sol, a ocorrer, não deixa a mínima hipótese de sobrevivência se ficarmos expostos. Primeiro ponto: precisamos de encontrar um abrigo à prova de radiações. Aqui não está o problema. Conforme sabem, há muitos abrigos que foram construídos por empresas exclusivamente para os chamados sobrevivalistas, que sonham, a cada momento, com a eclosão de uma guerra nuclear. Nem todos os abrigos estão vendidos. Portanto, há que comprar quanto antes um desses abrigos. Fundamentalmente é uma vivenda com uma cave transformada para sobrevivência às consequências de uma guerra nuclear. Segundo ponto: temos o dever de alertar o maior número possível de pessoas para o perigo que correm, embora o tempo não corra a favor. Certo? Certo. Mas quando?»
«Mais tarde quanto for possível. O pânico que advém daí só complica as coisas. Além do mais, não vai haver abrigos para todos.»
«Admiro a tua frieza, Gaspar. Mas tens razão.» Concordei. «E como vamos fazer?»
«Talvez consiga uma entrevista na televisão. Tenho amigos que vou tentar convencer.» Disse a Mafalda.
«E quem vai à televisão?»
«Tu mesmo, Mário.»
«Certo. Mas se for direto ao assunto não consigo nada. Cortam logo a emissão.»
«Tens razão. Vai com um álibi, Mário.» Esclareceu o Pedro. «Por exemplo, fala sobre a poluição. É um tema atual que tem sempre muita audiência. No momento oportuno, rodas cento e oitenta graus e entras no assunto a matar.»
«E fica lançado o pânico na mesma.»
«Têm outra ideia melhor?»
«Tenho eu.»
Viraram-se para o Gaspar.
«O tempo não corre a nosso favor. Tratamos de comprar o abrigo, os víveres e todo o material necessário. Substituímos a entrevista na televisão por outra forma de publicidade. Podemos lançar prospetos de um avião.»
«Desculpem, se não se importam eu sou a favor da entrevista na televisão. O impacto será maior. Devemos ser realistas. Já não há tempo para preparar as pessoas. Têm que entrar em estado de choque para reagirem, com pânico ou sem pânico.» Disse a Mafalda.
«Não concordo muito com essa ideia. Definitivamente o que fazemos?»
«A entrevista. Mas não pomos de parte a tua ideia, Gaspar.» Decidi. «Agora vamos tratar do abrigo. Lembrem-se que eles avisaram-me que nunca antes de dois anos a Terra ficará livre de radiações letais.»
«Então precisamos de adquirir muitos víveres e não vão chegar para todos. Será que devemos a avisar as pessoas?»
«E tu que não manifestasses o habitual egoísmo, Gaspar.» Lamentou-se a amiga.
«De certa forma ele tem razão. A entrevista deve realizar-se dois ou três dias antes da eclosão prevista. Logo de seguida, seguimos para o campo, para um sítio longe da cidade. É verdade. Não há víveres no mercados que cheguem para um ano e, ao mesmo tempo, para milhões de pessoas. Isso põe-nos num beco sem saída. Fui alertado pelos meus amigos. A propósito, sabem que nunca os vi, digamos, materialmente? Deviam ser horríveis à vista. Comunicávamos telepaticamente. Um dia conto-lhes melhor como se passou tudo. Se entretanto houver esse dia. Mas voltando ao assunto, lançamos o alarme já depois de termos preparado tudo.»
«E se contactássemos o Governo?»
O Pedro levantou uma hipótese que logo foi afastada. Era o mesmo que parar o comboio com o freio a fundo. Claro que iam pedir provas que não tínhamos. Mesmo que as tivéssemos eram logo escamoteadas. Definitivamente seguíamos o projeto da entrevista. À medida que esta fosse decorrendo, os objetivos iniciais sofreriam alterações de uma forma subtil, sem que alguém desse conta.
«Preciso de uma hora. Uma hora nobre. De preferência a seguir ao jantar. Achas que consegues, Mafalda?»
«Vamos a ver...»
«Tenho umas coisas giras relacionados com o Egito, mas antes inicio uma dissertação sobre o aumento anormal da percentagem de dióxido de carbono na atmosfera e das consequências que daí resultarão. Ou melhor, que já estão a acontecer. Estamos em cima das previsões mais pessimistas. Que consequências? Há duas hipóteses.»
«Certo, Mário. Continua.» 
«Para alguns cientistas, o efeito de estufa que já está a fazer-se sentir vai levar à subida média da temperatura do nosso planeta em três ou quatro graus. A acontecer, a fusão das calotes polares provocará a submersão de largas zonas periféricas dos continentes, o que será uma catástrofe. Mas outro grupo de cientistas prevê precisamente o contrário: os raios solares não vão penetrar na atmosfera, sofrendo um fenómeno de refração e a Terra arrefecerá. É um bom tema a explorar. Teremos as pessoas sensibilizadas. A entrevista irá então levar-nos até outros caminhos, sempre em aproximação ao objetivo final. Vamos a ver se consigo chegar ao fim. O nosso objetivo é alertar o maior número possível de pessoas para se prepararem para o holocausto. Mas adiante. Alguém terá que fechar a porta e, nessa altura, já estaremos longe e em segurança.»
«Essa é a tua leitura, Mário. Talvez a minha, também. Mas não há outra solução. Adiante, portanto. Não temos tempo. Enquanto eu e tu preparamos a entrevista, teremos de pôr em andamento o nosso plano de sobrevivência. A Mafalda e o Gaspar tratam da logística. Alimentos enlatados, água, medicamentos, etc... tudo calculado para, pelo menos, dois anos de sobrevivência. Entretanto eu vou tentar adquirir o abrigo ideal para nós.»
«E o dinheiro?» perguntei.
«Dinheiro não falta por aí.»
«Que queres dizer, Gaspar?»
Sorriu e entendi logo. Os bons velhos tempos estavam de volta.
«Mas com muito cuidado. Quero tudo perfeito, sem falhas.»
Nunca mais esqueci aquele dia negro.
«E nós dois?» perguntou o jornalista.
«Serão nossos convidados. O Tomás fará um diário durante o tempo que estivermos no abrigo. Vai ser muito importante o seu depoimento se conseguirmos sair sãos e salvos desta complicação. A Odete dá-lhe apoio moral...» Disse, sorrindo. «Quanto ao abrigo, tem que ser também antissísmico.»
O Pedro não deixou de perguntar:
«Posso saber porquê?»
«Acontece que já li em qualquer sítio que há uma correlação entre a atividade sísmica e a atividade solar. Os homens da ciência não sabem bem o motivo. E acontece, por acaso ou não, que nestes últimos tempos tem havido intensa sismicidade na zona mediterrânica.»
