Encontrei a Mafalda sentada no sofá. Estávamos sós na sala.
«Julguei que era o primeiro a chegar...»
«Olá, Mário. Pela manhã nunca tenho sono. Em vez de ficar deitada na cama a encher-me de tédio, acho preferível vir para aqui.»«Queres ouvir música?»
«Não, obrigada. Estou saturada de discos.»
«É curioso também. Ainda há poucos dias gostava de estar aqui, horas a fio ouvindo as canções que tanto fizeram furor nos tempos de menino e moço. Ao mesmo tempo, lembrava-me de coisas passadas há muito e que julgava já apagadas.»
«E então?»
«Cansei-me, Mafalda. Agora prefiro ficar no meu galho, em silêncio, deixando o tempo correr.»
«É inevitável virem as recordações. Tu já me contaste um dia que temos no nosso cérebro uma espécie de gravador que regista tudo o que vai acontecendo ao longo da vida.»
«Sim, contei. Mas pensava que tinha formatado o disco da vida passada nesta encarnação. As outras, sim, não deixaram rasto. Sei que já vivi muitas vezes antes desta vida,»
«Mas mas não te lembras da última vez que cá estiveste.»
«Certo.E por falar desta vida de que me lembro, julgo que já perdi todos os hábitos, todas as rotinas, boas ou más. O próprio tempo já alterou a sua cadência. Agora os dias são mais longos.»
Onde já ouvira tal?
«Mas cinzentos. Tens razão. Perdemos os hábitos normais. Agora que temos todo o tempo do mundo por nossa conta não conseguimos aproveitá-lo com eficácia. Para mim, tudo morre ao cair da noite e não volta igual no dia seguinte.»
«Mas sempre foi assim!»
«Não percebo.»
«Nós nunca somos iguais.»
«Ah sim. Dando a volta ao texto, agora temos de fazer de conta que não há nada de anormal lá fora. De mostrar boa cara, conversar mesmo sem ter vontade de o fazer. De fugir ao isolamento. Olha o caso do Pedro. Estou preocupada com ele. Não anda bem. Temo que faça um disparate.»
«Será que não está a tomar o antidepressivo?»
«Mas cinzentos. Tens razão. Perdemos os hábitos normais. Agora que temos todo o tempo do mundo por nossa conta não conseguimos aproveitá-lo com eficácia. Para mim, tudo morre ao cair da noite e não volta igual no dia seguinte.»
«Mas sempre foi assim!»
«Não percebo.»
«Nós nunca somos iguais.»
«Ah sim. Dando a volta ao texto, agora temos de fazer de conta que não há nada de anormal lá fora. De mostrar boa cara, conversar mesmo sem ter vontade de o fazer. De fugir ao isolamento. Olha o caso do Pedro. Estou preocupada com ele. Não anda bem. Temo que faça um disparate.»
«Será que não está a tomar o antidepressivo?»
Todos tomávamos antidepressivos, razão fundamental para nos mantermos mentalmente o mais possível saudáveis dentro daquilo que se considerava ser possível.
«Olha, para compensar os papões que tentam corromper o consciente, esta noite tive um sonho bom.»
«Sim?»
Nesse mesmo instante chegou o Tomás.
«Então, bons dias. Ou boas noites. Tanto faz, não é?»
Fiz um gesto vago a cumprimentá-lo. A Mafalda foi mais exuberante.
«Bom dia, Tomás.»
Como era hábito trazia consigo um livro que logo abriu mal se sentou no fundo da sala, onde havia uma mesa para os mais recatados. A Mafalda começou a contar o sonho.
«Estávamos numa esplanada, muito sorridentes. Na nossa frente tínhamos a areia de uma praia e o mar que quase chegava até nós. Não se ouvia o ruído das ondas. As pessoas que passavam, olhavam para nós e também sorriam. Não voltávamos a vê-las. Só ficavam as marcas das pegadas na areia. Sentia no ar um ambiente de felicidade. Este pesadelo que nos atormenta tinha ficado para trás ou então não existia. Acho que não existia. Os dois, naquela mesa, vivíamos num mundo diferente. Só que não falávamos. O sorriso era tudo. Mais nada existia.»
Fingi ignorar a parte em que “estávamos numa esplanada, muito sorridentes”. Lembrava-me o tempo do olhar distante da Patrícia. Preferi desmontar o sonho.
«É natural ter acontecido esse sentimento virtual de felicidade. Diria melhor, de bem-estar. O sonho que tiveste corresponde a um desejo subterrâneo, escondido nos escaninhos inacessíveis do teu subconsciente. Ele tem mais poder do que imaginas e, neste caso, serviu para temperar o teu estado de alma. De certeza que acordaste mais positiva depois de uma situação que não estava de acordo com a realidade. O sonho aliviou o teu estado de alma. Pelo menos ao acordares. Não foi?»
«Tens razão.»
«Nós só sorríamos?»
Baixou o olhar.
«Não me lembro de mais nada. Só dos sorrisos, da sensação de felicidade e do silêncio.»
«Não sentias um vazio à tua volta?»
«Não. O silêncio alimentava a felicidade. Nunca te aconteceu?»
«Da vida real não guardo grandes saudades do silêncio e sabes porquê. Voltando ao sonho, não havia mais ninguém conhecido?»
«Penso que bastava a tua presença. Ninguém mais interessava. Que leitura fazes deste sonho?» perguntou, ganhando coragem.
Não respondi. Mordi os lábios. Adivinhava o que vinha a seguir.
«Há muita coisa que não compreendes, Mário, mas porque não queres compreender.»
«Não compreendo, o quê?»
«Nunca dás conta das coisas mais subtis que se passam à tua volta. Tem a ver muito com os sentimentos que escondes e com os dos outros que ignoras. Com o receio de voltares a falhar.»
«Onde queres chegar?»
«Gostava que visses a realidade, mas estás sempre distante.»
«Não entendo.»
Foi mais direta.
«Tudo para ti é superficial. Falando em metáforas, se passares por uma flor e não a colhes. Mal olhas para ela, ou nem sequer a viste. E então ela vai murchar de solidão. O teu olhar estende-se sempre para lá dos limites do horizonte, pois sabes que aí não há nada a não serem os teus fantasmas. Foges, Mário!»
«Não é bem assim, Mafalda.»
«Então o que é?»
Olhei-a com insistência, obrigando-a a baixar os olhos.
«Falta acontecer muita coisa para os tais fantasmas me deixarem. Um dia vais compreender. Peço-te que sejas paciente.»
«Não sabemos de que tempo dispomos...»
«As marés vêm e vão.»
Num gesto involuntário, acariciei-lhe o rosto. Fechou os olhos e começou talvez a sonhar.
«Um dia virá uma maré viva. Agora estou ainda confuso. Estas malditas paredes não me deixam pensar. Muito menos, sonhar.»
«Então não penses. Deixa acontecer.»
Levantei-me cedo. Pouco dormi nessa noite. A Mafalda era uma mulher atraente, embora não tanto como Patrícia. Mas havia uma diferença em relação à Patrícia dos tempos do snack. Não vendia a carne. De certeza que se entregaria toda de corpo e alma e o pior é que eu queria aceitar, mas talvez com receio que saísse magoada. Conhecendo-me como me conhecia, era melhor.
«Olha, para compensar os papões que tentam corromper o consciente, esta noite tive um sonho bom.»
«Sim?»
Nesse mesmo instante chegou o Tomás.
«Então, bons dias. Ou boas noites. Tanto faz, não é?»
Fiz um gesto vago a cumprimentá-lo. A Mafalda foi mais exuberante.
«Bom dia, Tomás.»
Como era hábito trazia consigo um livro que logo abriu mal se sentou no fundo da sala, onde havia uma mesa para os mais recatados. A Mafalda começou a contar o sonho.
«Estávamos numa esplanada, muito sorridentes. Na nossa frente tínhamos a areia de uma praia e o mar que quase chegava até nós. Não se ouvia o ruído das ondas. As pessoas que passavam, olhavam para nós e também sorriam. Não voltávamos a vê-las. Só ficavam as marcas das pegadas na areia. Sentia no ar um ambiente de felicidade. Este pesadelo que nos atormenta tinha ficado para trás ou então não existia. Acho que não existia. Os dois, naquela mesa, vivíamos num mundo diferente. Só que não falávamos. O sorriso era tudo. Mais nada existia.»
Fingi ignorar a parte em que “estávamos numa esplanada, muito sorridentes”. Lembrava-me o tempo do olhar distante da Patrícia. Preferi desmontar o sonho.
