quinta-feira, 27 de julho de 2023

Quando a Terra ficou em perigo (7)

Toquei segunda vez. Ouvi passos dentro de casa. Foi como se tivesse decorrido uma eternidade até que alguém abriu a porta. Vi um vulto de mulher. A luz acendeu-se e ouvi logo um grito de espanto.
«Tu?!...»
Fui abraçado. Beijado. O espanto não a deixou articular mais qualquer palavra. Nem sequer reagi. Fiquei hirto, de braços pendentes. Mais uma vez não percebia.
«Meu Deus!, que surpresa! Mas entra, entra. Não fiques aí especado à porta.»
Dos fundos da casa chegou um choro de criança. Não havia dúvidas. Era ela. Mas... e a criança?
«Quem é, Mafalda?»
Ouvi uma voz de homem e estremeci. Talvez fosse melhor beliscar-me. Conhecia aquele tom de voz. Não podia ser!
«Adivinha!» gritou ela para dentro.
«Como queres que saiba? Só se fosse bruxo! Já vou aí. Estou a deitar a Anita.»
O homem acabou por aparecer. Tempo de incredibilidade. Vontade de fugir. Foi a vez do outro abraçar-me com vigor. Uma eternidade. E, depois da eternidade, limitei-me a ouvir o que os dois diziam, indeciso entre beliscar-me ou não. Sentia-me esmagado pelos acontecimentos. O homem que veio dos fundos da casa não passava de um fantasma. A tal teoria dos mundos paralelos parecia estar a ir por á­gua abaixo. Os dezoito meses passados no abrigo tinham sido, pura e simplesmente, um sonho. A Mafalda e o Pedro estavam agora na minha frente e, além disso, havia uma criança na casa. Uma menina. Nada fazia sentido.
«Mário, conta-nos o que te aconteceu?»
O que me aconteceu não podia contar. Aliás, de certa forma, eles sabiam o que tinha acontecido ao longo daquele tempo pois estiveram também no abrigo. Ou não?
Decidi calar-me e aguardar pelo desenrolar da conversa.
«Ora... o que me aconteceu?»
«Sim, homem. Desembucha. Parece que viste um fantasma!»
Tinha bem vivo na sua frente o morto e afinal a Mafalda não ficara com o Tomás. Era complicado falar com um morto. Sim. Devia calar-me até adquirir alguns dados consistentes. Assim, deixei que o Pedro fizesse o seu ponto da situação. Aliás, tudo o que pudesse dizer extemporaneamente nunca faria sentido.
Começou a fazer-se luz à medida que foi falando. Nuns breves minutos tudo se alterava. Aqueles minutos valiam bem o tempo que passara no abrigo e que, a acreditar no que estava a ouvir, era quase certo que não tivesse existido, ou então tudo não passara de um sonho muito cinzento. A situação era complicada. Prestava-se a diversas interpretações, todas possíveis, como eram as que resultavam das pinceladas num quadro surrealista. Podia começar por rever o Pedro, estendido no sobrado, de costas, morto e bem morto por uma bala que ele próprio disparou e que o atingiu no cérebro. Lembrava-me do sorriso que exibia quando voltei o corpo de barriga para cima. Um sorriso de vingança. Sereno e enigmático. Mas agora estava a vê-lo também a sorrir e não me parecia ser propriamente o sorriso de um fantasma. Eu é que devia ser o fantasma. Eu, Mário. Campeão de toda a espécie de utopias.
Tudo certo. Tudo muito certo até ao momento em que deixei a nave dos alienígenas. O encontro na praia. Os abraços. Os beijos impulsivos da Mafalda. A ânsia de ouvirem o relato sobre o que se passou na nave. E aí acabava a história para dar origem a uma nova história, esta agora contada por Pedro.
Tínhamos combinado o encontro na casa de Mafalda, no dia seguinte.
«E então?»
«Bem sabes. Nunca mais te vimos. Desapareceste sem deixar rasto. Fomos aos hospitais. À morgue. Nada. De ti, nem um poema. A propósito: ainda escreves poemas, Mário?»
Poemas? Levou-os o vento. Claro que não. Não disse, mas poemas já não tinha vocação para os fazer.
«Mas...?»
«Comunicámos também à polícia, tendo o cuidado de omitir o teu primeiro desaparecimento. Tudo em vão. Um ano mais tarde arquivaram o processo. Desaparecido em parte incerta, foi o que constou do relatório final.»
«Eu, desaparecido?»
«Admiras-te?» perguntou a Mafalda. «Não acredito que foste comprar uma caixa de fósforos ao quiosque e nunca mais voltaste porque te bateram com um pau e ficaste amnésico.»
«Já aconteceu. Mas estou a brincar. Não liguem.»
Lancei um olhar interrogador para ambos. A Mafalda mostrou uma certa perturbação que desapareceu logo quando o Pedro continuou o relato. O tempo correu. Um, dois, três anos.
«E tu continuavas desaparecido...»
No fim de oitenta e oito resolveram então unir os destinos. Um ano depois nasceu a Anita. Tão bonita como a mãe.
Foi então que a Mafalda levantou os olhos. Ao mes­mo tempo parecia dizer:
«Esperei por ti até perder a esperança. Agora que voltaste, é demasiado tarde.»
