«Tu?!...»
Fui abraçado. Beijado. O espanto não a deixou articular mais qualquer palavra. Nem sequer reagi. Fiquei hirto, de braços pendentes. Mais uma vez não percebia.
«Meu Deus!, que surpresa! Mas entra, entra. Não fiques aí especado à porta.»
Dos fundos da casa chegou um choro de criança. Não havia dúvidas. Era ela. Mas... e a criança?
«Quem é, Mafalda?»
Ouvi uma voz de homem e estremeci. Talvez fosse melhor beliscar-me. Conhecia aquele tom de voz. Não podia ser!
«Adivinha!» gritou ela para dentro.
«Como queres que saiba? Só se fosse bruxo! Já vou aí. Estou a deitar a Anita.»
O homem acabou por aparecer. Tempo de incredibilidade. Vontade de fugir. Foi a vez do outro abraçar-me com vigor. Uma eternidade. E, depois da eternidade, limitei-me a ouvir o que os dois diziam, indeciso entre beliscar-me ou não. Sentia-me esmagado pelos acontecimentos. O homem que veio dos fundos da casa não passava de um fantasma. A tal teoria dos mundos paralelos parecia estar a ir por água abaixo. Os dezoito meses passados no abrigo tinham sido, pura e simplesmente, um sonho. A Mafalda e o Pedro estavam agora na minha frente e, além disso, havia uma criança na casa. Uma menina. Nada fazia sentido.
«Mário, conta-nos o que te aconteceu?»
O que me aconteceu não podia contar. Aliás, de certa forma, eles sabiam o que tinha acontecido ao longo daquele tempo pois estiveram também no abrigo. Ou não?
Decidi calar-me e aguardar pelo desenrolar da conversa.
«Ora... o que me aconteceu?»
«Sim, homem. Desembucha. Parece que viste um fantasma!»
Tinha bem vivo na sua frente o morto e afinal a Mafalda não ficara com o Tomás. Era complicado falar com um morto. Sim. Devia calar-me até adquirir alguns dados consistentes. Assim, deixei que o Pedro fizesse o seu ponto da situação. Aliás, tudo o que pudesse dizer extemporaneamente nunca faria sentido.
Começou a fazer-se luz à medida que foi falando. Nuns breves minutos tudo se alterava. Aqueles minutos valiam bem o tempo que passara no abrigo e que, a acreditar no que estava a ouvir, era quase certo que não tivesse existido, ou então tudo não passara de um sonho muito cinzento. A situação era complicada. Prestava-se a diversas interpretações, todas possíveis, como eram as que resultavam das pinceladas num quadro surrealista. Podia começar por rever o Pedro, estendido no sobrado, de costas, morto e bem morto por uma bala que ele próprio disparou e que o atingiu no cérebro. Lembrava-me do sorriso que exibia quando voltei o corpo de barriga para cima. Um sorriso de vingança. Sereno e enigmático. Mas agora estava a vê-lo também a sorrir e não me parecia ser propriamente o sorriso de um fantasma. Eu é que devia ser o fantasma. Eu, Mário. Campeão de toda a espécie de utopias.
Tudo certo. Tudo muito certo até ao momento em que deixei a nave dos alienígenas. O encontro na praia. Os abraços. Os beijos impulsivos da Mafalda. A ânsia de ouvirem o relato sobre o que se passou na nave. E aí acabava a história para dar origem a uma nova história, esta agora contada por Pedro.
Tínhamos combinado o encontro na casa de Mafalda, no dia seguinte.
«E então?»
«Bem sabes. Nunca mais te vimos. Desapareceste sem deixar rasto. Fomos aos hospitais. À morgue. Nada. De ti, nem um poema. A propósito: ainda escreves poemas, Mário?»
Poemas? Levou-os o vento. Claro que não. Não disse, mas poemas já não tinha vocação para os fazer.
«Mas...?»
«Comunicámos também à polícia, tendo o cuidado de omitir o teu primeiro desaparecimento. Tudo em vão. Um ano mais tarde arquivaram o processo. Desaparecido em parte incerta, foi o que constou do relatório final.»
«Eu, desaparecido?»
«Admiras-te?» perguntou a Mafalda. «Não acredito que foste comprar uma caixa de fósforos ao quiosque e nunca mais voltaste porque te bateram com um pau e ficaste amnésico.»
«Já aconteceu. Mas estou a brincar. Não liguem.»
Lancei um olhar interrogador para ambos. A Mafalda mostrou uma certa perturbação que desapareceu logo quando o Pedro continuou o relato. O tempo correu. Um, dois, três anos.
«E tu continuavas desaparecido...»
No fim de oitenta e oito resolveram então unir os destinos. Um ano depois nasceu a Anita. Tão bonita como a mãe.
Foi então que a Mafalda levantou os olhos. Ao mesmo tempo parecia dizer:
«Esperei por ti até perder a esperança. Agora que voltaste, é demasiado tarde.»
E viveram muito felizes.
Uma dúvida entre muitas:
«Conhecem o Tomás?»
«Não. Mas sei que é um amigo teu. Astrónomo, não é?»
«Sim, claro, Pedro.»
Os meus amigos trocaram um olhar cúmplice.
«E por onde andaste todos estes anos?»
«Bem. Por aqui e por ali...» Foi o que pude responder.
«É muito vaga a tua resposta. Não se desaparece sem mais nem menos. Afinal, onde estiveste?»
Boa pergunta, Pedro.
Uma história muito complicada, mesmo muito complicada, para ser contada naquele momento. Podia falar, por exemplo, dele, deitado de bruços no soalho e com uma pistola ao seu lado. Morto e bem morto, mas vivendo ao mesmo tempo e noutro espaço, ou noutro tempo e noutro espaço. Era um absurdo falar das explosões solares e do abrigo. Do perigo das radiações letais vindas dol. Da convivência com pessoas que agora não sabia classificar quando à sua existência real. Da própria ligação com Mafalda e da sua traição motivada por despeito. Da ressurreição de Pedro. De tanta coisa!
Como iam encarar a história que tinha para contar, vivida pelo grupo, havendo logo à partida aquele pressuposto estranho de duplicidade espaço-tempo?
«Desculpem. Agora acontece-me muitas vezes. Confesso que fiquei perturbado com os acontecimentos na nave. Por onde andei? Aqui e ali, conforme já disse. Julgo que estou a viver um pesadelo e o pior de tudo é que não sei se o pesadelo é hoje, aqui, ou tem sido desde há treze anos.»
«Treze anos?»
«Então...?, não desapareci em oitenta e um?»
«Em oitenta. Portanto, catorze anos.»
«Seja, Pedro. Catorze.»
«Confessa que o apelo dos extraterrestres foi mais forte e que convenceram-te a ir com eles. Não era esse o teu sonho?, saber mais sobre o que estava para lá do limite dos teus conhecimentos?»
Como não me lembrei?
«É verdade. Sempre sonhei ter a liberdade para seguir espaço adentro à procura de novas formas de vida, se possível descobrir novas civilizações. Sabem dos dossiês que organizei. Folhas e folhas que colei. Resumos que fiz. Não posso negar a atração pelo pelo lado oculto da razão. Suspeitava que não estávamos sós no universo e que os fantasmas vestiam outras roupagens que não víamos. Disse-lhes muitas vezes que eles estavam connosco, que sempre estiveram connosco.»
«E então tens andado por aqui e por ali.»
«Na vossa situação também não acreditava. Não os condeno por fazerem esse julgamento. Sim, porque eu sei que nunca acreditaram na história que lhes contei.»
«Não é bem assim. Eu e o Gaspar fomos testemunhas quando a nave te aspirou. Mas no regresso, só te vimos aparecer naquela praia deserta.»
«Era já noite alta. Vocês e os restantes do grupo...»
«Era fim de tarde.»
«Bom, não faz sentido continuarmos a ter esta conversa. Esqueçam então. A verdade é outra. Provoquei tais distúrbios na via pública que me meteram num manicómio.»
«Quase que acreditava, Mário.»
O único ponto a meu favor. Viram-me desaparecer no interior da nave. Depois, o tempo e o espaço duplicaram-se. A cópia e o original traçaram o seu caminho escondidos um do outro, com a existência de duas pessoas simultaneamente em momentos e espaços não coincidentes. Eu apenas funcionei como testemunha e os dois oscilaram, como um eletrão, aleatoriamente num e noutro mundo, sem se lembrarem do que estava a acontecer.
«Mário, nós só queremos perceber o que se passou. O Pedro e o Gaspar foram, provavelmente hipnotizados naquela noite.» Disse a Mafalda.