«É natural ter acontecido esse sentimento virtual de felicidade. Diria melhor, de bem-estar. O sonho que tiveste corresponde a um desejo subterrâneo, escondido nos escaninhos inacessíveis do teu subconsciente. Ele tem mais poder do que imaginas e, neste caso, serviu para temperar o teu estado de alma. De certeza que acordaste mais positiva depois de uma situação que não estava de acordo com a realidade. O sonho aliviou o teu estado de alma. Pelo menos ao acordares. Não foi?»
«Tens razão.»
«Nós só sorríamos?»
Baixou o olhar.
«Não me lembro de mais nada. Só dos sorrisos, da sensação de felicidade e do silêncio.»
«Não sentias um vazio à tua volta?»
«Não. O silêncio alimentava a felicidade. Nunca te aconteceu?»
«Da vida real não guardo grandes saudades do silêncio e sabes porquê. Voltando ao sonho, não havia mais ninguém conhecido?»
«Penso que bastava a tua presença. Ninguém mais interessava. Que leitura fazes deste sonho?» perguntou, ganhando coragem.
Não respondi. Mordi os lábios. Adivinhava o que vinha a seguir.
«Há muita coisa que não compreendes, Mário, mas porque não queres compreender.»
«Não compreendo, o quê?»
«Nunca dás conta das coisas mais subtis que se passam à tua volta. Tem a ver muito com os sentimentos que escondes e com os dos outros que ignoras. Com o receio de voltares a falhar.»
«Onde queres chegar?»
«Gostava que visses a realidade, mas estás sempre distante.»
«Não entendo.»
Foi mais direta.
«Tudo para ti é superficial. Falando em metáforas, se passares por uma flor e não a colhes. Mal olhas para ela, ou nem sequer a viste. E então ela vai murchar de solidão. O teu olhar estende-se sempre para lá dos limites do horizonte, pois sabes que aí não há nada a não serem os teus fantasmas. Foges, Mário!»
«Não é bem assim, Mafalda.»
«Então o que é?»
Olhei-a com insistência, obrigando-a a baixar os olhos.
«Falta acontecer muita coisa para os tais fantasmas me deixarem. Um dia vais compreender. Peço-te que sejas paciente.»
«Não sabemos de que tempo dispomos...»
«As marés vêm e vão.»
Num gesto involuntário, acariciei-lhe o rosto. Fechou os olhos e começou talvez a sonhar.
«Um dia virá uma maré viva. Agora estou ainda confuso. Estas malditas paredes não me deixam pensar. Muito menos, sonhar.»
«Então não penses. Deixa acontecer.»
Levantei-me cedo. Pouco dormi nessa noite. A Mafalda era uma mulher atraente, embora não tanto como Patrícia. Mas havia uma diferença em relação à Patrícia dos tempos do snack. Não vendia a carne. De certeza que se entregaria toda de corpo e alma e o pior é que eu queria aceitar, mas talvez com receio que saísse magoada. Conhecendo-me como me conhecia, era melhor.
«Mafalda...»
«Sim, Mário?»
«Estou admirado por ainda não ter chegado ninguém.»
Ela sorriu com amargura.
«A maré está a passar e não passamos deste impasse.»
«Há os outros, Mafalda. Penso que não temos o direito de...»
«De quê?»
«Não é bem trair. Falta-me a palavra certa. Quero dizer outra coisa que não sai. Mas tu entendes. Em circunstâncias normais não havia qualquer problema. Mas agora o nosso envolvimento vai afetá-los se acontecer agora.»
«Ao diabo os outros, Mário. Pensa ao menos uma vez em nós. Não vou desistir, não.»
«Nem estou a pedir para desistires. Só apenas que sejas paciente. Um dia vamos sair daqui e então será diferente. Prometo.»
«Estamos sós no mundo e pode acontecer que se espere uma eternidade por um amanhã que pode não vir. Por isso, digo e repito com poucas palavras. Vem para mim. Hoje. Agora!»
«Deixa-me continuar com o espírito baralhado. Por enquanto é impossível. Não estaria bem com a minha consciência.»
«Exiges sempre muito de ti.»
Viu-os saírem da sala. Quase de certeza que iam para o quarto dela. Fechou o livro. Estava aberto há muito na mesma página. Levantou-se. Espreitou-os no corredor. Afinal, ia cada um para o seu quarto.
«Estou admirado por ainda não ter chegado ninguém.»
Ela sorriu com amargura.
«A maré está a passar e não passamos deste impasse.»
«Há os outros, Mafalda. Penso que não temos o direito de...»
«De quê?»
«Não é bem trair. Falta-me a palavra certa. Quero dizer outra coisa que não sai. Mas tu entendes. Em circunstâncias normais não havia qualquer problema. Mas agora o nosso envolvimento vai afetá-los se acontecer agora.»
«Ao diabo os outros, Mário. Pensa ao menos uma vez em nós. Não vou desistir, não.»
«Nem estou a pedir para desistires. Só apenas que sejas paciente. Um dia vamos sair daqui e então será diferente. Prometo.»
«Estamos sós no mundo e pode acontecer que se espere uma eternidade por um amanhã que pode não vir. Por isso, digo e repito com poucas palavras. Vem para mim. Hoje. Agora!»
«Deixa-me continuar com o espírito baralhado. Por enquanto é impossível. Não estaria bem com a minha consciência.»
«Exiges sempre muito de ti.»
Revelando os pensamentos de Tomás...
Tudo tinha os seus limites e ninguém mandava nele. Quando acabasse a quarentena iria para a cidade. O Observatório esperava-o. Era lá que devia estar no resto da sua vida. A solidão não o atormentava. E talvez houvesse uma hipótese de não ficar só. A Mafalda estava a atirar-se ao Mário e ele dava-lhe pouca atenção. Ia esperar com paciência pela oportunidade. Quando ela se cansasse, tentaria a sua sorte. Um dia viria como salvador, de braços abertos, pronto a conquistá-la. Sim, tinha um fraco por ela, não o escondia.
Conheceu muitas mulheres. Possuiu-as. Seguiu novos rumos. Agora a Mafalda significava outra coisa para si. Era a tal.
Conheceu muitas mulheres. Possuiu-as. Seguiu novos rumos. Agora a Mafalda significava outra coisa para si. Era a tal.
Viu-os saírem da sala. Quase de certeza que iam para o quarto dela. Fechou o livro. Estava aberto há muito na mesma página. Levantou-se. Espreitou-os no corredor. Afinal, ia cada um para o seu quarto.
E se tentasse a oportunidade?
Era cedo. A Mafalda mal dava pela sua presença. Sentia-se um réptil que rastejava a seus pés. Nojento. Sabia que não estava a proceder bem. Ela era uma pérola e não podia riscá-la. Queria beijar-lhe os olhos. Os seios...
Voltou à sala. Sentou-se outra vez no outro sofá e ficou de mãos na nuca, olhando vagamente em frente. Mais tarde ou mais cedo ia conseguir.
A Mafalda continuava obcecada por mim. A chama da paixão que, durante muito tempo, tinha permanecido adormecida, tornava-se agora quase incontrolável. Era inevitável acontecer. Os seus olhares tornavam-se mais persistentes e as palavras já não tinham nem peso, nem conta, nem medida. Por outro lado, sentia-me bem na sua presença, embora continuasse a manter a distância habitual. Ela fingia ignorar a aparente frieza das atitudes que tomava. Os olhares furtivos que trocávamos davam-me coragem para prosseguir. A teia estava urdida.
Até que uma uma noite apareceu no meu quarto. Trazia consigo um sonho mil vezes já sonhado.
«Precisas de...?»
Não acabou a pergunta. O olhar dela tinha algo de diferente. Depois, havia uma musicalidade no quarto. Promessas de erotismo, pensei, ao reparar que a Mafalda olhava-me languidamente.
«Que se passa, Mafalda?»
Pôs-me um dedo sobre os lábios.
«Não digas nada, Mário.»
Começou a despir-se e também a despir-me. Lentamente. Tão lentamente que não reagi. Estava hipnotizado. O desejo parecia aceitar a oferta. Ali estava ela, suplicante. À espera. Como sempre tinha estado. Mas com a Patrícia tinha acontecido de repente. Lembrava-me. E os olhos implorantes da Mafalda não eram da cor do mar. Eram castanhos. O corpo moreno e os seios grandes e perfeitos.
Voltou à sala. Sentou-se outra vez no outro sofá e ficou de mãos na nuca, olhando vagamente em frente. Mais tarde ou mais cedo ia conseguir.
A Mafalda continuava obcecada por mim. A chama da paixão que, durante muito tempo, tinha permanecido adormecida, tornava-se agora quase incontrolável. Era inevitável acontecer. Os seus olhares tornavam-se mais persistentes e as palavras já não tinham nem peso, nem conta, nem medida. Por outro lado, sentia-me bem na sua presença, embora continuasse a manter a distância habitual. Ela fingia ignorar a aparente frieza das atitudes que tomava. Os olhares furtivos que trocávamos davam-me coragem para prosseguir. A teia estava urdida.