E viveram muito feli­zes.
Uma dúvida entre muitas:
«Conhecem o Tomás?»
«Não. Mas sei que é um amigo teu. Astrónomo, não é?» 
«Sim, claro, Pedro.»
Os meus amigos trocaram um olhar cúmplice.
«E por onde andaste todos estes anos?»
«Bem. Por aqui e por ali...» Foi o que pude responder.
«É muito vaga a tua resposta. Não se desaparece sem mais nem menos. Afinal, onde estiveste?»
Boa pergunta, Pedro.
Uma história muito complicada, mesmo muito complicada, para ser contada naquele momento. Podia falar, por exemplo, dele, deitado de bruços no soalho e com uma pistola ao seu lado. Morto e bem morto, mas vivendo ao mesmo tempo e noutro espaço, ou noutro tempo e noutro espaço. Era um absurdo falar das explosões solares e do abrigo. Do perigo das radiações letais vindas dol. Da convivência com pessoas que agora não sabia classificar quando à sua existência real. Da própria ligação com Mafalda e da sua traição motivada por despeito. Da ressurreição de Pedro. De tanta coisa!
Como iam encarar a história que tinha para contar, vivida pelo grupo, havendo logo à partida aquele pressuposto estranho de duplicidade espaço-tempo?
«Desculpem. Agora acontece-me muitas vezes. Confesso que fiquei perturbado com os acontecimentos na nave. Por onde andei? Aqui e ali, conforme já disse. Julgo que estou a viver um pesadelo e o pior de tudo é que não sei se o pesadelo é hoje, aqui, ou tem sido desde há treze anos.»
«Treze anos?»
«Então...?, não desapareci em oitenta e um?»
«Em oitenta. Portanto, catorze anos.»
«Seja, Pedro. Catorze.»
«Confessa que o apelo dos extraterrestres foi mais forte e que convenceram-te a ir com eles. Não era esse o teu sonho?, saber mais sobre o que estava para lá do limite dos teus conhecimentos?»
Como não me lembrei?
«É verdade. Sempre sonhei ter a liberdade para seguir espaço adentro à procura de novas formas de vida, se possível descobrir novas civilizações. Sabem dos dossiês que organizei. Folhas e folhas que colei. Resumos que fiz. Não posso negar a atração pelo pelo lado oculto da razão. Suspeitava que não estávamos sós no universo e que os fantasmas vestiam outras roupagens que não víamos. Disse-lhes muitas vezes que eles estavam connosco, que sempre estiveram connosco.»
«E então tens andado por aqui e por ali.»
«Na vossa situação também não acreditava. Não os condeno por fazerem esse julgamento. Sim, porque eu sei que nunca acreditaram na história que lhes contei.»
«Não é bem assim. Eu e o Gaspar fomos testemunhas quando a nave te aspirou. Mas no regresso, só te vimos aparecer naquela praia deserta.»
«Era já noite alta. Vocês e os restantes do grupo...»
«Era fim de tarde.»
«Bom, não faz sentido continuarmos a ter esta conversa. Esqueçam então. A verdade é outra. Provoquei tais distúrbios na via pública que me meteram num manicómio.»
«Quase que acreditava, Mário.»
O único ponto a meu favor. Viram-me desaparecer no interior da nave. Depois, o tempo e o espaço duplicaram-se. A cópia e o original traçaram o seu caminho escondidos um do outro, com a existência de duas pessoas simultaneamente em momentos e espaços não coincidentes. Eu apenas funcionei como testemunha e os dois oscilaram, como um eletrão, aleatoriamente num e noutro mundo, sem se lembrarem do que estava a acontecer.
«Mário, nós só queremos perceber o que se passou. O Pedro e o Gaspar foram, provavelmente hipnotizados naquela noite.» Disse a Mafalda.
«Sim, é uma hipótese. E quem os hipnotizou? Como que por magia apareceu o Houdini que, com um gesto largo, fez surgir a nave. Pouco depois elevei-me, levado por um feixe de luz. Ou então foi a Branca de Neve que me veio buscar.»
«Basta de ironias! Conta-nos o que aconteceu!»
«Já contei. Vim direto do manicómio para aqui. Penso ser isso que querem que diga. Então eu digo.»
«Era algo de importante o que tinhas para nos contar. Estavas muito excitado. Além daquela história dos extraterrestres, falaste de perturbações no sol e de radiações perigosas. Ficámos intrigados. Mas disseste que estavas cansado e combinámos então um encontro para o dia seguinte. E o dia seguinte nunca aconteceu. Tenta compreender a nossa posição.»
«E a minha?»
«Em nome dos tempos antigos, conta-nos a verdade.»
«A última verdade?»
«Que seja.»
«Então lá vai. Partindo do princípio que o tu e o Gaspar... a propósito, que é feito dele?»
«Ainda esteve cá ontem.»
Do Gaspar é que não sabia mesmo nada. Nunca chegou a entrar no abrigo.
«Como sabem, fui de livre vontade. Não sei como eles eram. Nunca os vi. Contactavam comigo recorrendo a um androide muito humanizado. Mas não lhes contei já isto?»
«Não» disse Pedro. «Falaste de qualquer coisa extraordinária que tinha acontecido. Do duplicado de uma mulher do teu passado. Aí mudaste de assunto e...»