«Também eu li. A partir do final do ano, os sismos vão aumentar de intensidade e também de frequência.» Reforçou a Mafalda.
«Não exageremos. Infelizmente ainda não há certezas no campo das previsões sísmicas, mas mais vale prevenir do que remediar. O abrigo terá que ser antiatómico e antissísmico. Mais alguma coisa?»
«Para quando queres a entrevista na televisão?»
«Conforme já disse, Mafalda, dois três dias antes do limite inferior da previsão.»
«E esse teu amigo, quando chega?»
«Já cá devia estar. Ficou preso por algum contratempo.»

A entrevista da televisão realizou-se na data prevista. A moderadora era uma amiga da Mafalda, mas não sabia dos seus objetivos finais. Apenas tinha o guião relacionado com a poluição.
Comecei por abordar toda a problemática à volta da poluição ambiente, dissecando o tema de uma maneira cautelosa, sem me alongar demasiado, referindo que, “por três ou quatro vezes”, a Terra esteve em perigo de hecatombe, sendo a mesma adiada para um futuro relativamente longínquo. Ainda não tinha chegado a hora do monstro. O efeito de estufa provocado pelo aumento da emissão de gás carbónico para a atmosfera e a consequente subida de temperatura para além das previsões consideradas mais pessimistas, além do efeito acrescentado dos famosos CFC (cloro-fluor-carbono), utilizados desde 1935 como refrigerantes dos frigoríficos e nas bombas aerossóis tão utilizadas pelas pessoas na higiene pessoal e também do ambiente. Estes últimos compostos subiam na atmosfera e destruíam a camada protetora de ozono situada na estratosfera, que funcionava como escudo para os raios ultravioletas, perigosos para a integridade dos seres vivos. 
Depois, deu-se e continua a ocorrer o abate sistemático das árvores das florestas. A insensatez e a ganância do homem estavam a levar à extinção de muitos seres vivos que povoavam os oceanos e os continentes. A poluição da atmosfera subia para níveis nunca imaginados. 
Foram estes os tópicos que foquei, aqui e ali interrompido por uma pergunta oportuna da moderadora. Sem ser brilhante, despertei a atenção suficiente para a abordagem do tema que, na realidade, me levara ao palco das grandes audiências. Tal qual como desejava.
«Já me falou em alguns perigos que parecem espreitar a humanidade desde há alguns anos. O problema não é novo. Desde a revolução industrial que começou a agravar-se. Sim, porque poluição da atmosfera houve sempre. Senão vejamos: os gases libertados nas erupções vulcânicas, fundamentalmente dióxido de carbono, dióxido de enxofre, e de novo o dióxido de carbono expelido para a atmosfera pelos animais. Mas as algas verdes e as plantas encarregaram-se da regeneração do sistema, levando a um equilíbrio que nunca esteve em causa. De facto, a curto ou médio prazo não é aí que reside o perigo, mesmo com a intervenção do homem levada a um grau quase inaceitável. Mas o senhor não veio falar só de um tema que já toda a gente conhece. Sabe que há meios de minimizar este perigo sempre latente.»
Olhei espantado para a moderadora. Mas então a Mafalda...
«Sim. Toda a gente sabe, ou tem a obrigação de saber, que o homem iniciou uma caminhada sem regresso rumo à sua extinção e de toda a vida nos oceanos, na terra e no ar. A industrialização maciça, a energia nuclear e o aumento exponencial da população, neste último caso sobretudo nos países do terceiro mundo, são fatores irreversíveis, não deixando de crescer duma maneira alarmante. Os mares estão transformando-se em autênticos reservatórios de resíduos e a capacidade de regeneração dos mesmos pode vir a ser ultrapassada. O caso do Mediterrâneo é já alarmante. Cem milhões de pessoas dependem da sobrevivência desse mar. Cerca de oitenta por cento de todas as águas do litoral são canalizadas para o Mediterrâneo sem qualquer tratamento adequado. As matérias poluentes aumentaram consideravelmente e o Mediterrâneo já não poderá, futuramente, absorver tudo. Julgo que está condenado à morte. O mesmo aconteceu com o Báltico, só que a Natureza esteve pelo seu lado. Sabe disso. Uma tempestade gigantesca varreu as águas, agitando-as e renovando-as. Poderá estar outra vez anos e anos a poluir-se. Mas são casos pontuais. Chegará o tempo da agonia dos grandes oceanos e isso vai acontecer num futuro não muito longínquo, mas que não é para as próximas gerações. Pelo menos nós já cá não estaremos para testemunhar as previsões dos cientistas que, de forma, alguma exageraram. Há outros meios, que não dependem de nós, de no futuro não haver, como dizer... futuro. Futuro para si e para mim. Para ninguém.»
«Que está a querer dizer? Aguçou-me o interesse.»
Afinal ela sabia.
«Já lá chegaremos. Desculpe, esqueci-me do seu nome.»
«Teresa.»
«Pois bem, Teresa, se não se importa, vamos agora para as grandes alterações de meio ambiente e de clima que o homem provoca quando desafia as leis da Natureza. Estamos em 1980. Por exemplo, temos o caso da barragem do Assuão. Logo que atinja o nível máximo de água, formará um lago com cerca de quinhentos quilómetros de comprimento. Vejamos então o que daí resulta. O lago perde por evaporação, em cada ano, mais de dez mil milhões de metros cúbicos de água. Essa evaporação provoca um arrefecimento grande do ar, pelo que as massas de ar quente do deserto juntam-se ao ar frio do lago. Assim surgem os grandes ventos que assolam, cada vez mais, o Egito. Antes da barragem ser construída, cem milhões de toneladas de limos iam nas cheias do Nilo, todos os anos. Atualmente ficam no fundo do lago e as culturas do vale do Nilo são privadas desse adubo. Os agricultores fogem para outras regiões, ou utilizam adubos caros que são pouco eficientes. Certas espécies de peixes estão ameaçadas pela extinção e outras multiplicam-se anormalmente. Além disso, um perigo paira sobre o Cairo. Em caso de desastre na barragem haverá uma catástrofe. A cidade ficará completamente submersa pelas águas.
«Isto é, de facto, um caso pontual e faz parte do tal caminho sem regresso que o homem encetou.»
«Concordo. Não há um travão possível e torna-se inevitável a ocorrência de um desfecho dramático.»
«Quer dizer que a nossa geração está condenada.»
Senti a proximidade do momento desejado. Esbocei um sorriso nervoso, mas logo me recompus.
«A médio prazo, ainda não. Mas os últimos estudos ultrapassaram todas as previsões.»