«Sim, é uma hipótese. E quem os hipnotizou? Como que por magia apareceu o Houdini que, com um gesto largo, fez surgir a nave. Pouco depois elevei-me, levado por um feixe de luz. Ou então foi a Branca de Neve que me veio buscar.»
«Basta de ironias! Conta-nos o que aconteceu!»
«Já contei. Vim direto do manicómio para aqui. Penso ser isso que querem que diga. Então eu digo.»
«Era algo de importante o que tinhas para nos contar. Estavas muito excitado. Além daquela história dos extraterrestres, falaste de perturbações no sol e de radiações perigosas. Ficámos intrigados. Mas disseste que estavas cansado e combinámos então um encontro para o dia seguinte. E o dia seguinte nunca aconteceu. Tenta compreender a nossa posição.»
«E a minha?»
«Em nome dos tempos antigos, conta-nos a verdade.»
«A última verdade?»
«Que seja.»
«Então lá vai. Partindo do princípio que o tu e o Gaspar... a propósito, que é feito dele?»
«Ainda esteve cá ontem.»
Do Gaspar é que não sabia mesmo nada. Nunca chegou a entrar no abrigo.
«Como sabem, fui de livre vontade. Não sei como eles eram. Nunca os vi. Contactavam comigo recorrendo a um androide muito humanizado. Mas não lhes contei já isto?»
«Não» disse Pedro. «Falaste de qualquer coisa extraordinária que tinha acontecido. Do duplicado de uma mulher do teu passado. Aí mudaste de assunto e...»
«... guardei então para o dia seguinte. O dia que, segundo vocês, nunca mais aconteceu.»
«Adiante. Como era esse androide?»
«A cópia fiel de uma mulher do meu passado. Sondaram-me a memória...»
«A célebre Patrícia do snack!» argumentou Mafalda, com um certo ar de despeito que não me passou despercebido.
«Ela era um elo de ligação com os alienígenas. Estes tinham formas cerebroides, horríveis.»
«Viste-os alguma vez?» perguntou Mafalda.
«Não. Eu e a suposta Patrícia comunicávamos telepaticamente.»
«Ah! Não sabia que tinhas esse dom.»
«E não tenho. Não me perguntem como foi. Eles começaram a comunicar e eu aprendi instantaneamente. Mas, continuando, andavam no espaço em mais uma missão científica e, ao aproximarem-se do nosso sistema solar, captaram uma mensagem oriunda de uma das sondas Pioneiro 10 ou Pioneiro 11. Sabe-se que em março de mil novecentos e setenta e quatro esta última sonda tinha atravessado a cintura de asteroides e deslocava-se a uma velocidade próxima dos cinquenta mil quilómetros por hora e no final do mesmo ano passou perto de Júpiter. Em agosto de mil novecentos e setenta e nove chegou às proximidades de saturno e enviou para a Terra informações sobre os seus anéis e satélites.»
«Seguiram-se as Voyager. Se tu e os teus amigos extraterrestres tiveram um encontro imediato em oitenta, decerto que eles não falaram destas sondas.» Esclareceu Pedro.
«Pois não. Mas disseram-me que existia outro planeta para lá da órbita de Plutão. Sabiam da sua existência?»
Abanaram a cabeça em simultâneo.
«Nunca ouvimos falar de tal.»
«O objetivo das expedições daquelas criaturas era detetar e estudar exaustivamente qualquer forma de vida inteligente. Sempre com um objetivo. Não interferirem no dia a dia de qualquer civilização, por menos evoluída que estivesse. No mínimo podiam informar de uma eventual catástrofe. Foi esse o caso. Talvez uma moeda de troca por ter colaborado prontamente. Sondaram todos os escaninhos do meu cérebro, consciente e subconsciente, chegando até ao ponto, imaginem, de reconstituírem o filme de toda a minha vida. Até vasculharam memórias do meu passado remoto, o menino que gostava muito de gatos, os seus medos e traumas que se refletiram, mais tarde, em comportamentos sem sustentação lógica. É impressionante. Não tenho palavras para explicar ou medir o avanço mental e tecnológico dessa gente. Digamos que são mágicos. Tudo o que me aconteceu e que tive a grata oportunidade de assistir e ouvir foram momentos de pura magia. Até descobriram a imortalidade, imaginem.»
«Se são tão avançados tecnologicamente, conforme dizes, e porque não interferem na evolução das civilizações, isto é, no futuro, como também dizes, por que motivo não conseguiram convencer-te a seguires com eles depois de acabada a sua missão na Terra? Provavelmente levam consigo um exemplar da espécie em estudo. Ou dois.»
«Basta-lhes uma célula para terem o registo de cada exemplar para a sua base de dados. Melhor dizendo, a história. Mas não me perguntem a razão do interesse por mim. Bastava também uma célula e quiseram-me todo. Foi o que me revelaram. E eu acabei por dizer que não. Confesso que, por momentos, vacilei. Os argumentos davam para pensar. No raciocínio frio, cem por cento lógico, não admitiram o falhanço estatístico. Falharam, em termos de probabilidade, por menos de um milésimo. No seu pensamento lógico não têm lugar os sentimentos como o amor e o ódio, a saudade, o desejo de ficar ou de partir. Recriaram uma espécie de holograma que saiu da sua projeção e que tentou influenciar-me. Esse holograma, o meu sonho adormecido do passado, fez-me vacilar bastante enquanto não descobri que estava desprovido de sensações, ou tinha sensações muito distantes dos nossos padrões. Assim, quando me despedi daquilo que era a Patrícia, descobri que estava a despedir-me de uma coisa virtual.»
«Perdeste uma oportunidade única na vida de seres senhor de conhecimentos inimagináveis. E logo contigo, um amante do saber. Um desenraizado e desiludido por ver pisados, esmagados, ideais dirigidos para a conceção de um mundo justo e feliz. Um revoltado que usou a violência levada ao extremo para atingir o que nunca poderia estar à distância de estender a mão. Um sem terra que poderia ter-se tornado filho do universo. Como explicas?»
«Tens razão, Pedro. Perdi a oportunidade de ser um filho eterno do universo, de descobrir civilizações embrionárias e outras ainda mais evoluídas que a nossa. Podia também tornar-me eterno e não quis. Podia também ensinar a Patrícia a sair do holograma, a soltar uma lágrima, a sorrir como a verdadeira Patrícia sorria, a beijar-me como só ela sabia beijar. Perdi tudo, e porquê?»
«Sim. Porquê?» perguntou a Mafalda, expectante.
«Pelo simples motivo que os meus amigos e a humanidade ficariam num espaço-tempo que nunca mais seria o meu.»
«Parece mais lógico. Falaste há pouco de uma catástrofe que podia ter acontecido, ou que já aconteceu.» Lembrou a Mafalda. «Estavas a referir-te a quê?»
«Disse isso? Não me lembro.»
Via-me a entrar no beco sem saída que não desejava.
«Vá, não disfarces mais.»
Hesitei. Queria ir por outro caminho.
«Deixem-me fazer um esforço. Sabem, ando muito baralhado desde que dei comigo ao balcão de uma cervejaria, isto depois de ter desaparecido pela segunda vez. Fui despejando copo de cerveja atrás de copo, tentando, ao mesmo tempo, soltar a língua do empregado. Depois começámos a falar de anos diferentes. Só isto: estava em mil novecentos e oitenta e um e ele treze anos mais à frente. Após uma curta discussão começou a contar-me factos ocorridos de que nunca tinha ouvido falar. E quando vi na minha frente, num calendário, o ano de mil novecentos e noventa e quatro, então, senti um baque. De repente via-me envolvido por um vazio. Que me aconteceu em todo esse tempo de escuridão completa? Onde estive e o que fiz?»
«Depois vieste procurar-nos.» Disse Mafalda.
«Querias dizer que vim procurar-te. Só a ti. Mas não. Não é verdade. Julgava-te do lado de lá. E o Pedro estava morto. Bem morto.» Pensei.
«Como deves calcular, não imaginava que tinhas casado com o Pedro e que tinham uma filha.»
Lembrei-me do dia em a vi no quarto. Nua, sentada na cama, sorrindo, languidamente. Prometia impossíveis.
«Vem...»
«O quê?»
«Desculpa, falava para os meus botões.»
«Estás estranho» reconheceu Pedro.
«Dir-se-ia que já não és o mesmo Mário.»
«Pois não.» Admiti.
«Estás a falar sério?»
«Brinco.»
«Brinco.»
«Que alívio!»
«Perturbou-te qualquer coisa e não nos queres contar. Vamos, confessa lá à tua amiga. Em memória dos tempos antigos.»