«... guardei então para o dia seguinte. O dia que, segundo vocês, nunca mais aconteceu.»
«Adiante. Como era esse androide
«A cópia fiel de uma mulher do meu passado. Sondaram-me a memória...»
«A célebre Patrícia do snack!» argumentou Mafalda, com um certo ar de despeito que não me passou despercebido.
«Ela era um elo de ligação com os alienígenas. Estes tinham formas cerebroides, horríveis.»
«Viste-os alguma vez?» perguntou Mafalda.
«Não. Eu e a suposta Patrícia comunicávamos telepaticamente.»
«Ah! Não sabia que tinhas esse dom.»
«E não tenho. Não me perguntem como foi. Eles começaram a comunicar e eu aprendi instantaneamente. Mas, continuando, andavam no espaço em mais uma missão científica e, ao aproximarem-se do nosso sistema solar, captaram uma mensagem oriunda de uma das sondas Pioneiro 10 ou Pioneiro 11. Sabe-se que em março de mil novecentos e setenta e quatro esta última sonda tinha atravessado a cintura de asteroides e deslocava-se a uma velocidade próxima dos cinquenta mil quilómetros por hora e no final do mesmo ano passou perto de Júpiter. Em agosto de mil novecentos e setenta e nove chegou às proximidades de saturno e enviou para a Terra informações sobre os seus anéis e satélites.»
«Seguiram-se as Voyager. Se tu e os teus amigos extraterrestres tiveram um encontro imediato em oitenta, decerto que eles não falaram destas sondas.» Esclareceu Pedro.
«Pois não. Mas disseram-me que existia outro planeta para lá da órbita de Plutão. Sabiam da sua existência?»
Abanaram a cabeça em simultâneo.
«Nunca ouvimos falar de tal.»
«O objetivo das expedições daquelas criaturas era detetar e estudar exaustivamente qualquer forma de vida inteligente. Sempre com um objetivo. Não interferirem no dia a dia de qualquer civilização, por menos evoluída que estivesse. No mínimo podiam informar de uma eventual catástrofe. Foi esse o caso. Talvez uma moeda de troca por ter colaborado prontamente. Sondaram todos os escaninhos do meu cérebro, consciente e subconsciente, chegando até ao ponto, imaginem, de reconstituírem o filme de toda a minha vida. Até vasculharam memórias do meu passado remoto, o menino que gostava muito de gatos, os seus medos e traumas que se refletiram, mais tarde, em comportamentos sem sustentação lógica. É impressionante. Não tenho palavras para explicar ou medir o avanço mental e tecnológico dessa gente. Digamos que são mágicos. Tudo o que me aconteceu e que tive a grata oportunidade de assistir e ouvir foram momentos de pura magia. Até descobriram a imortalidade, imaginem.»
«Se são tão avançados tecnologicamente, conforme dizes, e porque não interferem na evolução das civilizações, isto é, no futuro, como também dizes, por que motivo não conseguiram convencer-te a seguires com eles depois de acabada a sua missão na Terra? Provavelmente levam consigo um exemplar da espécie em estudo. Ou dois.»
«Basta-lhes uma célula para terem o registo de cada exemplar para a sua base de dados. Melhor dizendo, a história. Mas não me perguntem a razão do interesse por mim. Bastava também uma célula e quiseram-me todo. Foi o que me revelaram. E eu acabei por dizer que não. Confesso que, por momentos, vacilei. Os argumentos davam para pensar. No raciocínio frio, cem por cento lógico, não admitiram o falhanço estatístico. Falharam, em termos de probabilidade, por menos de um milésimo. No seu pensamento lógico não têm lugar os sentimentos como o amor e o ódio, a saudade, o desejo de ficar ou de partir. Recriaram uma espécie de holograma que saiu da sua projeção e que tentou influenciar-me. Esse holograma, o meu sonho adormecido do passado, fez-me vacilar bastante enquanto não descobri que estava desprovido de sensações, ou tinha sensações muito distantes dos nossos padrões. Assim, quando me despedi daquilo que era a Patrícia, descobri que estava a despedir-me de uma coisa virtual.»
«Perdeste uma oportunidade única na vida de seres senhor de conhecimentos inimagináveis. E logo contigo, um amante do saber. Um desenraizado e desiludido por ver pisados, esmagados, ideais dirigidos para a conceção de um mundo justo e feliz. Um revoltado que usou a violência levada ao extremo para atingir o que nunca poderia estar à distância de estender a mão. Um sem terra que poderia ter-se tornado filho do universo. Como explicas?»
«Tens razão, Pedro. Perdi a oportunidade de ser um filho eterno do universo, de descobrir civilizações embrionárias e outras ainda mais evoluídas que a nossa. Podia também tornar-me eterno e não quis. Podia também ensinar a Patrícia a sair do holograma, a soltar uma lágrima, a sorrir como a verdadeira Patrícia sorria, a beijar-me como só ela sabia beijar. Perdi tudo, e porquê?»
«Sim. Porquê?» perguntou a Mafalda, expectante.
«Pelo simples motivo que os meus amigos e a humanidade ficariam num espaço-tempo que nunca mais seria o meu.»