«Não estou a entender. Você disse: “A médio prazo, ainda não”. Mas os investigadores não alteraram as previsões? Pensa que os países mais industrializados vão desacelerar na sua contribuição para o aumento da poluição? Os homens vão ter juízo e voltarão atrás? Sendo assim, o efeito de estufa estabilizará. As emanações de gases como o dióxido de carbono e anidrido sulfuroso descerão para níveis menos assustadores. Mas, para que tal aconteça, tem de existir um plano a nível mundial e, que eu saiba, os Estados Unidos não abdicaram de aumentar a produção, de continuarem a ser o país que mais polui. São os senhores do mundo. E há que contar com os gigantes adormecidos, como a China e a Índia, que agora começam a acordar. Virá o tempo das suas indústrias se tornarem poderosas, expandindo-se para fora do seu amigo. Quem os vai travar?»
«Infelizmente não é verdade existir uma política de contenção. Continuamos a viver numa selva caótica em que os mais fortes estão a devorar, indiscriminadamente, os mais fracos e viram-se agora uns para os outros, exibindo meios persuasivos que podem levar a extremos nunca imaginados. Os países mais industrializados estão a produzir para a sua sociedade cada vez mais consumista e desperdiçadora. Ao mesmo tempo, a subnutrição continua a crescer nos países submundistas.»
«Então...»
«É muito grave, mas não é disto que quero falar agora.»
Respirei fundo. Chegara o momento da verdade.
Como abordar?
Lembrei-me de Orson Wells e da sua emissão radiofónica que abalou um país ao provocar o pânico em pessoas apanhadas desprevenidas. Sim. Tinha pronta a ativar uma arma de dois gumes. A última palavra era minha, mas sentia-me um deus menor. Afirmar que haveria um holocausto solar era muito fácil, bem como que a corrida aos abrigos antiatómicos em exponencial e estes seriam insuficientes. Era fácil dizer que muitos humanos iam sucumbir, mas também muitos escapariam ao cataclismo anunciado.
E todos não tinham direito a sobreviver?
«Por favor, seja explícito.»
Ganhei forças.
«Pretendo dizer que há um grande perigo que espreita a humanidade.»
«Mas já o disse. Toda a gente o sabe e também toda a gente o ignora ou não pode evitar. Mal se nasce, consciente ou inconscientemente começa-se a contribuir para a poluição do ambiente. Não é disto talvez que quer falar agora.»
«Tem razão. Vou falar de um perigo iminente, bem mais grave.»
«Resuma. Não temos muito mais tempo.»
«De facto o tempo já não corre a nosso favor. Vou voltar a alguns dias atrás e a uma praia, igual a muitas outras, que acolhe todos os verões cerca de cinco milhares de banhistas. Eu fui um deles. Também me senti com direito a férias e a repouso. Mas adiante. Numa noite igual a muitas outras, mas diferente, como todas as noites são diferentes, aconteceu-me uma coisa muito estranha. A princípio, julguei que sonhava. De repente fui atraído para o interior de um objeto voador esférico que apareceu a pairar a poucos metros de distância, a meio da estrada, entre os prédios. Na nave, depois de me terem feito um exame exaustivo ao cérebro e de saberem tudo o que queriam, ou conseguiram saber, contactei telepaticamente com um androide, emissário dos tripulantes invisíveis aos meus olhos.»
Interrompi por uns segundos, mas logo ela me fez um gesto impaciente.
«Esse ser quase humano, uma mulher, conduziu-me numa visita à nave. Os seres que tripulavam a nave e que eu não conseguia ver, segundo a minha interlocutora tinham formas cerebroides, horríveis na aparência. Controlavam numerosos painéis luminosos, instalados num compartimento enorme. Esses painéis deviam dar-lhes todas as informações que precisavam, não só parâmetros de navegação como de observações trazidas do exterior. Disseram que estavam nos confins do sistema solar, satelitizados num planeta para além de Plutão e que ainda não foi descoberto na Terra pelos nossos astrónomos. Tinham vindo de uma galáxia longínqua, de descoberta em descoberta, e sempre guiados por um lema: atingir novos conhecimentos e nunca intervir no dia a dia das civilizações. Fui escolhido para seguir com eles. Não me perguntem porquê. Sempre sonhei com o espaço sideral, sair das limitações a que estamos cingidos, mas certamente não foi essa a razão da escolha. Quanto a mim a escolha foi aleatória. Convidaram-me a seguir com eles e prometeram-me a eternidade. Não aceitei. Porquê? Por um impulso atávico, mais forte que o desejo que me acompanhou em toda a vida.»
«Esses seres descobriram outros planetas com vida?»
«Sim. Assistiram à aurora de outros seres inteligentes, ao seu declínio, e ao seu ressurgimento depois da destruição. Para eles o tempo não conta. São imortais. Descobriram a clonagem. Digamos que fazem, periodicamente, cópias deles próprios.»
«Continue...»
«Quando contactaram comigo estavam numa órbita longínqua da Terra, estudando o único planeta do sistema solar capaz de abrigar a vida multiforme e dar-lhe continuidade e evolução. Tudo era muito natural. Faziam-no por rotina. Depois de estudos diversificados descobriram que se passava algo de anormal no Sol. Então aprofundaram o estudo e concluíam que o nosso Sol estava a colapsar. Não tinham capacidades técnicas para intervir na química daquele astro. Só podiam alertar. E foi o que fizeram.»
«Continue, por favor!»
«Que aconteceu, Teresa? Estão a fazer um sinal. Não querem que eu conte, mas eu conto. Custe o custar. Temos poucos dias à nossa frente. A vida na Terra está ameaçada a curto prazo. Escusam de fazer sinais!»
«Mário, já não vale a pena. Acabaram de cortar a emissão.»

Voltámos a reunir-nos na casa da Mafalda, desta vez contando com mais dois companheiros. O astrónomo meu amigo e a entrevistadora, amiga íntima de Mafalda, que afinal sabia de tudo o que se passava. Falhada a tentativa de aviso pela televisão do perigo que ameaçava a Terra, o grupo ultimava o projeto do Gaspar. Última oportunidade. Lançariam panfletos de aviso dum avião. Sem dúvida que o sucesso estava garantido. Tinham a seu favor a experiência do tempo dos grandes ideais passado na clandestinidade. Esse processo de propaganda teve sempre um impacto pronto e eficaz. Assim, o sucesso estava garantido e não havia possibilidade de qualquer interferência. O avião seria a última oportunidade de lançarem, quase em cima do acontecimento, a informação que iria decidir sobre a vida de muita gente.
O tempo continuava a correr, implacável. Decidi encarregar o Pedro de fazer a encomenda dos folhetos numa tipografia clandestina de que, em tempos, tínhamos sido clientes. Desta vez agiríamos pelo seguro. O piloto do avião seria o Gaspar. Quanto à compra do abrigo e das provisões...