«Apenas tive uma amnésia. Só isso. Deixa-me olhar para ti com olhos de gente. Engordaste um pouco ou estou enganado?»
«Engordei.»
Não consegui desviar o olhar dos seios.
«Tu estás na mesma. Parece que os anos não contaram.»
Parecia, ou não tinham contado?
Ironia. Perturbei-me com a ideia. Logicamente não envelheci mais do que dois anos. Ficava uma lacuna do restante tempo.
«De facto os meus anos não contaram. Nem sequer me lembro do que aconteceu. Onde estive. O que fiz. Se viajei. Se estive no mesmo sítio.»
«Por acaso não terás continuado em ligação com os teus amigos no desempenho de uma missão especial, como se fosses um olho que transmitia informação para bordo da nave? Puseram-te num estado inconsciente e foste transmitindo telepaticamente para eles.»
«Durante treze anos? Não precisavam de tanto tempo.»
Era também uma hipótese a considerar. Simularam, provavelmente, aquela história do abrigo quando já estava a ser utilizado por eles. Então não havia abrigo, nem alternância de espaço-tempo, nem nada. Só um estado de inconsciência, de ausência total.
Então o que era verdadeiro?, o presente com que colidira de súbito, ou o tempo passado no abrigo?
«É tarde. Vocês devem querer deitar-se.»
«Estás cansado. Ficas cá esta noite. Certamente não tens para onde ir. Amanhã conversamos e tenho a certeza que vais lembrar-te de tudo e voltar a ser o mesmo Mário que conhecemos.»
Tiravam-se os três encostos e estendiam-se sobre o sofá. Assim, ficava uma cama improvisada. Lembrava-me.
«Vais dormir aqui. Recordas-te da sala antiga?»
Como se fosse ontem. Só falta a televisão.
«Agora a sala é onde estivemos há pouco. É também casa de jantar. O quarto de hóspedes mudou para aqui. Como te deves recordar, havia três quartos: o da Mafalda, o meu e do Gaspar e o teu. Se ainda te lembras, esta casa passou a ser da Mafalda e nós mudámos para outra. Entretanto, meses depois, preferiste alugar um pequeno apartamento, onde ficaste até que aconteceu o que aconteceu. Demos baixa do apartamento. Temos as tuas coisas pessoais guardadas, exceto a mobília que vendemos, por falta de espaço. Em relação a isso e a outros assuntos, amanhã acertamos as contas.»
«Não te preocupes com o dinheiro que eu também não.»
«Agora vai descansar que bem precisas.»
Era verdade. Vinha de uma longa viagem de treze anos.
«Nota-se muito?»
«Está à vista. A Mafalda vai buscar um pijama meu.»
«Obrigado, mas não costumo dormir de pijama.»
«É verdade, já me esquecia desse pormenor. Queres mais alguma coisa? Um copo de leite?»
«Estou bem assim, obrigado.»
Pudera, com a ressaca...
«Então, até amanhã.»
Dei alguns passos de reconhecimento. Cada objeto que via e tocava era uma recordação dolorosa. Tudo parecia vivo. O passado voltava. Tinham sido tempos diferentes. Ah!, o desejo de voltar atrás e de não repetir os mesmos erros.
Deitei-me no sofá. Necessitava de descansar, de fechar os olhos. Sabia-me bem ficar assim, de mãos na nuca, tentando não pensar, não trazer mais recordações à mente.
De olhos fechados tentei concentrar-me num ponto. Um ponto minúsculo. Sim, via-o. Ali estava o ponto. Brilhando no escuro. Ao longe. Afastando-se. Distante. Cada vez mais distante. Mais virtual. Brilhando na ausência. Até ser ausência. Ausência. Nada. Nada.
Acordei bruscamente. Parecia-me que a cama tinha estremecido. Acendi a luz, sobressaltado.
Seria um sismo?
Nada estremecia, nem ouvia gritos. O abrigo encontrava-se mergulhado num banho de silêncio. Mas sentira aquilo. Um chamamento. Olhei em volta, fazendo um reconhecimento rápido. Afinal, não estava no abrigo. Aquela era a casa da Mafalda. Antes, no tempo das utopias, fora o refúgio secreto do grupo. Agora a Mafalda e o Pedro viviam juntos. E havia a Anita. Tão bonita como a mãe.
Senti-me mais descansado. Tudo estava bem. As poucas horas que dormira tinham-me retemperado as forças.
Soergui-me na cama. Só achava estranho ter acordado tão bruscamente. Nem na noite do sismo, no abrigo, me sucedeu o que sucedeu. Nessa noite acordei bastante sobressaltado e tinha tomado, aos poucos, consciência do que ia acontecendo. Reagi com demasiada lentidão. Desta vez tinha sido diferente. Acordei num momento, mas não sabia o que tinha acontecido. O abanão fora real. Alguém me chamara. Eram cinco da manhã.
Estiquei os braços. Olhei para mim de alto a baixo e dei conta que adormeci vestido, tal o sono que tinha.
Sentia uma enorme vontade de sair imediatamente daquela casa. Apenas uma enorme vontade. O que já era muito. Não porque me sentisse sufocar, mas porque queria sair. Estranho? Talvez. Queria. Era só isso.
Levantei os estores com lentidão, tentando não fazer barulho. Lá fora a rua estava deserta. Gostava assim. Ia vaguear pela rua até o dia nascer. Depois, logo se via.
Abri a porta do quarto e atravessei o corredor, sem fazer barulho. Conhecia aquela casa de olhos fechados. Ao fundo havia a porta de saída. Dei a volta à chave. Pronto. Porta aberta. Porta fechada. Tudo feito no mais absoluto silêncio. Calmamente desci as escadas. Não queria fazer ruído com o elevador. Num instante encontrava-me no exterior.
Cá fora esperava-me uma noite escura, apenas iluminada pela luz das estrelas. Não me preocupei com o facto dos candeeiros não iluminarem. Senti-me atraído pela beleza misteriosa do céu.
Quantos mistérios e quantos anos necessários para os desvendar?
Aqueles pontos brilhantes que via, resquícios da luz que atravessara o espaço ao longo de milhares de anos-luz, contavam velhas histórias de epopeias, que nunca seriam conhecidas, de estrelas que estava a ver e já não existiam. Tive oportunidade de fazer viagens intermináveis de estrela em estrela, de galáxia em galáxia, de viver a imortalidade e tudo rejeitei por força do torrão natal que significara muito na altura e que agora nada me dizia. Não aceitei.
Onde estariam “eles”?, em vários sítios, como a probabilidade que acontecia com o eletrão?
Voltei a contemplar o firmamento, procurando um indício que não existia. A imagem era fria, de desalento. A esperança morria ali, no espaço inacessível. Restava-me o desencantamento, afinal a constante na passagem efémera pelos palcos da vida. Ou melhor: pelos bastidores. Nem mesmo os tempos gloriosos do idealismo não deixaram de ser vividos na clandestinidade. Nem mesmo as mulheres da minha vida deixaram um fim condigno para o ator principal. Vivi ao sabor dos instintos, da paixão e do ódio, com passagens virtuais pelo sacrifício e pela solidariedade, não deixando de ser desesperadamente egoísta, porque embora recordando, atormentado, os momentos mais negros, ao mesmo tempo adquirira as capacidades de sempre-em-pé, de quem sofre e logo esquece. A filantropia, essa praticara de forma teórica, a ponto da Manuela me perguntar um dia:
«Qual é o seu real e qual é o seu fictício?»
Um deus com pés de barro, segundo a Patrícia. Não deixara de interiorizar-me, entrando no labirinto movediço para onde a Mafalda espreitava, ao longe, e voltando sempre nas asas do sonho desfeito, para um novo adiar de decisões.
Caminhava, ao acaso, sugando avidamente o tutano da noite, tal como sempre gostei. Mais uma vez, nos bastidores, a reviver ligações frustradas, a rumar para outras paragens que eram sempre as mesmas, embora vistas de um ângulo diferente. Metido dentro de mim próprio, tal feto indefeso no útero materno, só assim era o senhor da verdade e ganhava novas energias, fugindo da teia que eu próprio criara. Aliás, nem valia a pena cair na teia já que nem a aranha me desejava.
Cansado de errar pelas ruas sem destino, sentei-me num banco de jardim. Já passava uma ou outra pessoa. Ia amanhecer em breve. E cada pessoa que passava tinha a sua verdade, o seu mundo próprio, onde eu não cabia, assim como as pessoas não cabiam no meu mundo.