«Parece mais lógico. Falaste há pouco de uma catástrofe que podia ter acontecido, ou que já aconteceu.» Lembrou a Mafalda. «Estavas a referir-te a quê?»
«Disse isso? Não me lembro.»
Via-me a entrar no beco sem saída que não desejava.
«Vá, não disfarces mais.»
Hesitei. Queria ir por outro caminho.
«Deixem-me fazer um esforço. Sabem, ando muito baralhado desde que dei comigo ao balcão de uma cervejaria, isto depois de ter desaparecido pela segunda vez. Fui despejando copo de cerveja atrás de copo, tentando, ao mesmo tempo, soltar a língua do empregado. Depois começámos a falar de anos diferentes. Só isto: estava em mil novecentos e oitenta e um e ele treze anos mais à frente. Após uma curta discussão começou a contar-me factos ocorridos de que nunca tinha ouvido falar. E quando vi na minha frente, num calendário, o ano de mil novecentos e noventa e quatro, então, senti um baque. De repente via-me envolvido por um vazio. Que me aconteceu em todo esse tempo de escuridão completa? Onde estive e o que fiz?»
«Depois vieste procurar-nos.» Disse Mafalda.
«Querias dizer que vim procurar-te. Só a ti. Mas não. Não é verdade. Julgava-te do lado de lá. E o Pedro estava morto. Bem morto.» Pensei.
«Como deves calcular, não imaginava que tinhas casado com o Pedro e que tinham uma filha.»
Lembrei-me do dia em a vi no quarto. Nua, sentada na cama, sorrindo, languidamente. Prometia impossíveis.
«Vem...»
«O quê?»
«Desculpa, falava para os meus botões.»
«Estás estranho» reconheceu Pedro. 
«Dir-se-ia que já não és o mesmo Mário.» 
«Pois não.» Admiti. 
«Estás a falar sério?»
«Brinco.»
«Que alívio!»
«Perturbou-te qualquer coisa e não nos queres contar. Vamos, confessa lá à tua amiga. Em memória dos tempos antigos.»
«Apenas tive uma amnésia. Só isso. Deixa-me olhar para ti com olhos de gente. Engordaste um pouco ou estou enganado?»
«Engordei.»
Não consegui desviar o olhar dos seios. 
«Tu estás na mesma. Parece que os anos não contaram.»
Parecia, ou não tinham contado?
Ironia. Perturbei-me com a ideia. Logicamente não envelheci mais do que dois anos. Ficava uma lacuna do restante tempo.
«De facto os meus anos não contaram. Nem sequer me lembro do que aconteceu. Onde estive. O que fiz. Se viajei. Se estive no mesmo sítio.»
«Por acaso não terás continuado em ligação com os teus amigos no desempenho de uma missão especial, como se fosses um olho que transmitia informação para bordo da nave? Puseram-te num estado inconsciente e foste transmitindo telepaticamente para eles.»
«Durante treze anos? Não precisavam de tanto tempo.»
Era também uma hipótese a considerar. Simularam, provavelmente, aquela história do abrigo quando já estava a ser utilizado por eles. Então não havia abrigo, nem alternância de espaço-tempo, nem nada. Só um estado de inconsciência, de ausência total.
Então o que era verdadeiro?, o presente com que colidira de súbito, ou o tempo passado no abrigo?
«É tarde. Vocês devem querer deitar-se.»
«Estás cansado. Ficas cá esta noite. Certamente não tens para onde ir. Amanhã conversamos e tenho a certeza que vais lembrar-te de tudo e voltar a ser o mesmo Mário que conhecemos.»

Tiravam-se os três encostos e estendiam-se sobre o sofá. Assim, ficava uma cama improvisada. Lembrava-me.
«Vais dormir aqui. Recordas-te da sala antiga?»
Como se fosse ontem. Só falta a televisão.
«Agora a sala é onde estivemos há pouco. É também casa de jantar. O quarto de hóspedes mudou para aqui. Como te deves recordar, havia três quartos: o da Mafalda, o meu e do Gaspar e o teu. Se ainda te lembras, esta casa passou a ser da Mafalda e nós mudámos para outra. Entretanto, meses depois, preferiste alugar um pequeno apartamento, onde ficaste até que aconteceu o que aconteceu. Demos baixa do apartamento. Temos as tuas coisas pessoais guardadas, exceto a mobília que vendemos, por falta de espaço. Em relação a isso e a outros assuntos, amanhã acertamos as contas.»
«Não te preocupes com o dinheiro que eu também não.»
«Agora vai descansar que bem precisas.»
Era verdade. Vinha de uma longa viagem de treze anos.
«Nota-se muito?»
«Está à vista. A Mafalda vai buscar um pijama meu.»
«Obrigado, mas não costumo dormir de pijama.»
«É verdade, já me esquecia desse pormenor. Queres mais alguma coisa? Um copo de leite?»
«Estou bem assim, obrigado.»
Pudera, com a ressaca...
«Então, até amanhã.»
Dei alguns passos de reconhecimento. Cada objeto que via e tocava era uma recordação dolorosa. Tudo parecia vivo. O passado voltava. Tinham sido tempos diferentes. Ah!, o desejo de voltar atrás e de não repetir os mesmos erros.
Deitei-me no sofá. Necessitava de descansar, de fechar os olhos. Sabia-me bem ficar assim, de mãos na nuca, tentando não pensar, não trazer mais recordações à mente.