Fui interrompido pela campainha da porta. Olhámos uns para os outros.
«Quem será?» perguntou o Pedro.
«É melhor não abrirmos.» Aconselhou o Gaspar.
«Abre, Mafalda. Claro que é o Tomás.»
Passo a descrevê-lo. Altura média, olhos claros, cabelos louros e uma barba rala, por fazer. Aparenta uns quarenta anos. Ar determinado que lhe vinca a fisionomia.
Apresentei-o a todos. Ele complementou a apresentação.
«Chamo-me Tomás Caetano e sou investigador do Observatório Central Astronómico. Já sabia pelo Mário da emissão televisiva. Parabéns, meu amigo. Foi pena não teres conseguido ir até ao fim.»
«Obrigado, amigo. Bem tentei. Mafalda, por favor, uma cadeira para este nosso amigo. Queres beber alguma coisa?»
«Bebo o que beberem.»
«Pedro, por favor traz copos e uma garrafa de whisky.»
Fez-se silêncio por segundos. Entretanto o Pedro voltou com uma garrafa, copos e uma pergunta para mim.
«Que é feito do Fonseca e da Odete?»
«Decidiram não nos acompanhar.»
«Porquê? Estavam tão entusiasmados!»
«Foi uma opção de última hora. Em contrapartida, ele prometeu publicar um extenso artigo mal o nosso grupo partisse para o abrigo. Nesse artigo vai expor, sem grandes alarmismos, a minha odisseia entre os alienígenas e a mensagem que trouxe deles em que alertavam para o perigo iminente localizado no Sol e que ameaçava o futuro da Terra.»
«Menos dois. Vão fazer falta.»
«Pois vão, paciência. Ao mesmo tempo ficamos com mais reservas disponíveis.»
«Água lisa ou com gás?» perguntei ao recém chegado.
«Sem nada.»
«É como eu gosto.»
Fizemos uma pausa enquanto o Pedro deitava whisky nos copos.
«Podes falar. Somos todos ouvidos.»
«Conforme já lhes disse, sou investigador. Mais propriamente, astrónomo. Há de facto qualquer coisa anómala no nosso Sol.»
Olhámo-nos, resignados. Queríamos ouvir um desmentido. Paciência. 
«Descobri há algum tempo várias manchas em agregação com uma velocidade de crescimento anormalmente alta. Estão a formar uma mancha única, gigantesca. Nunca vi coisa igual em toda a minha vida de astrónomo e olhem que tenho muitos anos de experiência. Penso tratar-se de um caso muito sério.»
«Doutor... Trouxe-o a providência.» Disse o Pedro.
«Aqui não há doutores. Tratem-me por Tomás. Não é bem assim. Nada posso fazer senão informar que este processo que se desencadeou é irreversível. Só contam com a minha amizade e apoio científico.»
«O que é muito bom. Os extraterrestres sempre têm razão. Avisaram-me que se prepara uma explosão solar com um raio de ação de mais de trezentos milhões de quilómetros. Segundo eles, a cintura de Van Allen e a camada de ozono são impotentes para reter radiações tão poderosas, tão penetrantes e mortíferas como estas. Só um abrigo subterrâneo de dupla parede e teto de metro e meio de espessura poderá impedir a penetração das radiações. Conforme lhes disse, alertaram-me para as consequências deste cataclismo. Queria avisar as pessoas do perigo que correm. Assim preparámos a entrevista na televisão. Agora que saiu furada, resta-nos fazer pequenas ações, até porque o tempo limite de segurança deve estar a ser ultrapassado e, em cima do acontecimento, seria mau se as pessoas entrassem em pânico. A atitude de não espalhar a notícia por parte dos responsáveis da televisão acaba por ser lógica, embora não fosse esse o intuito que os levou a interromper o programa. Penso que a interrupção se ficou a dever ao tabu criado à volta dos extraterrestres. Tiveram receio de cair no ridículo. Mas voltando atrás: onde se encontrariam, à última hora, abrigos e alimentos conservados em quantidade suficiente para tanta gente? O tempo de permanência nos abrigos vai ser demorado. Seria o salve-se quem puder, o saque e o assassínio. Igualmente as pessoas que se consideravam "mais esclarecidas" poderiam não reagir. Não sei o que será melhor. Podemos também lançar panfletos de avião. Que achas, Tomás?»
«Acho que procedem muito bem. Uma atitude lógica pode ser desumana. E o mais lógico, dada a proximidade do cataclismo no Sol, porque penso que está próximo, seria pensarem na vossa própria sobrevivência e na de mais alguns amigos. Quanto ao resto, que se tramassem. Mas fazem bem em lançar os panfletos. Muitos hão de sobreviver. Já ouviram falar no sobrevivalismo?»
O Pedro admitiu ter ouvido falar.
«Isso faz lembrar sobrevivência.»
«Trata-se de um fenómeno que está a ocorrer nos Estados Unidos. Alguns fanáticos norte-americanos pensam que o colapso da nossa civilização, pelo aparecimento de uma catástrofe, está por um fio. É apenas uma questão de tempo e estão a preparar-se para essa eventualidade. Começaram a abandonar as cidades e a dirigir-se para os campos, onde constroem a sua residência rural que, aparentemente, é uma casa vulgar. Só que por baixo há um abrigo à prova de radiações, todo em paredes duplas e um teto com mais de um metro de espessura. Entretanto adquiriram víveres desidratados, que empresas especializadas fornecem, e reservas de água para muitos meses. Complementando todo este cenário "sobrevivalista", armaram-se até aos dentes e treinam-se fazendo exercícios de tiro e de socorrismo, onde não falta a aprendizagem de como se extrai uma bala, na eventualidade de algum dos seus ser ferido. Têm tudo estudado ao ínfimo pormenor. Quando li isto achei que era um exagero. Agora não digo nada.»
«Mas para quê armarem-se?» perguntou o Gaspar. «O motivo que os levou a instalar os abrigos ainda compreendo. Agora as armas, aparentemente não têm razão de ser.»
«Numa situação de crise, após o colapso, pensam que poderão ser invadidos pelas hordas oriundas dos centros urbanos que procurará, a todo o custo, alimentos. Quando se estabelecer o caos, as pessoas matarão por um só pacote de arroz. É esta a situação na América atual. Parece voltar-se à época feudal. As pessoas organizam-se em grupos e começam a ter medo de sair das proximidades dos abrigos. Mas o mais curioso é que outros norte-americanos, que não receiam a guerra nuclear que, quanto a eles, é inevitável acontecer, começam também a partilhar as ideias destes grupos. Pensam que a desagregação económica levará as populações urbanas esfomeadas a entrarem em pânico e a procurarem em massa os campos, como uma praga de gafanhotos que não deixará uma única folha. Estas pessoas são neste momento as únicos preparadas para a eventualidade de uma catástrofe.»