(Acordou com um ruído de movimento de estores. Viu as horas na escuridão, premindo o botão do relógio. Levantou-se, cauteloso. Deu passos na direção da porta. Abriu-a, devagar, e fechou-a logo. Havia luz no quarto de Mário. Raciocinou com rapidez. Era melhor vestir-se e aguardar. Assim fez. Enfiou as calças e a camisa. Procurou os sapatos. Como de costume, estava um em cada sítio. A desvantagem de ser desarrumado. Calçou-os. Ouvia os passos dele no quarto. Devia estar nervoso. Espreitou outra vez. Viu-o assomar à porta e também espreitar para um e outro lado do corredor. Estava vestido. Jogavam ao rato e ao gato e o rato não sabia que estava a ser espiado.
Era isso. Preparava a fuga com cuidado. Sentiu passos suaves no corredor. Mário escapava-se sem sequer desligar a luz. A chave da porta rodou. No instante imediato a porta fechou-se. Sabia o que fazer. Saiu do quarto tentando não tropeçar em qualquer objeto. Deu tempo a que ele se afastasse para uma distância segura. Momentos volvidos encontrava-se na escada. Desceu os degraus e aproximou-se da porta da rua. Viu-o parado, no meio da rua, aparentando indecisão. Olhava o céu, rodando a cabeça em círculo, simulando o movimento de uma câmara de filmar.
Que procurava nas estrelas?
Talvez estivesse à espera de um sinal. A sua atitude era estranha. Se queria fugir, devia afastar-se rapidamente daquelas paragens. Mas não, continuava parado no meio da rua e a olhar o céu estrelado.
«Apenas tive uma amnésia. Só isso. Deixa-me olhar para ti com olhos de gente. Engordaste um pouco ou estou enganado?»
«Engordei.»
Não consegui desviar o olhar dos seios.
«Tu estás na mesma. Parece que os anos não contaram.»
Parecia, ou não tinham contado?
Ironia. Perturbei-me com a ideia. Logicamente não envelheci mais do que dois anos. Ficava uma lacuna do restante tempo.
«De facto os meus anos não contaram. Nem sequer me lembro do que aconteceu. Onde estive. O que fiz. Se viajei. Se estive no mesmo sítio.»
«Por acaso não terás continuado em ligação com os teus amigos no desempenho de uma missão especial, como se fosses um olho que transmitia informação para bordo da nave? Puseram-te num estado inconsciente e foste transmitindo telepaticamente para eles.»
«Durante treze anos? Não precisavam de tanto tempo.»
Era também uma hipótese a considerar. Simularam, provavelmente, aquela história do abrigo quando já estava a ser utilizado por eles. Então não havia abrigo, nem alternância de espaço-tempo, nem nada. Só um estado de inconsciência, de ausência total.
Então o que era verdadeiro?, o presente com que colidira de súbito, ou o tempo passado no abrigo?
«É tarde. Vocês devem querer deitar-se.»
«Estás cansado. Ficas cá esta noite. Certamente não tens para onde ir. Amanhã conversamos e tenho a certeza que vais lembrar-te de tudo e voltar a ser o mesmo Mário que conhecemos.»
Tiravam-se os três encostos e estendiam-se sobre o sofá. Assim, ficava uma cama improvisada. Lembrava-me.
«Vais dormir aqui. Recordas-te da sala antiga?»
Como se fosse ontem. Só falta a televisão.
«Agora a sala é onde estivemos há pouco. É também casa de jantar. O quarto de hóspedes mudou para aqui. Como te deves recordar, havia três quartos: o da Mafalda, o meu e do Gaspar e o teu. Se ainda te lembras, esta casa passou a ser da Mafalda e nós mudámos para outra. Entretanto, meses depois, preferiste alugar um pequeno apartamento, onde ficaste até que aconteceu o que aconteceu. Demos baixa do apartamento. Temos as tuas coisas pessoais guardadas, exceto a mobília que vendemos, por falta de espaço. Em relação a isso e a outros assuntos, amanhã acertamos as contas.»
«Não te preocupes com o dinheiro que eu também não.»
«Agora vai descansar que bem precisas.»
Era verdade. Vinha de uma longa viagem de treze anos.
«Nota-se muito?»
«Está à vista. A Mafalda vai buscar um pijama meu.»
«Obrigado, mas não costumo dormir de pijama.»
«É verdade, já me esquecia desse pormenor. Queres mais alguma coisa? Um copo de leite?»
«Estou bem assim, obrigado.»
Pudera, com a ressaca...
«Então, até amanhã.»
Dei alguns passos de reconhecimento. Cada objeto que via e tocava era uma recordação dolorosa. Tudo parecia vivo. O passado voltava. Tinham sido tempos diferentes. Ah!, o desejo de voltar atrás e de não repetir os mesmos erros.
Deitei-me no sofá. Necessitava de descansar, de fechar os olhos. Sabia-me bem ficar assim, de mãos na nuca, tentando não pensar, não trazer mais recordações à mente.
De olhos fechados tentei concentrar-me num ponto. Um ponto minúsculo. Sim, via-o. Ali estava o ponto. Brilhando no escuro. Ao longe. Afastando-se. Distante. Cada vez mais distante. Mais virtual. Brilhando na ausência. Até ser ausência. Ausência. Nada. Nada.
Acordei bruscamente. Parecia-me que a cama tinha estremecido. Acendi a luz, sobressaltado.
Seria um sismo?
Nada estremecia, nem ouvia gritos. O abrigo encontrava-se mergulhado num banho de silêncio. Mas sentira aquilo. Um chamamento. Olhei em volta, fazendo um reconhecimento rápido. Afinal, não estava no abrigo. Aquela era a casa da Mafalda. Antes, no tempo das utopias, fora o refúgio secreto do grupo. Agora a Mafalda e o Pedro viviam juntos. E havia a Anita. Tão bonita como a mãe.
Senti-me mais descansado. Tudo estava bem. As poucas horas que dormira tinham-me retemperado as forças.
Soergui-me na cama. Só achava estranho ter acordado tão bruscamente. Nem na noite do sismo, no abrigo, me sucedeu o que sucedeu. Nessa noite acordei bastante sobressaltado e tinha tomado, aos poucos, consciência do que ia acontecendo. Reagi com demasiada lentidão. Desta vez tinha sido diferente. Acordei num momento, mas não sabia o que tinha acontecido. O abanão fora real. Alguém me chamara. Eram cinco da manhã.
Estiquei os braços. Olhei para mim de alto a baixo e dei conta que adormeci vestido, tal o sono que tinha.
Sentia uma enorme vontade de sair imediatamente daquela casa. Apenas uma enorme vontade. O que já era muito. Não porque me sentisse sufocar, mas porque queria sair. Estranho? Talvez. Queria. Era só isso.
Levantei os estores com lentidão, tentando não fazer barulho. Lá fora a rua estava deserta. Gostava assim. Ia vaguear pela rua até o dia nascer. Depois, logo se via.
Abri a porta do quarto e atravessei o corredor, sem fazer barulho. Conhecia aquela casa de olhos fechados. Ao fundo havia a porta de saída. Dei a volta à chave. Pronto. Porta aberta. Porta fechada. Tudo feito no mais absoluto silêncio. Calmamente desci as escadas. Não queria fazer ruído com o elevador. Num instante encontrava-me no exterior.
Cá fora esperava-me uma noite escura, apenas iluminada pela luz das estrelas. Não me preocupei com o facto dos candeeiros não iluminarem. Senti-me atraído pela beleza misteriosa do céu.
Quantos mistérios e quantos anos necessários para os desvendar?
Aqueles pontos brilhantes que via, resquícios da luz que atravessara o espaço ao longo de milhares de anos-luz, contavam velhas histórias de epopeias, que nunca seriam conhecidas, de estrelas que estava a ver e já não existiam. Tive oportunidade de fazer viagens intermináveis de estrela em estrela, de galáxia em galáxia, de viver a imortalidade e tudo rejeitei por força do torrão natal que significara muito na altura e que agora nada me dizia. Não aceitei.
Onde estariam “eles”?, em vários sítios, como a probabilidade que acontecia com o eletrão?
Voltei a contemplar o firmamento, procurando um indício que não existia. A imagem era fria, de desalento. A esperança morria ali, no espaço inacessível. Restava-me o desencantamento, afinal a constante na passagem efémera pelos palcos da vida. Ou melhor: pelos bastidores. Nem mesmo os tempos gloriosos do idealismo não deixaram de ser vividos na clandestinidade. Nem mesmo as mulheres da minha vida deixaram um fim condigno para o ator principal. Vivi ao sabor dos instintos, da paixão e do ódio, com passagens virtuais pelo sacrifício e pela solidariedade, não deixando de ser desesperadamente egoísta, porque embora recordando, atormentado, os momentos mais negros, ao mesmo tempo adquirira as capacidades de sempre-em-pé, de quem sofre e logo esquece. A filantropia, essa praticara de forma teórica, a ponto da Manuela me perguntar um dia:
«Qual é o seu real e qual é o seu fictício?»