De olhos fechados tentei concentrar-me num ponto. Um ponto minúsculo. Sim, via-o. Ali estava o ponto. Brilhando no escuro. Ao longe. Afastando-se. Distante. Cada vez mais distante. Mais virtual. Brilhando na ausência. Até ser ausência. Ausência. Nada. Nada.

Acordei bruscamente. Parecia-me que a cama tinha estremecido. Acendi a luz, sobressaltado.
Seria um sismo?
Nada estremecia, nem ouvia gritos. O abrigo encontrava-se mergulhado num banho de silêncio. Mas sentira aquilo. Um chamamento. Olhei em volta, fazendo um reconhecimento rápido. Afinal, não es­tava no abrigo. Aquela era a casa da Mafalda. Antes, no tempo das utopias, fora o refúgio secreto do grupo. Agora a Mafalda e o Pedro viviam juntos. E havia a Anita. Tão bonita como a mãe.
Senti-me mais descansado. Tudo estava bem. As poucas horas que dormira tinham-me retemperado as forças.
Soergui-me na cama. Só achava estranho ter acordado tão bruscamente. Nem na noite do sismo, no abrigo, me sucedeu o que sucedeu. Nessa noite acordei bastante sobressaltado e tinha tomado, aos poucos, consciência do que ia acontecendo. Reagi com demasiada lentidão. Desta vez tinha sido diferente. Acordei num momento, mas não sabia o que tinha acontecido. O abanão fora real. Alguém me chamara. Eram cinco da manhã.
Estiquei os braços. Olhei para mim de alto a baixo e dei conta que adormeci vestido, tal o sono que tinha.
Sentia uma enorme vontade de sair imediatamente daquela casa. Apenas uma enorme vontade. O que já era muito. Não porque me sentisse sufocar, mas porque queria sair. Estranho? Talvez. Queria. Era só isso.
Levantei os estores com lentidão, tentando não fazer barulho. Lá fora a rua es­tava deserta. Gostava assim. Ia vaguear pela rua até o dia nascer. Depois, logo se via.
Abri a porta do quarto e atravessei o corredor, sem fazer barulho. Conhecia aquela casa de olhos fechados. Ao fundo havia a porta de saída. Dei a volta à chave. Pronto. Porta aberta. Porta fechada. Tudo feito no mais absoluto silêncio. Calmamente desci as escadas. Não queria fazer ruído com o elevador. Num instante encontrava-me no exterior.
Cá fora esperava-me uma noite escura, apenas iluminada pela luz das estrelas. Não me preocupei com o facto dos candeeiros não iluminarem. Senti-me atraído pela beleza misteriosa do céu.
Quantos mistérios e quantos anos necessários para os desvendar?
Aqueles pontos brilhantes que via, resquícios da luz que atra­vessara o espaço ao longo de milhares de anos-luz, contavam velhas histórias de epopeias, que nunca seriam conhecidas, de estrelas que estava a ver e já não existiam. Tive oportunidade de fazer viagens intermináveis de estrela em estrela, de galáxia em ga­láxia, de viver a imortalidade e tudo rejeitei por força do torrão natal que significara muito na altura e que agora nada me dizia. Não aceitei.
Onde estariam “eles”?, em vários sítios, como a probabilidade que acontecia com o eletrão?
Voltei a contemplar o firmamento, procurando um indício que não existia. A imagem era fria, de desalento. A esperança morria ali, no espaço inacessível. Restava-me o desencantamento, afinal a constante na passagem efémera pelos palcos da vida. Ou melhor: pelos bastidores. Nem mesmo os tempos gloriosos do idealismo não deixaram de ser vividos na clandestinidade. Nem mesmo as mulheres da minha vida deixaram um fim condigno para o ator principal. Vivi ao sabor dos instintos, da paixão e do ódio, com passagens virtuais pelo sacrifício e pela solidariedade, não deixando de ser desesperadamente egoísta, porque embora recordando, atormentado, os momentos mais negros, ao mesmo tempo adquirira as capacidades de sempre-em-pé, de quem sofre e logo esquece. A filantropia, essa praticara de forma teórica, a ponto da Manuela me perguntar um dia:
«Qual é o seu real e qual é o seu fictício?»
Um deus com pés de barro, segundo a Patrícia. Não deixara de interiorizar-me, entrando no labirinto movediço para onde a Mafalda espreitava, ao longe, e voltando sempre nas asas do sonho desfeito, para um novo adiar de decisões.
Caminhava, ao acaso, sugando avidamente o tutano da noite, tal como sempre gostei. Mais uma vez, nos bastidores, a reviver ligações frustradas, a rumar para outras pa­ragens que eram sempre as mesmas, embora vistas de um ângulo dife­rente. Metido dentro de mim próprio, tal feto indefeso no útero materno, só assim era o senhor da verdade e ganhava novas energias, fugindo da teia que eu próprio criara. Aliás, nem valia a pena cair na teia já que nem a aranha me desejava.
Cansado de errar pelas ruas sem destino, sentei-me num banco de jardim. Já passava uma ou outra pessoa. Ia amanhecer em breve. E cada pessoa que passava tinha a sua verdade, o seu mundo próprio, onde eu não cabia, assim como as pessoas não cabiam no meu mundo.