A história dos sobrevivalistas era curiosa. Esse fenómeno recente constituía a derradeira esperança de uma certeza à continuação da humanidade. Porquê só estes indivíduos quase paranoicos?
Moralmente não estava certo, pois todos nasciam com os mesmos direitos. Ao mesmo tempo acreditava que seria possível levar para a frente o empreendimento gigantesco de carregar no botão que acionasse a mobilização geral de forma a salvar a grande maioria e não só os sobrevivalistas. 
O corte propositado no programa de televisão tinha sido o primeiro aviso. Outras tentativas de comunicação de geral seriam abortadas. E o dia crítico aproximava-se. As comunicações por via rádio começariam a apresentar interferências prolongadas.
«Que fazemos? Não dispomos de muito tempo, pois começa a tornar-se perigosa a exposição ao ar. Segundo os cálculos feitos pelos meus interlocutores extraterrestres chegou o tempo de cuidarmos de nós. Pomos em ação o projeto do avião e acabou-se. Cada um trata de si. É muito arriscado ficarmos mais dias cá fora.»
«Tenho medo do amanhã...» Queixou-se a Teresa.
«Antes de partirmos para o abrigo, a Mafalda encarrega-se de redigir a mensagem. Depois, enquanto o Pedro contacta com o Lopes da tipografia, tu, Gaspar, vais ultimar o aluguer do avião. Tens uma manhã para lançar os panfletos. E já sabes, lanças os panfletos sobre as zonas mais povoadas. Mas tem cuidado, não te deixes agarrar.»
«Fica descansado.»
«Pronto. Vocês ficam com o Toyota e nós vamos no camião com tudo o que é necessário. Penso que nos vais acompanhar, Tomás. Tens mais alguém...?»
«Não. Vivo só. Digamos que sou um solteirão incorrigível. E quando partimos?»
«Amanhã, no fim da manhã. Ainda gostava de passar contigo pelo Observatório. Será possível?»
«Não vejo problema. Até porque preciso de fazer o ponto da situação.»
«Ótimo. Levem convosco o estritamente necessário. Os víveres, a água e o resto que consta da lista que elaborámos só serão carregados ao anoitecer.»
«Sou inseparável dos meus livros. Posso levá-los?» perguntou Tomás.
«Claro que sim. Os livros vão ser uma companhia importante. Contem com a solidão. Durante dois anos vai ser o nosso pior inimigo.»
«Vamos então até ao Observatório.»

Observatório. 12 de Abril de 1980...
«Como são os teus amigos extraterrestres, Mário?»
«Olha... morfologia cerebroide, muito evoluídos, lógicos nas relações que estabelecem entre si e os interlocutores alheios à sua raça. Não conhecem a emotividade.»
«Fisiologicamente comparáveis a polvos?»
«Nunca os vi, dado que estiveram sempre invisíveis. Uma mulher-androide servia de intermediária.»
« Porquê uma mulher?»
«Escolheram uma mulher por uma razão muito simples, Tomás. Sondaram-me o cérebro e descodificaram todo o “filme” da minha vida gravado na memória.»
«Eles estão certos. O subconsciente de cada de cada tem gravado tudo o que aconteceu ao longo da sua vida? É possível fazerem-se regressões em pacientes com traumas diversos até que seja descoberto o porquê ilógico de uma reação ou incapacidade psicológica para resolver um problema insignificante, por exemplo, os medos das crianças que não dormem sem uma luz acesa. Isso tem uma razão. As regressões podem fazer-se até ao tempo do feto no útero materno protetor. Sabes como se chama a ciência que se debruça sobre esses fenómenos?»
«Por acaso não.»
«Dianética. Não é qualquer curioso que faz auditorias. Espero que eles tenham feito um bom trabalho. Até onde recuaram?»
«Até onde quiseram, penso. Dei comigo frente a frente com uma mulher que parecia pertencer ao meu passado. Fizeram-na, com toda a perfeição, à imagem dessa mulher. Como Deus criou o homem e depois a mulher. Quase fui enganado.»
«Portanto, jogaram contigo.»
«Pois foi. E queriam levar-me com eles.»
«Porquê?»
Claro que omiti a resposta, encolhendo os ombros. O caso dos portais era assunto que considerava tabu.
«Nunca pensaste que podes ter acordado de um sonho? Vê bem se estás enganado.»
«Sim, foi um sonho que tive no espaço. Um sonho agradável que se transformou em pesadelo. Não sei se já te disse que os meus amigos viram-me desaparecer no interior do ovni e depois regressar do espaço. Sendo assim, também eles tiveram esse pesadelo. Terás oportunidade de perguntar-lhes.»
«Desculpa, eu queria só ter a certeza. Volto a insistir: o que te disseram eles sobre o Sol?»
«O mesmo que acabámos de ver pelo telescópio. Que se prepara uma gigantesca explosão.» 
Omiti o resto que se relacionava com uma gigantesca explosão.
«É isso. E o seu efeito é imprevisível. A energia libertada por uma erupção solar muito forte é equivalente à explosão de uma bomba atómica de mais de dois milhões de megatoneladas. Só para comparação, digo-te que a acontecer tal explosão será cem mil milhões de vezes mais potente que a bomba de Hiroxima.»
«Incrível, meu amigo! Mas continua...»
«Os protões expelidos para o espaço vão atingir a Terra dezenas de horas mais tarde, sendo a maior parte intercetada pela magnetosfera. Mas se uma erupção é mais potente há um excedente que atravessa a nossa atmosfera.»
«Esse excedente atinge a Terra sem qualquer problema. Penso que eles queriam dizer que o Sol se vai transformar numa supernova em miniatura. Uma nova. Ou menos que uma nova.»
«Para que tal aconteça são necessários milhões de anos a andar para trás.»
«Não percebo.»
«Eu explico-te. As supernovas evoluem em muito pouco tempo. Acontece que o Sol é um astro demasiado velho para se transformar em supernova e mesmo no seu passado nunca teve dimensões suficientes para vir a tornar-se numa supernova. Admitindo a hipótese de isso acontecer, meu amigo, então seria o fim. Nem os abrigos valeriam de alguma coisa. Com Sirius, que está a cerca de nove anos-luz da Terra o caso já seria melindroso. Mas só os filhos dos nossos filhos seriam afetados, em virtude das radiações se deslocarem para o sistema solar com velocidades da ordem dos vinte mil quilómetros por segundo. Percebes? É só uma questão de se fazerem os cálculos. Voltemos ao Sol. As erupções normais duram, quanto muito, quatro minutos. Em agosto de setenta e dois a erupção prolongou-se por quatro horas. Foi anormal.»