Até que uma uma noite apareceu no meu quarto. Trazia consigo um sonho mil vezes já sonhado.
«Precisas de...?»
Não acabou a pergunta. O olhar dela tinha algo de diferente. Depois, havia uma musicalidade no quarto. Promessas de erotismo, pensei, ao reparar que a Mafalda olhava-me languidamente.
«Que se passa, Mafalda?»
Pôs-me um dedo sobre os lábios.
«Não digas nada, Mário.»
Começou a despir-se e também a despir-me. Lentamente. Tão lentamente que não reagi. Estava hipnotizado. O desejo parecia aceitar a oferta. Ali estava ela, suplicante. À espera. Como sempre tinha estado. Mas com a Patrícia tinha acontecido de repente. Lembrava-me. E os olhos implorantes da Mafalda não eram da cor do mar. Eram castanhos. O corpo moreno e os seios grandes e perfeitos.
Aspirei o perfume que se soltava dela e foi fatal. Senti que fraquejava. Ela estava a um passo. À distância de estender o braço. Aproximou-se. Acariciei-lhe o cabelo sedoso. Ali estávamos, frente a frente. E ela à espera...
Afastei a ideia. Estava outra vez a confundir o presente com o passado. A Mafalda sorria e eu continuava a acariciar-lhe os cabelos, ainda hesitante. O olhar dirigiu-se para a porta.
«Queres que tranque a porta?»
«De que estás à espera, querido?»
Afastei-a suavemente e fui trancar a porta.
«Não demores! Vem...»
Vi-a deitada na cama, muito séria, de olhos fixos virados para mim. Talvez a Patrícia fosse mais perfeita. Tinha um corpo de sonho e sabia usá-lo. Ondulava-o como uma cobra até ao orgasmo, fim metafísico do ato, como nenhuma outra mulher o sabia fazer. Isto no tempo da fera à solta. Depois, nunca mais aconteceu.
«Que fazes aí especado, homem? Parece que é a primeira vez!»
Voltei a aproximar-me. Deitei-me a seu lado.
«Então?»
Sentia o calor do seu corpo. Ouvia, bem perto, a sua respiração apressada. As minhas mãos percorriam o corpo, à descoberta de locais importantes. Ela consentia e esperava por mais.
Comecei a lamber-lhe os seios, a morder suavemente os mamilos. Era uma revelação agradável. Mas continuava fazendo comparações, como se tivesse a provar da substância impura de duas mulheres para obter uma como resultado final.
Então, parei. A Mafalda sentiu que o encantamento se quebrara.
«Que foi?» perguntei.
«De repente paraste.»
«Saí daqui?»
«Pior ainda. O teu corpo estava, mas tu não. Toquei-te. Parecias pedra. Rígido e frio. Assustei-me.»
«Estranho!»
Levantei-me e pus um disco a tocar. A música era sugestiva. Quente. Pouco depois estava outra vez na cama, deitado a seu lado.
Lentamente os dedos partiram da base do vulcão adormecido até atingirem a cratera de lava em fusão. Recomecei a mordiscar os mamilos rijos. Ela baixou uma das mãos ao longo do meu corpo até parar na parte certa. Sentia-me rei. Era o rei leão e ela a minha rainha. Enchi-a de beijos. Mil beijos. Muito amor. Muito a dar e à espera de receber. Cada vez mais. Desejo. Desejo. Vontade daqueles minutos sublimes durarem uma eternidade. Mas...
«Que aconteceu?» perguntou a Mafalda.
Mas aconteceu o quê?
«Nada.» Disse simplesmente.
«Não ligues.»
Ela continuava a beijar-me. Suavemente.
Tentei levantar-me. Passou-me os braços pelo tronco, apertando-me muito com carinho. Insisti e libertei-me do abraço. Fiquei de costas para cama. Voltei-me. Estava toda tapada pelo edredão e virada de barriga para baixo. Só lhe via o alto da cabeça. Senti um desejo enorme de a acariciar. Mas não conseguia. Era melhor assim.
Disse que ia andando.
Na sala, o Tomás lia, como de costume. Notei que no rosto do Pedro havia algo de estranho. Mostrava-se inexpressivo e as mãos fechavam-se sobre a mesa. Movido pela curiosidade, aproximei-me dele. Sentei-me a seu lado. Continuava a olhar em frente, sem dar conta da minha presença.
Nesse mesmo instante a Teresa entrou na sala e olhou para mim, preocupada.
«Há algum problema contigo, Pedro?» perguntei.
Fitou-me, sério, por momentos. Depois baixou a cabeça.
«Então?»
Voltou a não responder.
«Que se passa?» perguntou a Teresa. «Desabafa. Faz bem desabafar, Pedro. Todos estamos sob tensão. Não és só tu, acredita.»
Nem sequer reagiu.
Aproximei-me do Tomás.
«Há um problema grave com o Pedro. Não fala. Tem um olhar ausente...»
«Também já dei conta. Penso que está a entrar em depressão. Não deve estar a tomar o antidepressivo. Além disso, anda a beber de mais.»
«Também já reparei. Podemos cortar-lhe o vinho. Dizemos que a reserva chegou ao fim. Vai ser um sacrifício da nossa parte, mas paciência. Primeiro está a sua saúde mental. Mas temos que esconder o vinho e vai ser para já. Mas onde? Há ainda muitas garrafas.»
«Na casa forte. Onde estão as armas e as munições.»
Afastei a ideia. Estava outra vez a confundir o presente com o passado. A Mafalda sorria e eu continuava a acariciar-lhe os cabelos, ainda hesitante. O olhar dirigiu-se para a porta.
«Queres que tranque a porta?»
«De que estás à espera, querido?»
Afastei-a suavemente e fui trancar a porta.
«Não demores! Vem...»
Vi-a deitada na cama, muito séria, de olhos fixos virados para mim. Talvez a Patrícia fosse mais perfeita. Tinha um corpo de sonho e sabia usá-lo. Ondulava-o como uma cobra até ao orgasmo, fim metafísico do ato, como nenhuma outra mulher o sabia fazer. Isto no tempo da fera à solta. Depois, nunca mais aconteceu.
«Que fazes aí especado, homem? Parece que é a primeira vez!»
Voltei a aproximar-me. Deitei-me a seu lado.
«Então?»
Sentia o calor do seu corpo. Ouvia, bem perto, a sua respiração apressada. As minhas mãos percorriam o corpo, à descoberta de locais importantes. Ela consentia e esperava por mais.
Comecei a lamber-lhe os seios, a morder suavemente os mamilos. Era uma revelação agradável. Mas continuava fazendo comparações, como se tivesse a provar da substância impura de duas mulheres para obter uma como resultado final.
Então, parei. A Mafalda sentiu que o encantamento se quebrara.
«Que foi?» perguntei.
«De repente paraste.»
«Saí daqui?»
«Pior ainda. O teu corpo estava, mas tu não. Toquei-te. Parecias pedra. Rígido e frio. Assustei-me.»
«Estranho!»
Levantei-me e pus um disco a tocar. A música era sugestiva. Quente. Pouco depois estava outra vez na cama, deitado a seu lado.
Lentamente os dedos partiram da base do vulcão adormecido até atingirem a cratera de lava em fusão. Recomecei a mordiscar os mamilos rijos. Ela baixou uma das mãos ao longo do meu corpo até parar na parte certa. Sentia-me rei. Era o rei leão e ela a minha rainha. Enchi-a de beijos. Mil beijos. Muito amor. Muito a dar e à espera de receber. Cada vez mais. Desejo. Desejo. Vontade daqueles minutos sublimes durarem uma eternidade. Mas...
«Que aconteceu?» perguntou a Mafalda.
Mas aconteceu o quê?
«Nada.» Disse simplesmente.
«Não ligues.»
Ela continuava a beijar-me. Suavemente.
Tentei levantar-me. Passou-me os braços pelo tronco, apertando-me muito com carinho. Insisti e libertei-me do abraço. Fiquei de costas para cama. Voltei-me. Estava toda tapada pelo edredão e virada de barriga para baixo. Só lhe via o alto da cabeça. Senti um desejo enorme de a acariciar. Mas não conseguia. Era melhor assim.
Disse que ia andando.
Na sala, o Tomás lia, como de costume. Notei que no rosto do Pedro havia algo de estranho. Mostrava-se inexpressivo e as mãos fechavam-se sobre a mesa. Movido pela curiosidade, aproximei-me dele. Sentei-me a seu lado. Continuava a olhar em frente, sem dar conta da minha presença.
Nesse mesmo instante a Teresa entrou na sala e olhou para mim, preocupada.
«Há algum problema contigo, Pedro?» perguntei.