(Acordou com um ruído de movimento de estores. Viu as horas na escuridão, premindo o botão do relógio. Levantou-se, cauteloso. Deu passos na direção da porta. Abriu-a, devagar, e fechou-a logo. Ha­via luz no quarto de Mário. Raciocinou com rapidez. Era melhor vestir-se e aguardar. Assim fez. Enfiou as calças e a camisa. Procurou os sapatos. Como de costume, estava um em cada sítio. A desvantagem de ser desarrumado. Calçou-os. Ouvia os passos dele no quarto. Devia estar nervoso. Espreitou outra vez. Viu-o assomar à porta e também espreitar para um e outro lado do corredor. Estava vestido. Jogavam ao rato e ao gato e o rato não sabia que estava a ser espiado.
Era isso. Preparava a fuga com cuidado. Sentiu passos suaves no corre­dor. Mário escapava-se sem sequer desligar a luz. A chave da porta rodou. No instante i­mediato a porta fechou-se. Sabia o que fazer. Saiu do quarto tentando não tropeçar em qualquer objeto. Deu tempo a que ele se afastasse para uma distância segura. Momentos volvidos encontrava-se na escada. Desceu os degraus e aproximou-se da porta da rua. Viu-o parado, no meio da rua, aparentando indecisão. Olhava o céu, rodando a cabeça em círculo, simulando o movimento de uma câmara de filmar.
Que procurava nas estrelas?
Talvez estivesse à espera de um sinal. A sua atitude era estranha. Se queria fugir, devia afastar-se rapidamente daquelas paragens. Mas não, continuava parado no meio da rua e a olhar o céu estrelado.
Decidiu-se, finalmente, a caminhar em frente, embora com passos ainda hesitantes. A noite estava muito escura. Aproximou-se mais de Mário. Tinha que correr o risco, não fosse perdê-lo de vista.
Reparou que caminhava devagar, aparentemente sem rumo. Não compreendia a razão daquela fuga precipitada. Se queria justificar-se não devia fugir como um criminoso.
O tempo foi passando. Continuou a andar. Não se cansava. Estavam já longe de casa e a Mafalda ia sobressaltar-se quando acordasse e não o visse na cama. Talvez deduzisse o que acontecera, quando visse luz no quarto do Mário e chamasse por ele. Ficou mais descansado. Agora o que interessava era não perder de vista o amigo.
Finalmente sentou-se num banco. Ia amanhecer em breve. Espreitou na sombra. Mário permanecia imóvel. O tempo a correr e nada acontecia.
Mudou de posição, virando-se de lado. Pareceu-lhe que estava a conversar com alguém. Arriscou aproximar-se ainda mais um pouco para certificar-se de que os dois eram as únicas criaturas presentes naquele jardim. Na verdade não havia mais ninguém. Em todo o caso, não deixava de achar estranho, pois viu-o levantar-se de novo.
Ia continuar a andar sem destino?
A resposta à sua interrogação veio quase a seguir quando viu Mário dar alguns passos. Meia dúzia. Nem mais nem menos. Depois parou, erguendo de novo a cabeça para o céu.
«Quem procuras, Mário?» perguntou, em surdina.
Continuou a andar em frente. Devagar. Aparentemente sem rumo. Havia qualquer coisa no ar. Pedro teve um pressentimento e acertou em cheio. Foi um instante. Bruscamente, o amigo desapareceu. Como se a noite o tivesse engolido.
Coçou a cabeça, comprometido. Agora era a Mafalda que não ia acreditar na sua versão.
«Mataste-o, Pedro. Mataste-o friamente e foi por ciúmes! Só por ciúmes...»)

Fui encontrá-los na sala de convívio. A um canto, a Teresa e o Tomás conversavam. Por sua vez, a Mafalda­ estava afundada num sofá, voltada para a porta, talvez fixando um ponto imaginário da carpete.
Sorri ante aquele quadro familiar.
Levantou os olhos e não quis acreditar. Levou uma mão à boca tentando reprimir um grito que soltou, misto de espanto e de alegria. Não queria acreditar no que via. Não, não era real.
Num impulso corremos um ao encontro do outro.
«Há tanto tempo que esperava este momento!»
«Como foste parvo!»
Chorava e ria, ao mesmo tempo. Os outros rodearam-nos, estarrecidos.
«Onde te meteste? Pregaste-nos cá um susto!»
Cerrei os lábios para controlar a comoção do momento. A pergunta do Tomás era complicada de responder.
Onde estive?
Lembrei-me do Pedro. Vivo! Não iam acreditar.
«É bom regressar.» Foi o que pude dizer no momento.
Enquanto revia os amigos e todos falavam ao mesmo tempo, metralhando-me com perguntas, ia pensan­do. Tentava pôr de novo as ideias em ordem. Por exemplo, descobrir quanto tempo passara desde que tinha decidido abandonar o abrigo. Não ia revelar que a Mafalda vivia com o Pedro e dessa ligação nascera uma menina. Que este estava vivo e, ao mesmo tempo, tinha-se suicidado no abrigo. Que havia dois espaços-tempo e portais invisíveis pelas quais comuniquei com dois mundos onde o tempo corria com ritmos diferentes. Tanta coisa estranha para explicar!