Um deus com pés de barro, segundo a Patrícia. Não deixara de interiorizar-me, entrando no labirinto movediço para onde a Mafalda espreitava, ao longe, e voltando sempre nas asas do sonho desfeito, para um novo adiar de decisões.
Caminhava, ao acaso, sugando avidamente o tutano da noite, tal como sempre gostei. Mais uma vez, nos bastidores, a reviver ligações frustradas, a rumar para outras paragens que eram sempre as mesmas, embora vistas de um ângulo diferente. Metido dentro de mim próprio, tal feto indefeso no útero materno, só assim era o senhor da verdade e ganhava novas energias, fugindo da teia que eu próprio criara. Aliás, nem valia a pena cair na teia já que nem a aranha me desejava.
Cansado de errar pelas ruas sem destino, sentei-me num banco de jardim. Já passava uma ou outra pessoa. Ia amanhecer em breve. E cada pessoa que passava tinha a sua verdade, o seu mundo próprio, onde eu não cabia, assim como as pessoas não cabiam no meu mundo.
(Acordou com um ruído de movimento de estores. Viu as horas na escuridão, premindo o botão do relógio. Levantou-se, cauteloso. Deu passos na direção da porta. Abriu-a, devagar, e fechou-a logo. Havia luz no quarto de Mário. Raciocinou com rapidez. Era melhor vestir-se e aguardar. Assim fez. Enfiou as calças e a camisa. Procurou os sapatos. Como de costume, estava um em cada sítio. A desvantagem de ser desarrumado. Calçou-os. Ouvia os passos dele no quarto. Devia estar nervoso. Espreitou outra vez. Viu-o assomar à porta e também espreitar para um e outro lado do corredor. Estava vestido. Jogavam ao rato e ao gato e o rato não sabia que estava a ser espiado.
Era isso. Preparava a fuga com cuidado. Sentiu passos suaves no corredor. Mário escapava-se sem sequer desligar a luz. A chave da porta rodou. No instante imediato a porta fechou-se. Sabia o que fazer. Saiu do quarto tentando não tropeçar em qualquer objeto. Deu tempo a que ele se afastasse para uma distância segura. Momentos volvidos encontrava-se na escada. Desceu os degraus e aproximou-se da porta da rua. Viu-o parado, no meio da rua, aparentando indecisão. Olhava o céu, rodando a cabeça em círculo, simulando o movimento de uma câmara de filmar.
Que procurava nas estrelas?
Talvez estivesse à espera de um sinal. A sua atitude era estranha. Se queria fugir, devia afastar-se rapidamente daquelas paragens. Mas não, continuava parado no meio da rua e a olhar o céu estrelado.
Decidiu-se, finalmente, a caminhar em frente, embora com passos ainda hesitantes. A noite estava muito escura. Aproximou-se mais de Mário. Tinha que correr o risco, não fosse perdê-lo de vista.
Reparou que caminhava devagar, aparentemente sem rumo. Não compreendia a razão daquela fuga precipitada. Se queria justificar-se não devia fugir como um criminoso.
O tempo foi passando. Continuou a andar. Não se cansava. Estavam já longe de casa e a Mafalda ia sobressaltar-se quando acordasse e não o visse na cama. Talvez deduzisse o que acontecera, quando visse luz no quarto do Mário e chamasse por ele. Ficou mais descansado. Agora o que interessava era não perder de vista o amigo.
Finalmente sentou-se num banco. Ia amanhecer em breve. Espreitou na sombra. Mário permanecia imóvel. O tempo a correr e nada acontecia.
Mudou de posição, virando-se de lado. Pareceu-lhe que estava a conversar com alguém. Arriscou aproximar-se ainda mais um pouco para certificar-se de que os dois eram as únicas criaturas presentes naquele jardim. Na verdade não havia mais ninguém. Em todo o caso, não deixava de achar estranho, pois viu-o levantar-se de novo.
Ia continuar a andar sem destino?
A resposta à sua interrogação veio quase a seguir quando viu Mário dar alguns passos. Meia dúzia. Nem mais nem menos. Depois parou, erguendo de novo a cabeça para o céu.
«Quem procuras, Mário?» perguntou, em surdina.
Continuou a andar em frente. Devagar. Aparentemente sem rumo. Havia qualquer coisa no ar. Pedro teve um pressentimento e acertou em cheio. Foi um instante. Bruscamente, o amigo desapareceu. Como se a noite o tivesse engolido.
Coçou a cabeça, comprometido. Agora era a Mafalda que não ia acreditar na sua versão.
«Mataste-o, Pedro. Mataste-o friamente e foi por ciúmes! Só por ciúmes...»)
Fui encontrá-los na sala de convívio. A um canto, a Teresa e o Tomás conversavam. Por sua vez, a Mafalda estava afundada num sofá, voltada para a porta, talvez fixando um ponto imaginário da carpete.
Sorri ante aquele quadro familiar.
Levantou os olhos e não quis acreditar. Levou uma mão à boca tentando reprimir um grito que soltou, misto de espanto e de alegria. Não queria acreditar no que via. Não, não era real.
Num impulso corremos um ao encontro do outro.
«Há tanto tempo que esperava este momento!»
«Como foste parvo!»
Chorava e ria, ao mesmo tempo. Os outros rodearam-nos, estarrecidos.
«Onde te meteste? Pregaste-nos cá um susto!»
Cerrei os lábios para controlar a comoção do momento. A pergunta do Tomás era complicada de responder.
Onde estive?
Lembrei-me do Pedro. Vivo! Não iam acreditar.
«É bom regressar.» Foi o que pude dizer no momento.
Enquanto revia os amigos e todos falavam ao mesmo tempo, metralhando-me com perguntas, ia pensando. Tentava pôr de novo as ideias em ordem. Por exemplo, descobrir quanto tempo passara desde que tinha decidido abandonar o abrigo. Não ia revelar que a Mafalda vivia com o Pedro e dessa ligação nascera uma menina. Que este estava vivo e, ao mesmo tempo, tinha-se suicidado no abrigo. Que havia dois espaços-tempo e portais invisíveis pelas quais comuniquei com dois mundos onde o tempo corria com ritmos diferentes. Tanta coisa estranha para explicar!
Seria que a Teresa e o Tomás não tinham lugar no outro espaço-tempo?
Por momentos pensei que estava deitado na cama dos encostos, sonhando que voltava ao abrigo e que abraçava a Mafalda.
«Digam-me que não estou a sonhar! Belisquem-me...»
Os olhos da Mafalda, rasos de lágrimas, falavam de promessas que tinham ficado esquecidas há muito.
«Andámos à tua procura por toda a parte. Tivemos que o fazer a pé. Levaste o Toyota e o camião não quis pegar. Ao fim de duas horas regressámos ao abrigo. A Mafalda ficou inconsolável. Queria continuar. Levámo-la à força para o abrigo. Sabes? Tudo o que aconteceu no quarto da Mafalda foi um equívoco. Não passou de uma parvoíce minha. Ela pôs-me de imediato no lugar.»
«Mas então, quando entrei no quarto sorriste para mim em tom irónico. Foi isso que vi!»
«Não aconteceu nada, Mário!» disse a Mafalda, muito agarrada a mim.
Reparou que caminhava devagar, aparentemente sem rumo. Não compreendia a razão daquela fuga precipitada. Se queria justificar-se não devia fugir como um criminoso.
O tempo foi passando. Continuou a andar. Não se cansava. Estavam já longe de casa e a Mafalda ia sobressaltar-se quando acordasse e não o visse na cama. Talvez deduzisse o que acontecera, quando visse luz no quarto do Mário e chamasse por ele. Ficou mais descansado. Agora o que interessava era não perder de vista o amigo.
Finalmente sentou-se num banco. Ia amanhecer em breve. Espreitou na sombra. Mário permanecia imóvel. O tempo a correr e nada acontecia.
Mudou de posição, virando-se de lado. Pareceu-lhe que estava a conversar com alguém. Arriscou aproximar-se ainda mais um pouco para certificar-se de que os dois eram as únicas criaturas presentes naquele jardim. Na verdade não havia mais ninguém. Em todo o caso, não deixava de achar estranho, pois viu-o levantar-se de novo.
Ia continuar a andar sem destino?
A resposta à sua interrogação veio quase a seguir quando viu Mário dar alguns passos. Meia dúzia. Nem mais nem menos. Depois parou, erguendo de novo a cabeça para o céu.