Fitou-me, sério, por momentos. Depois baixou a cabeça.
«Então?»
Voltou a não responder.
«Que se passa?» perguntou a Teresa. «Desabafa. Faz bem desabafar, Pedro. Todos estamos sob tensão. Não és só tu, acredita.»
Nem sequer reagiu.
Aproximei-me do Tomás.
«Há um problema grave com o Pedro. Não fala. Tem um olhar ausente...»
«Também já dei conta. Penso que está a entrar em depressão. Não deve estar a tomar o antidepressivo. Além disso, anda a beber de mais.»
«Também já reparei. Podemos cortar-lhe o vinho. Dizemos que a reserva chegou ao fim. Vai ser um sacrifício da nossa parte, mas paciência. Primeiro está a sua saúde mental. Mas temos que esconder o vinho e vai ser para já. Mas onde? Há ainda muitas garrafas.»
«Na casa forte. Onde estão as armas e as munições.»
Sentia-se amarrado àquelas paredes. O fio de contacto com o exterior tinha-se quebrado. Lá fora, muito provavelmente a vida estava em extinção. Ali dentro, ele, em agonia. Os dias longos, demasiado longos. As mesmas caras, as mesmas tarefas. O horror do isolamento. Nem o jogo já o distraía. Sem entender o porquê, sentia um ódio extremo por todos, um desejo de destruir, de virar a sala do avesso. O cheiro a morte pairava no ar. Adivinhava. Ingénuos. Odiava também a ingenuidade deles porque não sofriam, não viam o fantasma da morte a rondar, buscando a oportunidade certa. Queria desaparecer, libertar-se dos seus olhares inquiridores e das suas palavras vazias de sentido. Odiava ainda a sua bondade falsa. Não tinham mais que fazer e então investigavam-se uns aos outros.
De certeza que falavam dele. Até o despistado do Mário dizia que ele não estava bem.
E quem estava bem?
De futuro nem sequer podia mijar em paz. Mais tarde ou mais cedo eles iriam ver a cor do mijo. Se este era mais claro ou mais escuro. E mais ainda. Se mijava fora da sanita ou se estava a masturbar-se. Não, não tinha vontade de rir. Eles eram capazes de tudo. E aquela cave parecia fechar-se sobre ele cada vez mais. O peso das paredes, do ar que respirava, tudo o sufocava. As vozes matraqueavam nos seus ouvidos e ensurdeciam-no. Os olhares cúmplices deles. Tudo o oprimia e revoltava. Antes tivesse sido preso e ficado com o Gaspar. Felizardo. Morreu no meio do calor humano. Ou não?
Depois, havia um cochichar constante. Só o Tomás se comportava um pouco mais à altura. Nem sequer levantava os olhos do livro. De futuro nem sequer podia mijar em paz. Mais tarde ou mais cedo eles iriam ver a cor do mijo. Se este era mais claro ou mais escuro. E mais ainda. Se mijava fora da sanita ou se estava a masturbar-se. Não, não tinha vontade de rir. Eles eram capazes de tudo. E aquela cave parecia fechar-se sobre ele cada vez mais. O peso das paredes, do ar que respirava, tudo o sufocava. As vozes matraqueavam nos seus ouvidos e ensurdeciam-no. Os olhares cúmplices deles. Tudo o oprimia e revoltava. Antes tivesse sido preso e ficado com o Gaspar. Felizardo. Morreu no meio do calor humano. Ou não?
Era assim tão interessante esse livro?
Talvez explicasse cientificamente o que estava a acontecer no Sol e a consequente agonia que os esperava.
Devia voltar ao exterior?
Morrer devagar, não. Antes morrer num momento. Como morrem os heróis e os cobardes. Morrer depressa. Sim. De repente.
Sorriu entre dentes. Ingénuos. Tinha-os convencido. Uma dor de cabeça horrível que não o largava. Uma dor de cabeça era coisa vulgar naquele abrigo. O ar, embora constantemente renovado e analisado, não evitava que o ambiente se tornasse pesado. Disse que ia deitar-se e tentar dormir um pouco. E eles tinham acreditado, parvos como eram. Ah!, mas quando entrassem mais tarde no quarto decerto que iam ter uma grande surpresa.
Devia voltar ao exterior?
Morrer devagar, não. Antes morrer num momento. Como morrem os heróis e os cobardes. Morrer depressa. Sim. De repente.
Sorriu entre dentes. Ingénuos. Tinha-os convencido. Uma dor de cabeça horrível que não o largava. Uma dor de cabeça era coisa vulgar naquele abrigo. O ar, embora constantemente renovado e analisado, não evitava que o ambiente se tornasse pesado. Disse que ia deitar-se e tentar dormir um pouco. E eles tinham acreditado, parvos como eram. Ah!, mas quando entrassem mais tarde no quarto decerto que iam ter uma grande surpresa.
Trancou-se no quarto. Olhou em redor. As camas e os armários, além das paredes nuas, decoravam o sobrado entretanto transformado em paisagem de deserto onde não faltava o calor escaldante. Um deserto de areias tão finas que eram invisíveis e que mesmo assim estavam a soterrá-lo, aos poucos. Sim, como não havia futuro para ele e para ninguém, podia avistar de uma janela entreaberta, que não existia, as tais areias invisíveis trazidas pelo vento que lhe fustigava o rosto, fazendo, inexplicavelmente, crescer o desejo fugir para bem longe, onde ninguém o visse.
O pensamento paranoico ganhava força e levava-o a acreditar que seria capaz de executar o plano que tinha em mente. É que já não suportava mais aquele cheiro fedorento a amizade falsa. O cochichar constante. Os olhares de soslaio. Os olhares que carneiro mal morto da Mafalda para o Mário. O Tomás sempre as espiá-los.
Aquilo estava de novo com ele. A náusea. A vontade de estoirar com tudo.
Tentou suster a respiração. Não podia fazer o mínimo barulho. Estavam à escuta. Moveu-se em bicos de pés até à porta. Ficou quieto. Eram eles. Sentia alguém respirar do outro lado. Vinham trazer-lhe um prato com comida envenenada. E que grande bacanal seria depois! Mário com a Mafalda. O santinho! Tinha a mania da seriedade, mas não o enganava. Quanto a Tomás, não passava de um abutre que espiava a Mafalda. Preparava-se para ir aos restos, ele sabia. Enquanto se entretinha com o jogo das paciências, espreitava pelo canto do olho e via o polvo, camuflado, em atitude de espera. Finalmente a Teresa não passava duma mosquinha morta. Uma tonta de cabeça vazia.
O pensamento paranoico ganhava força e levava-o a acreditar que seria capaz de executar o plano que tinha em mente. É que já não suportava mais aquele cheiro fedorento a amizade falsa. O cochichar constante. Os olhares de soslaio. Os olhares que carneiro mal morto da Mafalda para o Mário. O Tomás sempre as espiá-los.
Aquilo estava de novo com ele. A náusea. A vontade de estoirar com tudo.
Tentou suster a respiração. Não podia fazer o mínimo barulho. Estavam à escuta. Moveu-se em bicos de pés até à porta. Ficou quieto. Eram eles. Sentia alguém respirar do outro lado. Vinham trazer-lhe um prato com comida envenenada. E que grande bacanal seria depois! Mário com a Mafalda. O santinho! Tinha a mania da seriedade, mas não o enganava. Quanto a Tomás, não passava de um abutre que espiava a Mafalda. Preparava-se para ir aos restos, ele sabia. Enquanto se entretinha com o jogo das paciências, espreitava pelo canto do olho e via o polvo, camuflado, em atitude de espera. Finalmente a Teresa não passava duma mosquinha morta. Uma tonta de cabeça vazia.
Quem diria, depois daquela entrevista?
Deitou-se na cama. Não tardava que tentassem abrir a porta. Fechou os olhos para afastar a ideia fixa. Que bom se conseguisse dormir. Mas não. Aquilo estava com ele. Via-lhe os contornos, as garras aceradas que lhe dilaceravam as entranhas. Não podia fugir. Tinha medo do escuro. Ouvia alguém gargalhar no escuro. A querer atirar-se a ele. Era horrível. Já não era senhor de si.
Levantou-se bruscamente e ficou soerguido na cama, à escuta. Ouviu vozes sussurrantes. Riu baixo. Iam ter uma surpresa muito grande. Libertava-se, finalmente libertava-se.
Sentiu mexerem na porta. Uma tentativa. Mais uma. E outra vez as vozes dos malditos. Alguém a chamar:
«Estás aí, Pedro?»
Parecia a voz do Mário. Encaminhou-se para a porta. Não chegou a abri-la.
«Deixem-me descansar.» Disse, agastado.
«Não queres jantar?»
«Mais logo. Jantem vocês.»