«E que efeitos provocou?»
«Começo por descrever a erupção. Tudo se iniciou quando apareceu uma pequena mancha negra, orlada por uma zona cinzenta. Depois foram nascendo nessa zona outras manchas negras cada vez mais numerosas. Como sabes, o Sol tem movimento de rotação. Então o grupo de manchas começou a deslocar-se e não tardou a encontrarem-se no centro do disco solar, estendendo-se numa largura enorme. Deram-se então duas potentes explosões. Uma lufada de raios cósmicos, de energia muito elevada, atingiu a Terra, seguida de partículas eletrizadas que afetaram a ionosfera, perturbando as ligações pela rádio em onda curta e desencadeando auroras boreais nos polos. Felizmente temos a cintura de Van Allen e a camada de ozono que circunda a Terra. Ambas funcionam como um escudo protetor. Mas não há nada que destrua esse escudo? A curto prazo não. Contudo, sabes que os aviões supersónicos estão destruindo, aos poucos, a camada de ozono, bem como os poluentes lançados para a atmosfera pelas indústrias, e os escapes dos automóveis. Por outro lado, temos certos gases libertados pelos sprays domésticos e também o gás refrigerante dos frigoríficos. De momento não há perigo. Mas estou a repetir-me. Falaste disso na televisão.»
«Penso que sim. Dos CFCs. E se ocorrer uma explosão mais forte? Os extraterrestres disseram-me que esta demoraria dias.»
«Isso ultrapassa-me.» Disse ele, abanando a cabeça.
«Era onde queria chegar. Não achas esta mancha maior que a de mil novecentos e setenta e dois?»
«Neste momento está quase a atingir as dimensões da outra e não para de evoluir. Tem um crescimento muito rápido e não deixaram de aparecer mais manchas a juntar-se às primeiras. Tudo se conjuga para formar-se uma mancha gigantesca.»
«Detetaste alguma explosão?»
«Ainda não.»
«Estou agora a reparar numa coisa...» Observei.
«Sim?»
«Os meus amigos lá de cima abandonaram rapidamente o nosso sistema solar. Não quiseram alarmar-me, mas há uma coisa que me ficou na memória. Disseram que davam por terminada a sua missão aqui. Não achas que esta decisão pode estar relacionada com a iminência de uma catástrofe no nosso sistema solar?»
Afastou-se. Fiquei a vê-lo. Observava o Sol, como se tentasse adivinhar o futuro. O amanhã que nos esperava.
«Aí está o perigo. A contagem decrescente já começou. Quem sabe se não teremos possibilidades de sobrevivência? A mancha até pode ser um detonador para o desenvolvimento de uma reação em cadeia.»
«Voltas a pensar na hipótese da supernova.»
«Chama-lhe o que quiseres. Uma grande explosão. Continuo a acreditar que o astro-rei não corre perigo. Aliás já teria acontecido há muito. As estrelas candidatos a supernovas são astros de grande massa que evoluem muito rapidamente e transformam-se em estrelas de neutrões em menos de mil milhões de anos. Ora o Sol já conta mais de cinco mil milhões de anos.»
«Abstraindo dessa verdade científica, se a estrela que se vai transformar em supernova tiver um cortejo planetário e se houver vida num dos planetas, que poderá vir acontecer?»
«Muito simples: a emanação de radiações será de tal intensidade que nenhum ser vivo à superfície desse planeta resistirá.»
«Perspetiva enternecedora!»
«Não te aflijas. Essa situação nunca se pôs teoricamente. Sabemos que tais estrelas não subsistem mais que algumas centenas de milhões de anos. A vida necessitou de cerca de mil milhões de anos para se manifestar nas suas formas mais simples e depois há uma longa evolução de mais alguns milhares de milhões de anos.»
«Tal como se passou na Terra. E será forçoso acontecer noutro planeta? Haverá evoluções tiradas a papel químico?»
O Tomás não respondeu logo. Parecia refletir.
«Esses seres de formas cerebroides que contactaram contigo podem ter evoluído rapidamente, como uma estrela evolui para supernova. E também, bruscamente, o nosso astro-rei poderá entrar em colapso. Mas estamos a fazer futurologia. É mais sensato aguardarmos.»

A primeira noite que dormi no abrigo foi penosa. Deitei-me extenuado e pensei que dormia de um só sono até ao raiar da manhã. Enganei-me. Não preguei olho, virei-me e voltei a virar-me, como um frango no espeto, e foi com alívio que vi enfim chegar a manhã.
Podia ir ainda duas vezes até ao exterior. Depois, seria o isolamento por dois longos anos.
A Mafalda tinha chegado primeiro. Vi-a sentada no muro baixo que rodeava a casa. À primeira vista ninguém diria que aquela casa escondia um abrigo na cave, prolongando-se abaixo do jardim, em toda a área.
«Estás a deitar contas à vida?»
«Bom dia, Mário. Pensava que amanhã já não estou aqui a gozar os prazeres que o campo oferece. Este contacto direto com a Natureza é simplesmente maravilhoso e só hoje estou a dar o seu devido valor. Nós, que vivemos na cidade, não sabemos que estas coisas belas existem.»
«Concordo contigo. Mas a partir de hoje devemos dizer: nós, que vivíamos no bulício da cidade...»
«Nem quero pensar nisso agora. Deixa que goze estes últimos momentos de liberdade, Mário.»
Respeitei o seu desejo e deixei vir a primeiro plano o ruído de fundo dos sons do campo, os seus mistérios, o verde das ervas e das árvores frondosas, que se perdiam nas alturas e que já tinham desafiado os rigores da invernia. Mais ao fundo, uma seara ondulante, agitada pela brisa quase impercetível. A seara, que fora crescendo, à chuva e ao vento, dentro de pouco tempo estaria seca, queimada, estéril. Aos poucos, a planície, verde como a esperança, iria amarelecendo, sem as espigas vingarem. A Terra ficaria nua, estéril, feita em torrões ressequidos e recortados de fendas que a estiagem prolongada não deixaria de provocar. Já fora da vista, as cidades exibiriam blocos de cimento e ferro erguidos entre ruas pejadas de carros que não circulavam. Túmulos espalhados pelos locais mais inimagináveis que guardavam corpos em decomposição, uns ainda sentados à mesa, outros deitados na cama, surpreendidos pelo sono eterno da morte, e ainda outros jazendo nas ruas e nos passeios. Nos jardins, a imagem grotesca de árvores nuas, pedaços bifurcados de madeira que hibernavam na eternidade o sono da morte, parques infantis vazios de risos de criança, onde o carrossel já não rodava e o baloiço mantinha-se imóvel, sem uso. E para culminar as imagens pessimistas que tinham sido transportadas e chegado, sem censura, à minha mente angustiada, por estas cidades fantasmas e pelos campos ressequidos onde erravam os últimos sobrevivalistas, procurando o futuro na fuga que faziam deles próprios e já longe dos locais de abrigo.