«Quem procuras, Mário?» perguntou, em surdina.
Continuou a andar em frente. Devagar. Aparentemente sem rumo. Havia qualquer coisa no ar. Pedro teve um pressentimento e acertou em cheio. Foi um instante. Bruscamente, o amigo desapareceu. Como se a noite o tivesse engolido.
Coçou a cabeça, comprometido. Agora era a Mafalda que não ia acreditar na sua versão.
«Mataste-o, Pedro. Mataste-o friamente e foi por ciúmes! Só por ciúmes...»)
Fui encontrá-los na sala de convívio. A um canto, a Teresa e o Tomás conversavam. Por sua vez, a Mafalda estava afundada num sofá, voltada para a porta, talvez fixando um ponto imaginário da carpete.
Sorri ante aquele quadro familiar.
Levantou os olhos e não quis acreditar. Levou uma mão à boca tentando reprimir um grito que soltou, misto de espanto e de alegria. Não queria acreditar no que via. Não, não era real.
Num impulso corremos um ao encontro do outro.
«Há tanto tempo que esperava este momento!»
«Como foste parvo!»
Chorava e ria, ao mesmo tempo. Os outros rodearam-nos, estarrecidos.
«Onde te meteste? Pregaste-nos cá um susto!»
Cerrei os lábios para controlar a comoção do momento. A pergunta do Tomás era complicada de responder.
Onde estive?
Lembrei-me do Pedro. Vivo! Não iam acreditar.
«É bom regressar.» Foi o que pude dizer no momento.
Enquanto revia os amigos e todos falavam ao mesmo tempo, metralhando-me com perguntas, ia pensando. Tentava pôr de novo as ideias em ordem. Por exemplo, descobrir quanto tempo passara desde que tinha decidido abandonar o abrigo. Não ia revelar que a Mafalda vivia com o Pedro e dessa ligação nascera uma menina. Que este estava vivo e, ao mesmo tempo, tinha-se suicidado no abrigo. Que havia dois espaços-tempo e portais invisíveis pelas quais comuniquei com dois mundos onde o tempo corria com ritmos diferentes. Tanta coisa estranha para explicar!
Seria que a Teresa e o Tomás não tinham lugar no outro espaço-tempo?
Por momentos pensei que estava deitado na cama dos encostos, sonhando que voltava ao abrigo e que abraçava a Mafalda.
«Digam-me que não estou a sonhar! Belisquem-me...»
Os olhos da Mafalda, rasos de lágrimas, falavam de promessas que tinham ficado esquecidas há muito.
«Andámos à tua procura por toda a parte. Tivemos que o fazer a pé. Levaste o Toyota e o camião não quis pegar. Ao fim de duas horas regressámos ao abrigo. A Mafalda ficou inconsolável. Queria continuar. Levámo-la à força para o abrigo. Sabes? Tudo o que aconteceu no quarto da Mafalda foi um equívoco. Não passou de uma parvoíce minha. Ela pôs-me de imediato no lugar.»
«Mas então, quando entrei no quarto sorriste para mim em tom irónico. Foi isso que vi!»
«Não aconteceu nada, Mário!» disse a Mafalda, muito agarrada a mim.
Comecei a contar o melhor que pude o que me aconteceu.
«Quando abandonei o abrigo, esperava encontrar uma terra ressequida, sem vegetação e foi precisamente o contrário que aconteceu, cerca de meio quilómetro à frente. De repente, vi a paisagem modificar-se. Voltou o verde dos campos. Até havia pessegueiros e pereiras carregados de fruta quase madura e as outras árvores cobertas de folhas e em volta toda a vegetação estava verde.»
«Mas nós vimos os campos sem vegetação, a terra gretada pela seca que se fez sentir. A Terra estava morta, Mário!» confessou Teresa. «A paisagem era desoladora.»
«Podem crer que estou a falar verdade. Tudo mudou de um momento para o outro. Quando me cruzei com o primeiro automobilista e com os outros que se seguiram, não queria acreditar no que estava a acontecer. A entrada na cidade, o fulgor das luzes e o movimento usual de pessoas. Achei tudo uma coisa do outro mundo.»
E era.
«Por que motivo não voltaste logo para trás a avisar-nos?»
«E quem te disse, Tomás, que não voltei? A tentativa que fiz para encontrar o abrigo e o desaparecimento de todos os indícios, foram motivos suficientes para regressar à cidade. Entrei numa cervejaria e comecei a beber. Sentia-me perdido. Talvez bebendo viesse alguma ideia boa. A seguir aconteceu a conversa com o empregado da cervejaria e a descoberta fantástica que tinha ocorrido um salto no tempo. Treze anos!»
«Como assim, amor?»
«Havia duas Terras em que a vida correra...»
«Sim?»
«A vida correra com destinos diferentes. Estava numa outra Terra que já não era a minha, compreendem? E continuei a beber, a caminho de uma bebedeira monumental, cada vez com mais falta de lucidez e de imaginação. Desorientado.»
«E a tempestade solar?»
«Nem sinal dela.»
«E como conseguiste voltar ao abrigo?»
«Não me perguntes, Mafalda. De repente dei comigo à porta do abrigo. Não me lembro de mais nada.»
«E o Toyota?»
«Não sei.»
«Será que vamos conseguir entrar nesse mundo?»
Encolhi os ombros.
«Quem o pode dizer? Acho que se abriu um portal.»
«Um portal, amor?»
«Sim. A ligar duas Terras com destinos diferentes e em que o tempo correu de forma diferente também.»
«Não sonhaste?» perguntou Tomás.
«Já esperava por essa pergunta.»
«Quer então dizer que o tempo corre com ritmo diferente no outro mundo que visitaste. Aí os campos eram verdes, a cidade tinha o ritmo de vida do costume e não houve cataclismo no Sol. É isso?»
«Exato.»
«No nosso mundo o aleatório deu-nos um futuro negro. Os campos estão estéreis. Não cresceu uma única erva. Durante duas horas em que te procurámos por todo o lado, nem uma formiga vimos. A extinção foi total. Quebrou-se a cadeia alimentar. Perdeu-se tudo.»
«Pode não ter sido igual em todo o globo. Além disso, deve haver alguns sobreviventes.» Tentei animá-los. «Lembrem-se daqueles indivíduos que não se afastavam muito dos seus abrigos por causa do medo que uma guerra atómica pudesse eclodir.»
«É verdade. Os sobrevivalistas fanáticos.» Referiu a Teresa.
«Tu próprio já nos contaste, Tomás! E temos as sementes! E também esperança. Sobretudo muita esperança. Alguns sobrevivalistas possuíam, no interior dos seus abrigos, além de víveres e munições, pequenas arcas de Noé. Nem tudo está perdido. Esperamos pelo fim da quarentena e vamos depois lançar-nos ao trabalho.»
«Para quê esperarmos mais?» perguntou Teresa.
«Se é o que estás a pensar» disse o Tomás «de facto ficámos todos mais ou menos contaminados porque já estivemos lá fora durante algum tempo.»
«Então vamos a ver o que podemos fazer destes terrenos inóspitos. É tempo de arregaçarmos as mangas.»
Continuava a ser o líder incontestado dos tempos gloriosos da revolução e agora dos tempos dos sem futuro à vista. Testemunhas mudas da agonia da Terra. Das árvores nuas, falos impotentes, que apontavam para o céu. Dos terrenos gretados, sedentos de água que fugiam até à linha do horizonte e prometiam repetir-se por muitos dias momentos sem solução de esperança. O que víamos falava por si. Nada mais de diferente para testemunharmos.
«Quando foi que deram pela minha falta?»
«Logo que saíste precipitadamente fui ao teu quarto. Estava vazio. Procurei na sala. Tinhas desaparecido como que por encanto. Rapidamente dei o alarme e fomos todos para o exterior. O resto já sabes.»
«Aconteceu há quanto tempo? Há dois dias, claro. É escusado perguntar.»
«Não.»
«Três...?»
«Quinze dias.»
«Ia jurar que saí há dois dias do abrigo. Mas se dizes que foi há quinze dias, então do outro lado correu o tempo correu mais lento. E agora estou a pensar...»
Ficaram à espera que continuasse.
«É uma suposição. A situação inverteu-se. Agora o tempo corre mais rápido aqui. Pode ser que um dia haja um reajustamento.»
«Como assim?»
«Tomás, há um fator qualquer de multiplicação, penso. No outro mundo o tempo estava decorrer mais depressa. Se agora o fator estiver a interferir de forma inversa, há uma esperança que os dois mundos voltem a encaixar um no outro.»