«Como quiseres, Pedro. Olha, o prato fica dentro do forno para não arrefecer.»
Não o deixavam em paz. Queriam acabar com ele. Tinham tudo preparado. Insistiam naquela falsa amizade. Queriam que comesse porque a comida estava envenenada. Não. Era o vinho. Devia haver cianeto no vinho. Mas a vida era só sua. Só ele podia dispor do seu futuro.
Com passos de um autómato dirigiu-se ao armário. Por momentos ficou estático, tentando refletir. O fio da vida estendia-se na sua frente e ele tinha em seu poder a tesoura para o cortar. Não podia mais. Chegava enfim ao limite da resistência. Nem era preciso uma tesoura. O fio estava tenso e assim ia partir-se por si. A náusea abandonava-o, aos poucos, como o ondular da cobra que deixou a presa, inerte. Nada tinha a perder. Não era mais do que os outros que ficaram, lá fora, numa agonia horrível. Pobre Gaspar. Nunca devia ter abandonado o seu companheiro. Esse, sim. Fora um amigo verdadeiro.
Abriu a gaveta do armário. As mãos foram apalpando, no interior, até que pararam. Na vida de todas as pessoas havia um emaranhado de estradas com muitas encruzilhadas. Pedro navegava agora numa dessas estradas rumo a um abismo fatal, sem fazer o mínimo esforço para se desviar.
Deitou-se na cama. Não tardava que tentassem abrir a porta. Fechou os olhos para afastar a ideia fixa. Que bom se conseguisse dormir. Mas não. Aquilo estava com ele. Via-lhe os contornos, as garras aceradas que lhe dilaceravam as entranhas. Não podia fugir. Tinha medo do escuro. Ouvia alguém gargalhar no escuro. A querer atirar-se a ele. Era horrível. Já não era senhor de si.
Levantou-se bruscamente e ficou soerguido na cama, à escuta. Ouviu vozes sussurrantes. Riu baixo. Iam ter uma surpresa muito grande. Libertava-se, finalmente libertava-se.
Sentiu mexerem na porta. Uma tentativa. Mais uma. E outra vez as vozes dos malditos. Alguém a chamar:
«Estás aí, Pedro?»
Parecia a voz do Mário. Encaminhou-se para a porta. Não chegou a abri-la.
«Deixem-me descansar.» Disse, agastado.
«Não queres jantar?»
«Mais logo. Jantem vocês.»
«Como quiseres, Pedro. Olha, o prato fica dentro do forno para não arrefecer.»
Não o deixavam em paz. Queriam acabar com ele. Tinham tudo preparado. Insistiam naquela falsa amizade. Queriam que comesse porque a comida estava envenenada. Não. Era o vinho. Devia haver cianeto no vinho. Mas a vida era só sua. Só ele podia dispor do seu futuro.
Com passos de um autómato dirigiu-se ao armário. Por momentos ficou estático, tentando refletir. O fio da vida estendia-se na sua frente e ele tinha em seu poder a tesoura para o cortar. Não podia mais. Chegava enfim ao limite da resistência. Nem era preciso uma tesoura. O fio estava tenso e assim ia partir-se por si. A náusea abandonava-o, aos poucos, como o ondular da cobra que deixou a presa, inerte. Nada tinha a perder. Não era mais do que os outros que ficaram, lá fora, numa agonia horrível. Pobre Gaspar. Nunca devia ter abandonado o seu companheiro. Esse, sim. Fora um amigo verdadeiro.
Abriu a gaveta do armário. As mãos foram apalpando, no interior, até que pararam. Na vida de todas as pessoas havia um emaranhado de estradas com muitas encruzilhadas. Pedro navegava agora numa dessas estradas rumo a um abismo fatal, sem fazer o mínimo esforço para se desviar.
«Achas que o Pedro está com dores de cabeça?» perguntou o Tomás.
«Por amor de Deus deixa a porra desse livro e presta atenção. Acho que ele não aguentou mais a solidão e pirou de vez. Talvez o facto do amigo ter sido apanhado antes de poder fugir o tenha afetado mais do que pensávamos.»
O Tomás apreciou as palavras dela. Sugou-as. Sabiam a néctar. Afinal, a Mafalda dava conta que ele existia. Ótimo. Estava tudo bem encaminhado. Melhor encaminhado do que pensava. Era só uma questão de tempo e esse era coisa que não faltava.
«Há uns dias atrás começou a isolar-se. Hoje dei com ele de mãos crispadas e olhar estranho. Parecia não ver ninguém à frente. Nem sequer respondeu às perguntas que lhe fiz. Agora disse-nos que lhe doía a cabeça e que ia descansar. Só queria que vissem a cara dele. Metia medo.»
«Que podemos fazer?»
«Não sei, Tomás. A crise parece estar numa fase galopante. Os sintomas têm sido ocultados de forma quase perfeita. Isto só foi possível porque o Pedro atingiu o limite da dissimulação.»
«Então temos que agir depressa!»
«Onde está a Teresa?»
«No quarto, Mário.» Disse Mafalda.
«Por favor vai chamá-la. Temos que ir falar todos com ele! É preciso convencê-lo a tomar quanto antes o antidepressivo. E devemos ser rápidos. Cada minuto que passa é muito importante.»
«Eu falo com ele. A mim vai ouvir-me. Somos companheiros de longa data.»
Pouco depois a Teresa já estava connosco. Junto à porta do quarto olhámos uns para os outros. Resolvi tomar a iniciativa. Afinal era o chefe.
«Estás aí, Pedro? Abre a porta. Precisamos de falar contigo.»
Demorou algum tempo a responder. Voltou a repetir que queria descansar.
«E agora?, insistimos mais uma vez?»
«Acho melhor.»
De repente ouvimos um estrondo vindo do interior do quarto. Fiquei sem pinga de sangue.
Num instante arrombámos a porta. Ficámos especados. Pedro estava estendido no chão, de costas. Ao lado havia uma pistola de calibre nove. Aproximei-me, trémulo. Voltei o corpo. Parecia que aflorava um sorriso de gozo no rosto de Pedro. Nem um esgar de sofrimento.
Após o impacto da situação criada pelo suicídio de Pedro, o bom senso pareceu voltar ao abrigo. Os quatro unimo-nos mais numa tentativa natural de sobrevivência. Nunca deixámos de falar sobre o que aconteceu, tentando tirar conclusões, sobretudo, compreender a atitude tresloucada do Pedro. Ao isolar-se, criou um mundo muito próprio que começou a destruir, pouco a pouco, de forma dissimulada.
Mas havia um problema bicudo. Não sabíamos o que fazer ao corpo. Nada estava programado.
Depois de uma acalorada discussão, concluímos que o cadáver não podia ficar dentro do abrigo. O mais prático era deixá-lo lá fora. Pura e simplesmente abandoná-lo. Estava morto.
«Teve sempre horror a ser enterrado debaixo de terra!» opôs-se a Mafalda.
«Então que fazemos?» perguntei.
Tomás teve uma ideia. Havia um pequeno lago a quinhentos metros do abrigo. No mar faziam-se os funerais deitando os corpos à água. Aquele lago não era propriamente um mar, mas servia para o efeito. O simbolismo não se perdia. Em menos de dez minutos o corpo era levado para o lago. Uma exposição de dez minutos às radiações devia ainda estar dentro dos padrões de segurança. Era a melhor solução.
«As mulheres ficam.» Disse.
«Não, eu quero ir!» Exclamou a Mafalda.
«Nem penses nisso.»
15 de outubro de 1981...
«Por amor de Deus deixa a porra desse livro e presta atenção. Acho que ele não aguentou mais a solidão e pirou de vez. Talvez o facto do amigo ter sido apanhado antes de poder fugir o tenha afetado mais do que pensávamos.»
O Tomás apreciou as palavras dela. Sugou-as. Sabiam a néctar. Afinal, a Mafalda dava conta que ele existia. Ótimo. Estava tudo bem encaminhado. Melhor encaminhado do que pensava. Era só uma questão de tempo e esse era coisa que não faltava.
«Há uns dias atrás começou a isolar-se. Hoje dei com ele de mãos crispadas e olhar estranho. Parecia não ver ninguém à frente. Nem sequer respondeu às perguntas que lhe fiz. Agora disse-nos que lhe doía a cabeça e que ia descansar. Só queria que vissem a cara dele. Metia medo.»
«Que podemos fazer?»
«Não sei, Tomás. A crise parece estar numa fase galopante. Os sintomas têm sido ocultados de forma quase perfeita. Isto só foi possível porque o Pedro atingiu o limite da dissimulação.»
«Então temos que agir depressa!»
«Onde está a Teresa?»
«No quarto, Mário.» Disse Mafalda.