«Mário...»
A sua voz pareceu vir de longe.
«Desculpa. Perdi-me num mundo absurdo. Vi imagens terríveis de um amanhã bem diferente diferente.»
«E o que viram os teus olhos?»
«Conforme podes calcular, nada de bom. Prefiro guardar as imagens só para mim.»
«Então não contes. Olha, quando voltam o Gaspar e o Pedro?»
«Lá para meio da tarde.»
Preocupou-se.
«Não exigiste demasiado deles?»
«Quem sabe responder? Nem sequer os extraterrestres previram o momento da explosão. Tanto pode ser hoje, como amanhã. É um risco que estamos agora correndo aqui e eles mais do que nós.»
«Deixa-me apreciar estes últimos momentos que sabem a pouco. Quero guardar da nossa querida Terra uma imagem agradável para sonhar com ela quando me sentir acossada, lá dentro, pelo o inverno do meu descontentamento.»
«Steinbeck...»
«Que disseste?»
«Nada de especial, Mafalda. Lembrei-me do meu escritor preferido. Só isso. Então aproveita enquanto é tempo.»
Senti passos de aproximação.
«Dormiram bem? Não me lembro do que sonhei. Pesadelos. De certeza.»
O Tomás teve também a mesma ideia que nós.
«Apenas consegui passar pelas brasas. Ainda bem que já te levantaste. Temos o camião para descarregar. Mafalda, importas-te de ir acordar a Teresa?»
«Pois não.»
«Antes de descarregarmos o camião vamos dar uma volta de reconhecimento pelo abrigo.»
Fui o último a entrar. Lancei um olhar circundante de despedida, que não seria ainda o último, mas já pensava na despedida. Virei bruscamente as costas, começando a descer as escadas. Assumia assim a contagem decrescente. Dois anos metidos num buraco, longe de uma cruel realidade. Mas que realidade?
«Vamos então ver o abrigo. São seis divisões ao todo. Temos três quartos para seis pessoas. Ficam do lado direito do corredor, conforme podem ver. Os quartos são iguais. Terão oportunidade de os analisar com detalhe. Do outro lado do corredor há mais três divisões. Dispensemos a visita aos quartos e passemos às outras instalações. Venham ver...»
«O abrigo não é muito grande.»
«Pois não. É um abrigo e basta, Tomás. Olhem, aqui é a sala de convívio. Podem conversar, ler, ouvir de música e poesia de cassetes, rádio. É uma alternativa à impossibilidade de podermos contactar diretamente com o exterior. Assim não ficamos tão isolados. Através dos noticiários vamos estar a par da evolução dos acontecimentos em todo o globo.»
«Até ser possível. E há jogos?» perguntou Tomás.
«Temos cartas, dominó, xadrez e mais uns tantos jogos.»
«Ótimo. Gosto de fazer paciências.» Disse a Teresa, que já se tinha juntado ao pequeno grupo que formávamos.
«Escutem o que tenho mais para dizer. Como todas as outras divisões, a sala está apetrechada com o mínimo indispensável. O tempo vai ser dividido entre ela e as outras, mas aqui vamos permanecer durante mais tempo. De preferência, juntos. Não quero isolamentos. Já sabem quais são os inconvenientes do isolamento. No entanto cada um decidirá por si. Não vou interferir com a privacidade de cada um. Contudo, se uma atitude menos adequada alterar a estabilidade do grupo, então, meus amigos, contem comigo. É um aviso prévio que faço.»
«Sim, chefe.» Gozou o Tomás.
Continuámos a visita ao abrigo.
«Aqui temos os sanitários. Um compartimento subdividido em dois. Achei que era indispensável termos duas casas de banho.»
«Bem pensado.» Concordou Mafalda. «E a água?»
«Não vamos ter problemas de falta de água. Tanto no que diz respeito à água potável como à que se destina à nossa higiene. Esta última será reciclada, claro. Quanto à energia temos gerador próprio com autonomia para cerca de dois anos, se nos restringirmos ao mínimo indispensável.»
«Não se pode exigir mais.» Concordou Teresa, acenando com a cabeça. «Um dos problemas que considero fundamental parece resolvido. Tenho a fobia da higiene. Falta ver a cozinha.»
«Claro que há uma cozinha e uma despensa enorme que constitui a maior divisão. Aqui são confecionados os alimentos, como é lógico. A cozinha serve igualmente de sala de refeições. Nesta mesa ao centro tomamos as refeições. A propósito: há que organizar uma escala para tarefeiros. Formaremos três grupos em rotação. Todos os dias um grupo descansa, outro encarrega-se da cozinha e o outro da limpeza geral. Teremos também horas para dormir e para cada um se dedicar aos seus ócios. Será atualizada semanalmente a lista de existências e feito um cálculo aproximado do tempo de duração das mesmas. Será também um modo de distração, não acham? Agora queria que dessem sugestões.»
«Tudo pensado ao pormenor» elogiou a Mafalda. «Foi por isso que não conseguiste dormir. Passaste a noite em claro e nós dormimos regalados.»
«Por algum motivo há um chefe.» Lembrou a Teresa.
«Alguém tinha que pensar nestas coisas. Era importante haver um plano minimamente credível. De qualquer maneira não dormi por causa disso. Já tinha planificado tudo antes de virmos.»
O Tomás apontou para a porta ao fundo do corredor.
«E isto aqui o que é?»
«Talvez a despensa.» Admitiu Teresa.
Deixei-os entrar.
«Exato, é a despensa. Vamos começar a descarregar o camião daqui a pouco. Será a última vez que vamos ao exterior. E já agora podem ficar a saber o que temos, além dos alimentos. Para os apreciadores há uma garrafeira bem fornecida. Café em quantidade suficiente. Pacotes de tabaco para os fumadores inveterados. E uma série de coisas que são consideradas necessárias, tais como sabão, lâminas de barbear, artigos de toilete, pilhas, ferramentas, etc... Perguntem, que talvez haja aquilo que querem. Se não houver, paciência. Vamos ficar isolados durante muito tempo. É bom que haja um mínimo de conforto para nos ajudar a passar os dias. Também temos muitos livros e revistas. E uma máquina de escrever para quem consiga encontrar inspiração.»