O Pedro era o elemento perturbador. Ou ficava num mundo, ou no noutro. Mas pensando melhor, não podia ter morrido. Assim, este mundo onde estávamos agora deixava automaticamente de ter bases para continuar a existir. E prosseguindo a extrapolação, era levado a concluir que nunca podia ter existido o cataclismo no Sol, nem tão pouco, a entrevista na televisão, nem a vivência no abrigo onde estávamos agora, como toda uma vivência que se passou no seu interior, aliás uma vivência muito trágica que todos sentimos na pele. Como consequência, o Pedro, a Mafalda, a Teresa e o Tomás esquecerão este pesadelo e a sua vida continuará a fluir normalmente porque nada de mau aconteceu. Quando, não sei. Só fica uma pessoa em situação indefinida. Eu. Já não bastavam as areias movediças onde me deslocava com perícia, mas sempre em segurança. Agora eram os portais que se abriam e fechavam, de forma aleatória.
Bastava de complicações. O melhor era ouvir o Tomás.
«A teoria prevê a existência de mundos paralelos, mas não estou muito dentro dessa teoria. Como podem surgir esses mundos, como se passa dum para o outro, como se fecham e nos deixam ficar retidos. Eu sei lá...»
«Que grande embrulhada, Tomás!» exclamou a Teresa.
«Tens razão. Saiu-nos a parte ruim do bolo. Quem ficou do lado de lá, bem pode dar graças a Deus.»
Continuei a especular.
«Só me lembro de se terem passado dois dias. E o resto do tempo?, onde estive? Talvez num terceiro mundo. Não me lembro.»
«Foi um sonho, Mário. Um sonho muito estranho» afirmou Tomás. «Ou então os teus amigos do espaço levaram-te e agora estás de volta.»
«Não posso acreditar. Estavam de partida para outra galáxia e mostravam uma certa pressa.»
Mirei a Mafalda de alto a baixo.
«Que estás a ver?» perguntou, corando.
«Eras mais forte. Quando te encontrei com o Pedro dei conta que tinhas engordado.» Pensei.
«Desculpa a pergunta, Mafalda que vou fazer-te...»
«Estás desculpado antecipadamente.»
«Se gerasse uma filha no teu ventre, que nome lhe davas?»
«Em que estás a pensar, maroto?»
Riram todos. Inclusivamente eu.
«Não é o que pensas, apenas curiosidade.»
A resposta foi imediata.
«Sendo assim, satisfaço a tua curiosidade, com uma ponta de tristeza. Anita. Sempre gostei deste nome.»
«Ah!»
«Que aconteceu? Ficaste perturbado.»
«Já alguma vez te tinha feito esta pergunta?»
«Nunca. Porquê?»
Recompus-me.
«Por nada. Não ligues.»
«Temos que pôr isso a limpo.»
«Precisamos de sangue novo.» Disse a Teresa com malícia.
«Estive em dois mundos alternantes. Num deles, os extraterrestres informaram-me do cataclismo solar. No outro, mais avançado no tempo, devido a qualquer fenómeno aleatório, nada aconteceu de grave. Mas há uma coisa mais. Devem existir ainda terceiros, mesmo quartos mundos onde provavelmente cabem os sonhos estranhos que temos e que afinal não são só sonhos.»
«Talvez tenhas razão, Mário. Mas vê se não passas para um desses mundos onde, de certeza, não existo.»
Sorri.
No outro, ela existia. Mas não era minha.
«Novidades de noventa e quatro, no outro lado?»
«Contarei mais logo, ao serão, Tomás. Mas mudemos de assunto e ataquemos o mais importante de momento. O que vamos fazer agora?»
«Boa pergunta, Mário. Acho ainda cedo para experimentarmos as sementes.»
«É verdade, estamos em outubro.»
«Novembro. Não te esqueças que se passaram mais quinze dias enquanto estiveste ausente. Talvez o mais aconselhável e premente seja tentarmos reparar o camião.»
«Não era só um problema na bateria?»
«Provavelmente. E depois, Mário?»
«Depois, como bandeirantes sem pátria e de todas as pátrias, então carregamos o camião e vamos por aí, com armas e bagagens, à aventura, não perdendo de vista a casa do abrigo. Nunca se sabe o que nos espera, meus amigos. Lembrem-se que eu saltei para o outro mundo e a realidade lá era bem diferente.»
«Temos que ter pensamento positivo.»
«Espero que não nos aconteça o mesmo que me aconteceu da primeira vez quando quis regressar para lhes contar as novidades. Mas vamos então lá para fora.»
Subimos as escadas que davam acesso ao exterior. O Sol começava a baixar no horizonte, avermelhando o céu azul, sem nuvens.
Respirei fundo. A Mafalda estendeu-me a mão que aceitei, apertando-a e sentindo a resposta pronta. Só então constatei que no céu não havia voos circulares de gaivotas. Apesar do mundo agreste que os meus olhos abrangiam na frente, ainda conservava uma vontade quase infinita de acreditar que a vida de todos nós podia ser melhor no futuro. Deste lado tinha a Mafalda, o meu amor. Alguém para me acarinhar e dar alento para prosseguir em frente. Seria bom acordar e ter o seu sorriso a meu lado. Pelo menos enquanto o relógio não marcasse o mesmo tempo do outro lado.
Talvez que estas duas vidas passadas em dois mundos alternantes, que se ligavam por um portal, situada algures, fossem um sonho e que, para lá do sonho, a minha verdadeira vida, também semeada de sonhos, estes perdidos na neblina da memória, estivesse ainda para contar. Provavelmente sem a ligação com a Mafalda, porque neste mundo, que era o nosso, o Sol estava a ficar cada vez mais vermelho e mais frio.
Tinha que encontrar um outro portal para me levar de regresso ao meu verdadeiro mundo, se é que ele existia!
«Mário!»
«Sim, Mafalda?»
«Nunca mais me deixes!»
«Que é isso? Uma mulher tão bonita a chorar! Não chores porque este momento é um marco importante na nossa vida.»
«Quando abandonei o abrigo, esperava encontrar uma terra ressequida, sem vegetação e foi precisamente o contrário que aconteceu, cerca de meio quilómetro à frente. De repente, vi a paisagem modificar-se. Voltou o verde dos campos. Até havia pessegueiros e pereiras carregados de fruta quase madura e as outras árvores cobertas de folhas e em volta toda a vegetação estava verde.»
«Mas nós vimos os campos sem vegetação, a terra gretada pela seca que se fez sentir. A Terra estava morta, Mário!» confessou Teresa. «A paisagem era desoladora.»
«Podem crer que estou a falar verdade. Tudo mudou de um momento para o outro. Quando me cruzei com o primeiro automobilista e com os outros que se seguiram, não queria acreditar no que estava a acontecer. A entrada na cidade, o fulgor das luzes e o movimento usual de pessoas. Achei tudo uma coisa do outro mundo.»
E era.
«Por que motivo não voltaste logo para trás a avisar-nos?»
«E quem te disse, Tomás, que não voltei? A tentativa que fiz para encontrar o abrigo e o desaparecimento de todos os indícios, foram motivos suficientes para regressar à cidade. Entrei numa cervejaria e comecei a beber. Sentia-me perdido. Talvez bebendo viesse alguma ideia boa. A seguir aconteceu a conversa com o empregado da cervejaria e a descoberta fantástica que tinha ocorrido um salto no tempo. Treze anos!»
«Como assim, amor?»
«Havia duas Terras em que a vida correra...»
«Sim?»
«A vida correra com destinos diferentes. Estava numa outra Terra que já não era a minha, compreendem? E continuei a beber, a caminho de uma bebedeira monumental, cada vez com mais falta de lucidez e de imaginação. Desorientado.»
«E a tempestade solar?»
«Nem sinal dela.»
«E como conseguiste voltar ao abrigo?»
«Não me perguntes, Mafalda. De repente dei comigo à porta do abrigo. Não me lembro de mais nada.»
«E o Toyota?»
«Não sei.»
«Será que vamos conseguir entrar nesse mundo?»
Encolhi os ombros.
«Quem o pode dizer? Acho que se abriu um portal.»
«Um portal, amor?»
«Sim. A ligar duas Terras com destinos diferentes e em que o tempo correu de forma diferente também.»
«Não sonhaste?» perguntou Tomás.
«Já esperava por essa pergunta.»
«Quer então dizer que o tempo corre com ritmo diferente no outro mundo que visitaste. Aí os campos eram verdes, a cidade tinha o ritmo de vida do costume e não houve cataclismo no Sol. É isso?»
«Exato.»
«No nosso mundo o aleatório deu-nos um futuro negro. Os campos estão estéreis. Não cresceu uma única erva. Durante duas horas em que te procurámos por todo o lado, nem uma formiga vimos. A extinção foi total. Quebrou-se a cadeia alimentar. Perdeu-se tudo.»