«Por favor vai chamá-la. Temos que ir falar todos com ele! É preciso convencê-lo a tomar quanto antes o antidepressivo. E devemos ser rápidos. Cada minuto que passa é muito importante.»
«Eu falo com ele. A mim vai ouvir-me. Somos companheiros de longa data.»
Pouco depois a Teresa já estava connosco. Junto à porta do quarto olhámos uns para os outros. Resolvi tomar a iniciativa. Afinal era o chefe.
«Estás aí, Pedro? Abre a porta. Precisamos de falar contigo.»
Demorou algum tempo a responder. Voltou a repetir que queria descansar.
«E agora?, insistimos mais uma vez?»
«Acho melhor.»
De repente ouvimos um estrondo vindo do interior do quarto. Fiquei sem pinga de sangue.
Num instante arrombámos a porta. Ficámos especados. Pedro estava estendido no chão, de costas. Ao lado havia uma pistola de calibre nove. Aproximei-me, trémulo. Voltei o corpo. Parecia que aflorava um sorriso de gozo no rosto de Pedro. Nem um esgar de sofrimento.
Após o impacto da situação criada pelo suicídio de Pedro, o bom senso pareceu voltar ao abrigo. Os quatro unimo-nos mais numa tentativa natural de sobrevivência. Nunca deixámos de falar sobre o que aconteceu, tentando tirar conclusões, sobretudo, compreender a atitude tresloucada do Pedro. Ao isolar-se, criou um mundo muito próprio que começou a destruir, pouco a pouco, de forma dissimulada.
Mas havia um problema bicudo. Não sabíamos o que fazer ao corpo. Nada estava programado.
Depois de uma acalorada discussão, concluímos que o cadáver não podia ficar dentro do abrigo. O mais prático era deixá-lo lá fora. Pura e simplesmente abandoná-lo. Estava morto.
«Teve sempre horror a ser enterrado debaixo de terra!» opôs-se a Mafalda.
«Então que fazemos?» perguntei.
Tomás teve uma ideia. Havia um pequeno lago a quinhentos metros do abrigo. No mar faziam-se os funerais deitando os corpos à água. Aquele lago não era propriamente um mar, mas servia para o efeito. O simbolismo não se perdia. Em menos de dez minutos o corpo era levado para o lago. Uma exposição de dez minutos às radiações devia ainda estar dentro dos padrões de segurança. Era a melhor solução.
«As mulheres ficam.» Disse.
«Não, eu quero ir!» Exclamou a Mafalda.
«Nem penses nisso.»
15 de outubro de 1981...
Depois do suicídio de Pedro fiquei ainda mais acabrunhado. Tínhamos atingido o décimo oitavo mês de permanência numa clausura que deixara marcas em todos. Os estados de espírito pioravam a olhos vistos e a homogeneidade do pequeno grupo ressentia-se disso. Só o desejo de sobrevivência nos retemperava as forças, dando novos alentos para o dia seguinte. Com a ansiedade levada aos mais altos níveis, os dias eram contados avidamente e logo descontados logo nos que restavam de permanência no abrigo. Continuávamos a reunir-nos com regularidade na sala de convívio. Os diálogos eram cada vez mais forçados e nunca chegavam ao fim. Passávamos facilmente da realidade ao sonho, "navegando com risco de naufrágio". O despertar era brutal e a verdade feria. Então vinha a acomodação. Nesse capítulo da viagens sentia-me como peixe na água, uma vez que praticava nessas viagens há muito. Estava no meu ambiente, o mundo dos olhares que atravessavam paredes para se projetarem no horizonte dos impossíveis. Era um especialista nessas fugas e começava a arrastar comigo os meus companheiros, principalmente a Mafalda, que tentava acompanhar-me nas incursões silenciosas e longas. Talvez que fosse um deus acabrunhado pela derrota numa batalha que ninguém via, ou então o grande vencedor de todos os mergulhos no vazio. Agora, com a Mafalda por companheira, visitava com mais frequência o snack dos copos rodopiantes, das gaivotas que planavam ao sabor da corrente aérea e que picavam de repente para a rebentação em busca de um peixe mais ousado, da ausência de uma Patrícia que talvez nunca tivesse existido. Só eu tinha a chave dessas viagens impossíveis. A Mafalda limitava-se a assomar, timidamente, bem distante das areias movediças. Deixava-se ficar, olhando com receio a minha silhueta virtual que atravessava o caminho para lá das areias. Por vezes tinha uma enorme vontade de me seguir, mas as areias abriam-se, em sinal de aviso, mesmo antes de se decidir, como um boqueirão ávido e implacável. Eu sabia e nunca me voltava para trás. Não queria seduzi-la pelo pouco que tinha para oferecer.
Comecei a reparar que o Tomás vigiava os encontros que tinha com a Mafalda. Talvez se apercebesse, ao mesmo tempo, do distanciamento que havia entre nós ou da frieza que não conseguia esconder. Por isso, espreitava, pronto a atacar de surpresa quando a oportunidade surgisse. Quanto à ideia de voltar ao Observatório, essa parecia consolidar-se em cada dia que passava. Queria ver os sinais deixados pela grande explosão que aniquilara a vida na Terra. Dada a proximidade do sol, a explosão teria sido mais grandiosa que o aparecimento no céu de uma supernova a quarenta anos-luz. Tinham "caído" na Terra bombas de neutrões, as tais que conservavam os edifícios e levavam à destruição da vida. A tão falada bomba maldita criada pelos americanos (seria que sós eles a tinham?) vinha antecipadamente à luz da ribalta e trazia outra origem: o astro rei que era a fonte da vida e, afinal, transformara a Terra num túmulo.
Os estafados temas da poluição e da extinção dos dinossauros já não nos interessavam. De que falávamos? Nem sequer do momento em que íamos abandonar o abrigo e das surpresas que nos esperavam lá fora. Embora os outros não partilhassem das minhas ideias, continuava a alimentar a esperança de encontrar os sobreviventes e assim poder formar uma colónia.
«Vais demorar uma eternidade a encontrar os sobreviventes.»
«Também sou da opinião do Tomás.» Concordou a Teresa.
Se formássemos um grupo mais numeroso, maiores seriam as hipóteses de sobrevivência.
«Unidos faremos mais. O trabalho de um irá completar o trabalho do outro e vice-versa. A prioridade é a agricultura. Os cientistas continuarão, dentro do possível, as suas investigações. As invenções já existentes não podem ficar enterradas no esquecimento. Matérias primas não vão faltar. Quantos seremos? Uma pequena multidão para quem os alimentos e a energia serão fundamentais. Há que contar com os bandos armados que vamos encontrar nas cidades e nos campos. Precisamos também de constituir um pequeno núcleo duro defensivo.»
«Isso é utopia, Mário. Para já nem sequer sabemos quantas pessoas sobreviveram. Falas como se fosses descobrir logo uma mão cheia e bem recheada de técnicos, cientistas, agricultores. Seria muita sorte. Temos que contar só connosco. É esse o nosso ponto de partida e não podemos contar com mais, sob pena de entrarmos no campo das especulações. E, quanto a mim, quero que fiques sabendo o que tenciono fazer: penso instalar-me no Observatório e não sair de lá. Tenho os meus aparelhos e os meus livros.
«Estás no teu direito. E vocês?»
«Eu vou contigo, Mário.» Disse Mafalda.
«Não tenho para onde ir. Também vou.»
«Há uma coisa que me preocupa. Já nos informaste que as reservas que temos duram para cerca de um ano. Ou mais que um ano, pois agora somos menos um. Mas como vamos sobreviver lá fora?»
«Não estejas preocupada, Teresa. Penso que a água, os alimentos em conserva e os liofilizados que se encontram às toneladas nas cidades talvez já não estarão contaminados. Mas será tudo analisado antes de ser consumido. Tomei o cuidado de adquirir aparelhos de análise. E queria dar-lhes uma boa notícia: dentro de um mês vou colocar no exterior vários aparelhos contadores de radiações. Se tudo estiver bem, é o momento de semear feijões, grãos e batatas. Está a chegar a época da sementeira. As batatas já estão a grelar. Começamos por assentar arraiais no campo. Só quando estiver tudo a andar bem, com boas perspetivas, é que vamos procurar os possíveis sobreviventes.»
O Pedro enlouqueceu no abrigo. Foi a primeira vítima. Aparentemente, ninguém teve culpa. Podia ter acontecido a qualquer um de nós. Isolou-se sem darmos por isso. Estava farto de viver e pronto, resolveu à sua maneira. Não tinha futuro ou não dispunha de força anímica para recomeçar. Assim, escolheu o caminho mais curto. Um caminho cobarde, mas foi o caminho que escolheu. Só ele dispunha de si.
A Mafalda sussurrou-me ao ouvido:
«Preciso falar-te.»