«De facto a despensa quase parece um armazém.» Comentou Tomás. «E esta porta?, para onde dá?»
«Lá dentro há uma pequena casa forte onde estão guardadas as armas e as munições.»
«Para quê as armas?» perguntou a Mafalda.
«Nunca se sabe...»
«Não te esqueceste de nada?»
«Nem do papel higiénico. Mais alguma coisa?»
«A seu tempo daremos pela falta das coisas.»
«Certo, Tomás. Mas nessa altura será tarde. E agora vamos já organizar os grupos. Têm alguma preferência?»
«Proponho duas coisas» opinou Tomás. «Como disseste que vão ser formados três grupos e como só te conheço a ti, Mário, é mais lógico fazer parte semanalmente de um grupo diferente. A outra proposta vai no sentido das mulheres não ficarem no mesmo grupo.»
«Parece ser uma proposta razoável.» Concordei.
«E a divisão das pessoas pelos quartos?» perguntou a Teresa, algo atrapalhada.
«Não tenhas problemas. Tudo se resolve. Está bem?»
«Oh!»
«Claro que estou a brincar. As mulheres ficam no mesmo quarto.»
Riram. Os três grupos para a primeira semana foram formados de imediato. Eu com a Mafalda, o Tomás com a Teresa e o Gaspar com o Pedro.
«Em relação aos quartos (houve novos risos), está tudo resolvido com as mulheres. Noutro quarto fico eu com o Tomás. No terceiro, os restantes.»

Na parte da tarde só apareceu o Pedro. Trazia cara de caso.
«Então? Onde está o Gaspar?»
Tinham passado a manhã a deitar panfletos sobre diversas cidades, conforme o combinado. Quando aterraram esperava-os uma surpresa desagradável.
«A polícia?»
«Agentes à paisana.»
«Eu safei-me. Infelizmente o Gaspar não conseguiu fugir. Foi apanhado e ficou detido.»
Lamentei a primeira baixa no grupo e enalteci as qualidades do meu amigo de longa data. Tinham sido muitos anos de companheirismo, de bons e maus momentos. Nada havia a fazer. Uma lágrima rebelde brilhou nos olhos de Mafalda. Não, o Gaspar não estaria connosco no abrigo. A sua conduta no exterior foi considerada uma tentativa de subversão da ordem pública e de condução das massas à desorientação e ao desespero. Um ato passível de julgamento que, no entanto, não chegaria a realizar-se, por razões óbvias. Não nos íamos esquecer do bom amigo de longos anos. Talvez fosse um pouco egoísta. Mas ninguém era perfeito.
«Temos que fazer um ligeiro acerto nos grupos. O Tomás passará a dormir no mesmo quarto com o Pedro. Eu fico sozinho.»
Ninguém levantou o mínimo obstáculo.

Os primeiros dias passaram-se sem problemas. Conforme o que estava programado, enquanto um grupo trabalhava na cozinha, o outro encarregava-se da limpeza dos quartos e dos restantes espaços. Finalmente, o terceiro grupo descansava.
Tínhamos algumas horas de convívio, como era natural. Nesses momentos mantinha ainda uma distância prudente de Mafalda. Continuava a passar grandes períodos aparentemente ausente, olhando em frente, trespassando Mafalda com o olhar perdido para lá dos limites do abrigo. Agora olhava a Mafalda não como um mal menor, evitando dar-lhe algum indício que me levasse a um envolvimento e consequente desencanto que conduzisse a um beco sem saída, tal como aconteceu com a Patrícia. Dadas as circunstâncias especiais, tinha mais uma razão para não me aproveitar da sua fraqueza. A súplica. O vazio. Os sonhos encobertos. Deixava-os vir a si, ganhar forma, ultrapassar os limites do real, até que tomava contacto com o inevitável. Sentia-me um homem feito gelo, dedicado cem por cento à tarefa de ser o fiel da balança naquela relação com todos os residentes do abrigo.
Adivinhava os pensamentos da Mafalda, a sua esperança que o meu eu tornado gelo havia de fundir. Estava à espera dum momento de fraqueza da minha parte e dois anos de clausura era muito, muito tempo. Ela sabia um pouco dos meus fantasmas. Dos precipícios perigosos. Mas também sabia que eu conseguia sempre contornar todos esses precipícios.
Para o Tomás bastavam os livros e as olhadelas furtivas para a Mafalda (comecei a dar conta). Provavelmente achava-a uma mulher interessante e mais nada.
O Pedro tinha as cartas e dividia os jogos das paciências com a Teresa. Muito pouco ou quase nada para um homem que se fechou na sua concha depois do que aconteceu ao Gaspar. Problemas de consciência que tentei minorar.
Quanto à Teresa era uma incógnita. Discreta, mal se dava pela sua presença. Muito diferente da mulher que me entrevistou, apagou-se por motivos óbvios ou era assim a sua maneira de estar em privado.
Lá fora o estado das coisas mantinha-se. Os noticiários eram normais e não traziam nada de novo. As notícias chegavam com as banalidades habituais. A agressão veiculada por uma invasão maciça a um país independente. A eterna guerra do petróleo e o fecho das embaixadas. Crimes constantes, como raptos, atentados a tiro e à bomba. Golpes de teatro na política internacional. Enfim, um desfilar de notícias dentro do normal e nada de ouvirmos falar, por exemplo, de uma epidemia misteriosa, de anomalias repentinas nas transmissões por satélite, na deteção de radiações consideradas altamente perigosas.
O Tomás achava ser ainda cedo. Talvez tivéssemos mais uma semana de espera. Era problemático, mas certo de acontecer. Para ele, mais um motivo para se debruçar sobre os livros científicos e aprofundar a resposta a muitas dúvidas que o assaltavam. Ao mesmo tempo, a presença de Mafalda podia amenizava a angústia que devia sentir ao ver-se encerrado entre as paredes espessas do abrigo. E de pensar nisso, sentia-me envolvido por um estado de espírito que me punha a fazer interrogações. Não queria envolver-me com ela, mas, ao mesmo tempo, desejava que o caminho estivesse desobstruído. Puro egoísmo o meu, portanto.
Às vezes procurava falar com o Pedro que passava o seu tempo livre fazendo paciências ou jogando com o "morto". Já não era a mesma pessoa que conheci durante todo o tempo que convivemos e partilhámos os nossos ideais revolucionários que julgámos estarem certos.
Na hora do descanso, afundava-me num dos sofás, cruzava as pernas e olhava para trás, deixando que o pensamento fosse para longe, para o snack da minha frustração e do sentimento de culpa onde a Patrícia já não estava.
Quanto à Manuela, marcou-me para toda a vida...

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