«Pode não ter sido igual em todo o globo. Além disso, deve haver alguns sobreviventes.» Tentei animá-los. «Lembrem-se daqueles indivíduos que não se afastavam muito dos seus abrigos por causa do medo que uma guerra atómica pudesse eclodir.»
«É verdade. Os sobrevivalistas fanáticos.» Referiu a Teresa.
«Tu próprio já nos contaste, Tomás! E temos as sementes! E também esperança. Sobretudo muita esperança. Alguns sobrevivalistas possuíam, no interior dos seus abrigos, além de víveres e munições, pequenas arcas de Noé. Nem tudo está perdido. Esperamos pelo fim da quarentena e vamos depois lançar-nos ao trabalho.»
«Para quê esperarmos mais?» perguntou Teresa.
«Se é o que estás a pensar» disse o Tomás «de facto ficámos todos mais ou menos contaminados porque já estivemos lá fora durante algum tempo.»
«Então vamos a ver o que podemos fazer destes terrenos inóspitos. É tempo de arregaçarmos as mangas.»
Continuava a ser o líder incontestado dos tempos gloriosos da revolução e agora dos tempos dos sem futuro à vista. Testemunhas mudas da agonia da Terra. Das árvores nuas, falos impotentes, que apontavam para o céu. Dos terrenos gretados, sedentos de água que fugiam até à linha do horizonte e prometiam repetir-se por muitos dias momentos sem solução de esperança. O que víamos falava por si. Nada mais de diferente para testemunharmos.
«Quando foi que deram pela minha falta?»
«Logo que saíste precipitadamente fui ao teu quarto. Estava vazio. Procurei na sala. Tinhas desaparecido como que por encanto. Rapidamente dei o alarme e fomos todos para o exterior. O resto já sabes.»
«Aconteceu há quanto tempo? Há dois dias, claro. É escusado perguntar.»
«Não.»
«Três...?»
«Quinze dias.»
«Ia jurar que saí há dois dias do abrigo. Mas se dizes que foi há quinze dias, então do outro lado correu o tempo correu mais lento. E agora estou a pensar...»
Ficaram à espera que continuasse.
«É uma suposição. A situação inverteu-se. Agora o tempo corre mais rápido aqui. Pode ser que um dia haja um reajustamento.»
«Como assim?»
«Tomás, há um fator qualquer de multiplicação, penso. No outro mundo o tempo estava decorrer mais depressa. Se agora o fator estiver a interferir de forma inversa, há uma esperança que os dois mundos voltem a encaixar um no outro.»
O Pedro era o elemento perturbador. Ou ficava num mundo, ou no noutro. Mas pensando melhor, não podia ter morrido. Assim, este mundo onde estávamos agora deixava automaticamente de ter bases para continuar a existir. E prosseguindo a extrapolação, era levado a concluir que nunca podia ter existido o cataclismo no Sol, nem tão pouco, a entrevista na televisão, nem a vivência no abrigo onde estávamos agora, como toda uma vivência que se passou no seu interior, aliás uma vivência muito trágica que todos sentimos na pele. Como consequência, o Pedro, a Mafalda, a Teresa e o Tomás esquecerão este pesadelo e a sua vida continuará a fluir normalmente porque nada de mau aconteceu. Quando, não sei. Só fica uma pessoa em situação indefinida. Eu. Já não bastavam as areias movediças onde me deslocava com perícia, mas sempre em segurança. Agora eram os portais que se abriam e fechavam, de forma aleatória.
Bastava de complicações. O melhor era ouvir o Tomás.
«A teoria prevê a existência de mundos paralelos, mas não estou muito dentro dessa teoria. Como podem surgir esses mundos, como se passa dum para o outro, como se fecham e nos deixam ficar retidos. Eu sei lá...»
«Que grande embrulhada, Tomás!» exclamou a Teresa.
«Tens razão. Saiu-nos a parte ruim do bolo. Quem ficou do lado de lá, bem pode dar graças a Deus.»
Continuei a especular.
«Só me lembro de se terem passado dois dias. E o resto do tempo?, onde estive? Talvez num terceiro mundo. Não me lembro.»
«Foi um sonho, Mário. Um sonho muito estranho» afirmou Tomás. «Ou então os teus amigos do espaço levaram-te e agora estás de volta.»
«Não posso acreditar. Estavam de partida para outra galáxia e mostravam uma certa pressa.»
Mirei a Mafalda de alto a baixo.
«Que estás a ver?» perguntou, corando.
«Eras mais forte. Quando te encontrei com o Pedro dei conta que tinhas engordado.» Pensei.
«Desculpa a pergunta, Mafalda que vou fazer-te...»
«Estás desculpado antecipadamente.»
«Se gerasse uma filha no teu ventre, que nome lhe davas?»
«Em que estás a pensar, maroto?»
Riram todos. Inclusivamente eu.
«Não é o que pensas, apenas curiosidade.»
A resposta foi imediata.
«Sendo assim, satisfaço a tua curiosidade, com uma ponta de tristeza. Anita. Sempre gostei deste nome.»
«Ah!»
«Que aconteceu? Ficaste perturbado.»
«Já alguma vez te tinha feito esta pergunta?»
«Nunca. Porquê?»
Recompus-me.
«Por nada. Não ligues.»
«Temos que pôr isso a limpo.»
«Precisamos de sangue novo.» Disse a Teresa com malícia.
«Estive em dois mundos alternantes. Num deles, os extraterrestres informaram-me do cataclismo solar. No outro, mais avançado no tempo, devido a qualquer fenómeno aleatório, nada aconteceu de grave. Mas há uma coisa mais. Devem existir ainda terceiros, mesmo quartos mundos onde provavelmente cabem os sonhos estranhos que temos e que afinal não são só sonhos.»
«Talvez tenhas razão, Mário. Mas vê se não passas para um desses mundos onde, de certeza, não existo.»
Sorri.
No outro, ela existia. Mas não era minha.
«Novidades de noventa e quatro, no outro lado?»
«Contarei mais logo, ao serão, Tomás. Mas mudemos de assunto e ataquemos o mais importante de momento. O que vamos fazer agora?»
«Boa pergunta, Mário. Acho ainda cedo para experimentarmos as sementes.»
«É verdade, estamos em outubro.»
«Novembro. Não te esqueças que se passaram mais quinze dias enquanto estiveste ausente. Talvez o mais aconselhável e premente seja tentarmos reparar o camião.»
«Não era só um problema na bateria?»
«Provavelmente. E depois, Mário?»
«Depois, como bandeirantes sem pátria e de todas as pátrias, então carregamos o camião e vamos por aí, com armas e bagagens, à aventura, não perdendo de vista a casa do abrigo. Nunca se sabe o que nos espera, meus amigos. Lembrem-se que eu saltei para o outro mundo e a realidade lá era bem diferente.»
«Temos que ter pensamento positivo.»
«Espero que não nos aconteça o mesmo que me aconteceu da primeira vez quando quis regressar para lhes contar as novidades. Mas vamos então lá para fora.»
Subimos as escadas que davam acesso ao exterior. O Sol começava a baixar no horizonte, avermelhando o céu azul, sem nuvens.
Respirei fundo. A Mafalda estendeu-me a mão que aceitei, apertando-a e sentindo a resposta pronta. Só então constatei que no céu não havia voos circulares de gaivotas. Apesar do mundo agreste que os meus olhos abrangiam na frente, ainda conservava uma vontade quase infinita de acreditar que a vida de todos nós podia ser melhor no futuro. Deste lado tinha a Mafalda, o meu amor. Alguém para me acarinhar e dar alento para prosseguir em frente. Seria bom acordar e ter o seu sorriso a meu lado. Pelo menos enquanto o relógio não marcasse o mesmo tempo do outro lado.
Talvez que estas duas vidas passadas em dois mundos alternantes, que se ligavam por um portal, situada algures, fossem um sonho e que, para lá do sonho, a minha verdadeira vida, também semeada de sonhos, estes perdidos na neblina da memória, estivesse ainda para contar. Provavelmente sem a ligação com a Mafalda, porque neste mundo, que era o nosso, o Sol estava a ficar cada vez mais vermelho e mais frio.
Tinha que encontrar um outro portal para me levar de regresso ao meu verdadeiro mundo, se é que ele existia!
«Mário!»
«Sim, Mafalda?»
«Nunca mais me deixes!»
«Que é isso? Uma mulher tão bonita a chorar! Não chores porque este momento é um marco importante na nossa vida.»
Sem comentários:
Enviar um comentário