«Onde?»
«No teu quarto.»
Comecei a reparar que o Tomás vigiava os encontros que tinha com a Mafalda. Talvez se apercebesse, ao mesmo tempo, do distanciamento que havia entre nós ou da frieza que não conseguia esconder. Por isso, espreitava, pronto a atacar de surpresa quando a oportunidade surgisse. Quanto à ideia de voltar ao Observatório, essa parecia consolidar-se em cada dia que passava. Queria ver os sinais deixados pela grande explosão que aniquilara a vida na Terra. Dada a proximidade do sol, a explosão teria sido mais grandiosa que o aparecimento no céu de uma supernova a quarenta anos-luz. Tinham "caído" na Terra bombas de neutrões, as tais que conservavam os edifícios e levavam à destruição da vida. A tão falada bomba maldita criada pelos americanos (seria que sós eles a tinham?) vinha antecipadamente à luz da ribalta e trazia outra origem: o astro rei que era a fonte da vida e, afinal, transformara a Terra num túmulo.
Os estafados temas da poluição e da extinção dos dinossauros já não nos interessavam. De que falávamos? Nem sequer do momento em que íamos abandonar o abrigo e das surpresas que nos esperavam lá fora. Embora os outros não partilhassem das minhas ideias, continuava a alimentar a esperança de encontrar os sobreviventes e assim poder formar uma colónia.
«Vais demorar uma eternidade a encontrar os sobreviventes.»
«Também sou da opinião do Tomás.» Concordou a Teresa.
Se formássemos um grupo mais numeroso, maiores seriam as hipóteses de sobrevivência.
«Unidos faremos mais. O trabalho de um irá completar o trabalho do outro e vice-versa. A prioridade é a agricultura. Os cientistas continuarão, dentro do possível, as suas investigações. As invenções já existentes não podem ficar enterradas no esquecimento. Matérias primas não vão faltar. Quantos seremos? Uma pequena multidão para quem os alimentos e a energia serão fundamentais. Há que contar com os bandos armados que vamos encontrar nas cidades e nos campos. Precisamos também de constituir um pequeno núcleo duro defensivo.»
«Isso é utopia, Mário. Para já nem sequer sabemos quantas pessoas sobreviveram. Falas como se fosses descobrir logo uma mão cheia e bem recheada de técnicos, cientistas, agricultores. Seria muita sorte. Temos que contar só connosco. É esse o nosso ponto de partida e não podemos contar com mais, sob pena de entrarmos no campo das especulações. E, quanto a mim, quero que fiques sabendo o que tenciono fazer: penso instalar-me no Observatório e não sair de lá. Tenho os meus aparelhos e os meus livros.
«Estás no teu direito. E vocês?»
«Eu vou contigo, Mário.» Disse Mafalda.
«Não tenho para onde ir. Também vou.»
«Há uma coisa que me preocupa. Já nos informaste que as reservas que temos duram para cerca de um ano. Ou mais que um ano, pois agora somos menos um. Mas como vamos sobreviver lá fora?»
«Não estejas preocupada, Teresa. Penso que a água, os alimentos em conserva e os liofilizados que se encontram às toneladas nas cidades talvez já não estarão contaminados. Mas será tudo analisado antes de ser consumido. Tomei o cuidado de adquirir aparelhos de análise. E queria dar-lhes uma boa notícia: dentro de um mês vou colocar no exterior vários aparelhos contadores de radiações. Se tudo estiver bem, é o momento de semear feijões, grãos e batatas. Está a chegar a época da sementeira. As batatas já estão a grelar. Começamos por assentar arraiais no campo. Só quando estiver tudo a andar bem, com boas perspetivas, é que vamos procurar os possíveis sobreviventes.»
O Pedro enlouqueceu no abrigo. Foi a primeira vítima. Aparentemente, ninguém teve culpa. Podia ter acontecido a qualquer um de nós. Isolou-se sem darmos por isso. Estava farto de viver e pronto, resolveu à sua maneira. Não tinha futuro ou não dispunha de força anímica para recomeçar. Assim, escolheu o caminho mais curto. Um caminho cobarde, mas foi o caminho que escolheu. Só ele dispunha de si.
A Mafalda sussurrou-me ao ouvido:
«Preciso falar-te.»
«Onde?»
«No teu quarto.»
Naquele momento tinha na minha frente uma mulher sedenta de carícias e a Patrícia “ressuscitada” não passara de um equívoco, de fios em curto circuito permanente. Já nada mais esperava. Devia deixar que os sonhos impossíveis se fossem de todo e não cair na tentação de entrar outra vez no labirinto pantanoso, onde já não podia ser um hábil executante.
Escuta, Mário: dizem que os fantasmas do passado não se veem, são frios e não podem amar. A realidade que tens na tua frente existe e ama-te. Não percas a maré. Vai, Mário, leva a Mafalda contigo. O futuro, mesmo que curto, é vosso. Não deixes que te tirem esse bem precioso.
«Que se passa, Mafalda?»
Escuta, Mário: dizem que os fantasmas do passado não se veem, são frios e não podem amar. A realidade que tens na tua frente existe e ama-te. Não percas a maré. Vai, Mário, leva a Mafalda contigo. O futuro, mesmo que curto, é vosso. Não deixes que te tirem esse bem precioso.
«Que se passa, Mafalda?»
«Quero que sejas meu de uma vez por todas. Com fantasmas ou sem fantasmas.»
Olhei-a fixamente. Os seus olhos não mentiam. Havia neles uma mão cheia de súplicas, de desejo. Não admirava que tivesse acontecido o que aconteceu. Era parvo. Um grande asno. Mas não podia deixar de ser assim. Na realidade, bem lá no fundo, na distância inatingível da alma, só lhe tinha afeição, uma imensa ternura por alguém a quem se quer com pureza infinita. Via a Mafalda por esse prisma. Depois, havia a atração sexual. O objeto que se usa, de vez em quando. E para mim não chegava.
«Não podemos continuar, Mafalda.»
Tragédia iminente. O rosto de Mafalda transfigurou-se. Esperava tudo menos aquelas palavras.
«Porquê?» perguntou, não querendo acreditar no que acabava de ouvir.
«Cada um de nós tem que seguir a sua vida. É um sinal da força do meu destino. Desculpa, mas não quero ferir a tua sensibilidade. Só te posso fazer mal. Nunca fiz bem a ninguém.»
«Tu não vais fazer-me mal. Antes pelo contrário.»
«Eu não te amo, Mafalda. Só sinto atração física por ti.»
«Não estou a pedir-te mais. O que já tivemos ninguém nos pode tirar. Para mim, foi bom. E para ti?»
«Também. E amanhã?»
Acariciei-lhe os cabelos.
«Diz-me que não é verdade. Que é um sonho mau que estou a ter e que vou acordar já. Diz-me. Por favor, diz-me!»
«Ninguém nos pode tirar o que se passou na cama. Mas não é amor. Um dia sonhei que havia de possuir-te. Tornou-se obsessão. Ao mesmo tempo atormentava-me com a possibilidade de vir a acontecer e tentei respeitar-te sempre.»
«Valeu-te de muito.»
«Tens razão. Tu és uma mulher muito atraente e acabou por acontecer. A química funcionou na cama. Não sei explicar. Foi qualquer coisa que me ultrapassou. Mas não te amo.»
«Dizes isso porque estás convencido que não vais fazer-me feliz. Como se não fosse feliz a teu lado só com a tua presença. Com o odor do teu corpo. Com os teus pensamentos secretos que tento adivinhar. Deixa que te ajude. Os momentos que estamos a passar são dramáticos, bem sei. Verás que, quando sairmos deste inferno, tudo será diferente. Vou estar sempre a teu lado.»
«Não compreendes. Teríamos que viver com um intruso. Eu, tu e um segredo terrível. O meu amanhã está muito nublado e semeado de interrogações. E não te vejo nele. O que não é bom presságio.»
«Mas estou. Pressinto que estou. Pode estar nublado, ou mesmo invisível. Não importa. Eu vejo-me nele.»
«Sabes uma coisa? Admiro a tua persistência. Se fosse a ti, não teria muita certeza.»
Nos seus olhos tinha ainda o brilho da esperança. Sorriu para mim. Lentamente aproximou-se da cama e, com gestos provocantes, começou a despir-se. Via o corpo desnudar-se e perturbava-me.
«Vem, amor. Preciso muito de ti...»
Chamava-me. Não era já o seu rosto. Interroguei-me:
Que coisa estranha!, onde é que vi este rosto?
«Vem, Mário...»
Puxou-me suavemente pelo braço em direção à cama. Deixei-me levar. Estava intrigado com a transfiguração ocorrida no rosto de Mafalda. De repente não era ela.