Seria que a Teresa e o Tomás não tinham lugar no outro espaço-tempo?
Por momentos pensei que estava deitado na cama dos encostos, sonhando que vol­tava ao abrigo e que abraçava a Mafalda.
«Digam-me que não estou a sonhar! Belisquem-me...»
Os olhos da Mafalda, rasos de lágrimas, falavam de promessas que tinham ficado esquecidas há muito.
«Andámos à tua procura por toda a parte. Tivemos que o fazer a pé. Levaste o Toyota e o camião não quis pegar. Ao fim de duas horas regressámos ao abrigo. A Mafalda ficou inconsolável. Queria continuar. Levámo-la à força para o abrigo. Sabes? Tudo o que aconteceu no quarto da Mafalda foi um equívoco. Não passou de uma parvoíce minha. Ela pôs-me de imediato no lugar.»
«Mas então, quando entrei no quarto sorriste para mim em tom irónico. Foi isso que vi!»
«Não aconteceu nada, Mário!» disse a Mafalda, muito agarrada a mim.

Comecei a contar o melhor que pude o que me aconteceu.
«Quando abandonei o abrigo, esperava encontrar uma terra ressequida, sem vegetação e foi precisamente o contrário que aconteceu, cerca de meio quilómetro à frente. De repente, vi a paisagem modificar-se. Voltou o verde dos campos. Até havia pesseguei­ros e pereiras carregados de fruta quase madura e as outras árvores cobertas de folhas e em volta toda a vegetação estava verde.»
«Mas nós vimos os campos sem vegetação, a terra gretada pela seca que se fez sentir. A Terra estava morta, Mário!» confessou Teresa. «A paisagem era desoladora.»
«Podem crer que estou a falar verdade. Tudo mudou de um momento para o outro. Quando me cruzei com o primeiro automobilista e com os outros que se seguiram, não queria acreditar no que estava a acontecer. A entrada na cidade, o fulgor das luzes e o movimento usual de pessoas. Achei tudo uma coisa do outro mundo.»
E era.
«Por que motivo não voltaste logo para trás a avisar-nos?»
«E quem te disse, Tomás, que não voltei? A tentativa que fiz para encontrar o abrigo e o desapa­recimento de todos os indícios, foram motivos suficientes para regressar à cidade. Entrei numa cervejaria e comecei a beber. Sentia-me perdido. Talvez bebendo viesse alguma ideia boa. A seguir aconteceu a conversa com o empregado da cervejaria e a descoberta fantástica que tinha ocorrido um salto no tempo. Treze anos!»
«Como assim, amor?»
«Havia duas Terras em que a vida correra...»
«Sim?»
«A vida correra com destinos diferentes. Estava numa outra Terra que já não era a minha, compreendem? E continuei a beber, a caminho de uma bebedeira monumental, cada vez com mais falta de lucidez e de imaginação. Desorientado.»
«E a tempestade solar?»
«Nem sinal dela.»
«E como conseguiste voltar ao abrigo?»
«Não me perguntes, Mafalda. De repente dei comigo à porta do abrigo. Não me lembro de mais nada.»
«E o Toyota?»
«Não sei.»
«Será que vamos conseguir entrar nesse mundo?»
Encolhi os ombros.
«Quem o pode dizer? Acho que se abriu um portal
«Um portal, amor?»
«Sim. A ligar duas Terras com destinos diferentes e em que o tempo correu de forma diferente também.»
«Não sonhaste?» perguntou Tomás.
«Já esperava por essa pergunta.»
«Quer então dizer que o tempo corre com ritmo diferente no outro mundo que visitaste. Aí os campos eram verdes, a cidade tinha o ritmo de vida do costume e não houve cataclismo no Sol. É isso?»
«Exato.»
«No nosso mundo o aleatório deu-nos um futuro negro. Os campos estão estéreis. Não cresceu uma única erva. Durante duas horas em que te procurámos por todo o lado, nem uma formiga vimos. A extinção foi total. Quebrou-se a cadeia alimentar. Perdeu-se tudo.»
«Pode não ter sido igual em todo o globo. Além disso, deve haver alguns sobreviventes.» Tentei animá-los. «Lembrem-se daqueles indivíduos que não se afastavam muito dos seus abrigos por causa do medo que uma guerra atómica pudesse eclodir.»
«É verdade. Os sobrevivalistas fanáticos.» Referiu a Teresa.
«Tu próprio já nos contaste, Tomás! E temos as sementes! E também esperança. Sobretudo muita esperança. Alguns sobrevivalistas possuíam, no interior dos seus abrigos, além de víveres e munições, pequenas arcas de Noé. Nem tudo está perdido. Esperamos pelo fim da quarentena e vamos depois lançar-nos ao trabalho.»
«Para quê esperarmos mais?» perguntou Teresa.
«Se é o que estás a pensar» disse o Tomás «de facto ficámos todos mais ou menos contaminados porque já estivemos lá fora durante algum tempo.»
«Então vamos a ver o que podemos fazer destes terrenos inóspitos. É tempo de arregaçarmos as mangas.»