«Não, Mafalda» disse, sem convicção. «É um equívoco.»
O olhar lânguido fazia-me sentir sensações eróticas que começavam a descontrolar-me. Aos poucos, o desejo crescia. E ela estava tão desprotegida, tão carente!
«Vou fazer-te feliz, Mário.»
Que rosto era aquele? Da Patrícia não era.
«Não desejo fazer-te mal. Estamos num engano permanente.»
Olhei-a fixamente. Os seus olhos não mentiam. Havia neles uma mão cheia de súplicas, de desejo. Não admirava que tivesse acontecido o que aconteceu. Era parvo. Um grande asno. Mas não podia deixar de ser assim. Na realidade, bem lá no fundo, na distância inatingível da alma, só lhe tinha afeição, uma imensa ternura por alguém a quem se quer com pureza infinita. Via a Mafalda por esse prisma. Depois, havia a atração sexual. O objeto que se usa, de vez em quando. E para mim não chegava.
«Não podemos continuar, Mafalda.»
Tragédia iminente. O rosto de Mafalda transfigurou-se. Esperava tudo menos aquelas palavras.
«Porquê?» perguntou, não querendo acreditar no que acabava de ouvir.
«Cada um de nós tem que seguir a sua vida. É um sinal da força do meu destino. Desculpa, mas não quero ferir a tua sensibilidade. Só te posso fazer mal. Nunca fiz bem a ninguém.»
«Tu não vais fazer-me mal. Antes pelo contrário.»
«Eu não te amo, Mafalda. Só sinto atração física por ti.»
«Não estou a pedir-te mais. O que já tivemos ninguém nos pode tirar. Para mim, foi bom. E para ti?»
«Também. E amanhã?»
Acariciei-lhe os cabelos.
«Diz-me que não é verdade. Que é um sonho mau que estou a ter e que vou acordar já. Diz-me. Por favor, diz-me!»
«Ninguém nos pode tirar o que se passou na cama. Mas não é amor. Um dia sonhei que havia de possuir-te. Tornou-se obsessão. Ao mesmo tempo atormentava-me com a possibilidade de vir a acontecer e tentei respeitar-te sempre.»
«Valeu-te de muito.»
«Tens razão. Tu és uma mulher muito atraente e acabou por acontecer. A química funcionou na cama. Não sei explicar. Foi qualquer coisa que me ultrapassou. Mas não te amo.»
«Dizes isso porque estás convencido que não vais fazer-me feliz. Como se não fosse feliz a teu lado só com a tua presença. Com o odor do teu corpo. Com os teus pensamentos secretos que tento adivinhar. Deixa que te ajude. Os momentos que estamos a passar são dramáticos, bem sei. Verás que, quando sairmos deste inferno, tudo será diferente. Vou estar sempre a teu lado.»
«Não compreendes. Teríamos que viver com um intruso. Eu, tu e um segredo terrível. O meu amanhã está muito nublado e semeado de interrogações. E não te vejo nele. O que não é bom presságio.»
«Mas estou. Pressinto que estou. Pode estar nublado, ou mesmo invisível. Não importa. Eu vejo-me nele.»
«Sabes uma coisa? Admiro a tua persistência. Se fosse a ti, não teria muita certeza.»
Nos seus olhos tinha ainda o brilho da esperança. Sorriu para mim. Lentamente aproximou-se da cama e, com gestos provocantes, começou a despir-se. Via o corpo desnudar-se e perturbava-me.
«Vem, amor. Preciso muito de ti...»
Chamava-me. Não era já o seu rosto. Interroguei-me:
Que coisa estranha!, onde é que vi este rosto?
«Vem, Mário...»
Puxou-me suavemente pelo braço em direção à cama. Deixei-me levar. Estava intrigado com a transfiguração ocorrida no rosto de Mafalda. De repente não era ela.
«Não, Mafalda» disse, sem convicção. «É um equívoco.»
O olhar lânguido fazia-me sentir sensações eróticas que começavam a descontrolar-me. Aos poucos, o desejo crescia. E ela estava tão desprotegida, tão carente!
«Vou fazer-te feliz, Mário.»
Que rosto era aquele? Da Patrícia não era.
«Não desejo fazer-te mal. Estamos num engano permanente.»
«Vem...»
A coragem fugiu-me.
«Julgo que não te amo. Quero acreditar que não é verdade, mas não tenho argumentos.»
«Não acredito! Diz-me que estou a ter um sonho mau, Mário. Não te abres. Estás convencido que não me fazes feliz porque não fizeste a outra feliz. Eu sei de tudo. De tudo. Esquece-a. Olha, eu estou aqui. Em carne e osso. A outra, se é que existe, não sabes onde está. Dá-me a chama da tua presença. Assim. Não desvies o teu olhar. Deixa que ajude. Os momentos que estamos a passar são dramáticos, bem sei.»
«Não compreendes. É tudo muito complicado, Mafalda. Os sonhos continuam a perseguir-me.»
«Ainda sonhas com ela?»
«Quem?»
«A Patrícia.»
Calei-me. Preferi não responder. Afinal, sabia que não era a Patrícia.
«Podemos viver os três: eu, tu e o segredo.»
«Impossível. Seria um inferno. O meu amanhã será sempre muito cinzento.»
«Mas estou contigo! E estarei sempre. Para te amar.»
«Admiro a tua fé.»
Não respondeu de imediato.
Via-a, à espera, deitada na cama. Nua. Toda minha.
«Vem...» Repetiu, num sussurro.
«Não consigo, Mafalda. Estou a ver-te e não és tu. Ouve bem. Não te vejo! Em cada minuto que passa não te vejo e lamento que seja assim. És muito atraente, sensual. O desejo que sinto de possuir-te é tão grande ou maior que o teu de seres possuída. Acredita. Mas estou a ver sempre a outra. Devo estar a ficar louco.»
«O quê?!...»
«Não consigo.»
Os seus olhos toldaram-se de lágrimas. O sonho já não tinha mais apoio.
«Amigos como dantes?»
«Olha para mim, Mário. Assim. Olhos nos olhos.»
«És uma mulher muito atraente.»
«Quero ler nos teus olhos a verdade. Pronto, já a li. Agora diz-me: é isso que queres?»
«Sim. A tua amizade.»
«Está bem. Fica descansado que terás sempre a minha amizade. Mas com um preço. Tudo tem um preço, meu amigo.»
«Tenta ser razoável. Não te desprezei. Só que não consigo. Amigos como nos velhos tempos?»
A coragem fugiu-me.
«Julgo que não te amo. Quero acreditar que não é verdade, mas não tenho argumentos.»
«Não acredito! Diz-me que estou a ter um sonho mau, Mário. Não te abres. Estás convencido que não me fazes feliz porque não fizeste a outra feliz. Eu sei de tudo. De tudo. Esquece-a. Olha, eu estou aqui. Em carne e osso. A outra, se é que existe, não sabes onde está. Dá-me a chama da tua presença. Assim. Não desvies o teu olhar. Deixa que ajude. Os momentos que estamos a passar são dramáticos, bem sei.»
«Não compreendes. É tudo muito complicado, Mafalda. Os sonhos continuam a perseguir-me.»
«Ainda sonhas com ela?»
«Quem?»
«A Patrícia.»
Calei-me. Preferi não responder. Afinal, sabia que não era a Patrícia.
«Podemos viver os três: eu, tu e o segredo.»
«Impossível. Seria um inferno. O meu amanhã será sempre muito cinzento.»
«Mas estou contigo! E estarei sempre. Para te amar.»
«Admiro a tua fé.»
Não respondeu de imediato.
Via-a, à espera, deitada na cama. Nua. Toda minha.
«Vem...» Repetiu, num sussurro.
«Não consigo, Mafalda. Estou a ver-te e não és tu. Ouve bem. Não te vejo! Em cada minuto que passa não te vejo e lamento que seja assim. És muito atraente, sensual. O desejo que sinto de possuir-te é tão grande ou maior que o teu de seres possuída. Acredita. Mas estou a ver sempre a outra. Devo estar a ficar louco.»
«O quê?!...»
«Não consigo.»
Os seus olhos toldaram-se de lágrimas. O sonho já não tinha mais apoio.
«Amigos como dantes?»
«Olha para mim, Mário. Assim. Olhos nos olhos.»
«És uma mulher muito atraente.»
«Quero ler nos teus olhos a verdade. Pronto, já a li. Agora diz-me: é isso que queres?»
«Sim. A tua amizade.»
«Está bem. Fica descansado que terás sempre a minha amizade. Mas com um preço. Tudo tem um preço, meu amigo.»
«Tenta ser razoável. Não te desprezei. Só que não consigo. Amigos como nos velhos tempos?»
Não respondeu e eu saí, acabrunhado, do quarto.

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