Continuava a ser o líder incontestado dos tempos gloriosos da revolução e agora dos tempos dos sem futuro à vista. Testemunhas mudas da agonia da Terra. Das árvores nuas, falos impotentes, que apontavam para o céu. Dos terrenos gretados, sedentos de água que fugiam até à linha do horizonte e prometiam repetir-se por muitos dias momentos sem solução de esperança. O que víamos falava por si. Nada mais de diferente para testemunharmos.
«Quando foi que deram pela minha falta?»
«Logo que saíste precipitadamente fui ao teu quarto. Estava vazio. Procurei na sala. Tinhas desaparecido como que por encanto. Rapidamente dei o alarme e fomos todos para o exterior. O resto já sabes.»
«Aconteceu há quanto tempo? Há dois dias, claro. É escusado perguntar.»
«Não.»
«Três...?»
«Quinze dias.»
«Ia jurar que saí há dois dias do abrigo. Mas se dizes que foi há quinze dias, então do outro lado correu o tempo correu mais lento. E agora estou a pensar...»
Ficaram à espera que continuasse.
«É uma suposição. A situação inverteu-se. Agora o tempo corre mais rápido aqui. Pode ser que um dia haja um reajustamento.»
«Como assim?»
«Tomás, há um fator qualquer de multiplicação, penso. No outro mundo o tempo estava decorrer mais depressa. Se agora o fator estiver a interferir de forma inversa, há uma esperança que os dois mundos voltem a encaixar um no outro.»
O Pedro era o elemento perturbador. Ou ficava num mundo, ou no noutro. Mas pensando melhor, não podia ter morrido. Assim, este mundo onde estávamos agora deixava automaticamente de ter bases para continuar a existir. E prosseguindo a extrapolação, era levado a concluir que nunca podia ter existido o cataclismo no Sol, nem tão pouco, a entrevista na televisão, nem a vivência no abrigo onde estávamos agora, como toda uma vivência que se passou no seu interior, aliás uma vivência muito trágica que todos sentimos na pele. Como consequência, o Pedro, a Mafalda, a Teresa e o Tomás esquecerão este pesadelo e a sua vida continuará a fluir normalmente porque nada de mau aconteceu. Quando, não sei. Só fica uma pessoa em situação indefinida. Eu. Já não bastavam as areias movediças onde me deslocava com perícia, mas sempre em segurança. Agora eram os portais que se abriam e fechavam, de forma aleatória.
Bastava de complicações. O melhor era ouvir o Tomás.
«A teoria prevê a existência de mundos paralelos, mas não estou muito dentro dessa teoria. Como podem surgir esses mundos, como se passa dum para o outro, como se fecham e nos deixam ficar retidos. Eu sei lá...»
«Que grande embrulhada, Tomás!» exclamou a Teresa.
«Tens razão. Saiu-nos a parte ruim do bolo. Quem ficou do lado de lá, bem pode dar graças a Deus.»
Continuei a especular.
«Só me lembro de se terem passado dois dias. E o resto do tempo?, onde estive? Talvez num terceiro mundo. Não me lembro.»
«Foi um sonho, Mário. Um sonho muito estranho» afirmou Tomás. «Ou então os teus amigos do espaço levaram-te e agora estás de volta.»
«Não posso acreditar. Estavam de partida para outra galáxia e mostravam uma certa pressa.»
Mirei a Mafalda de alto a baixo.
«Que estás a ver?» perguntou, corando.
«Eras mais forte. Quando te encontrei com o Pedro dei conta que tinhas engordado.» Pensei.
«Desculpa a pergunta, Mafalda que vou fazer-te...»
«Estás desculpado antecipadamente.»
«Se gerasse uma filha no teu ventre, que nome lhe davas?»
«Em que estás a pensar, maroto?»
Riram todos. Inclusivamente eu.
«Não é o que pensas, apenas curiosidade.»
A resposta foi imediata.
«Sendo assim, satisfaço a tua curiosidade, com uma ponta de tristeza. Anita. Sempre gostei deste nome.»
«Ah!»
«Que aconteceu? Ficaste perturbado.»
«Já alguma vez te tinha feito esta pergunta?»
«Nunca. Porquê?»
Recompus-me.
«Por nada. Não ligues.»
«Temos que pôr isso a limpo.»
«Precisamos de sangue novo.» Disse a Teresa com malícia.
«Estive em dois mundos alternantes. Num deles, os extraterrestres informaram-me do cataclismo solar. No outro, mais avançado no tempo, devido a qualquer fenómeno aleatório, nada aconteceu de grave. Mas há uma coisa mais. Devem existir ainda terceiros, mesmo quartos mundos onde provavelmente cabem os sonhos estranhos que temos e que afinal não são só sonhos.»
«Talvez tenhas razão, Mário. Mas vê se não passas para um desses mundos onde, de certeza, não existo.»
Sorri.
No outro, ela existia. Mas não era minha.
«Novidades de noventa e quatro, no outro lado?»
«Contarei mais logo, ao serão, Tomás. Mas mudemos de assunto e ataquemos o mais importante de momento. O que vamos fazer agora?»
«Boa pergunta, Mário. Acho ainda cedo para experimentarmos as sementes.»
«É verdade, estamos em outubro.»
«Novembro. Não te esqueças que se passaram mais quinze dias enquanto estiveste ausente. Talvez o mais aconselhável e premente seja tentarmos reparar o camião.»
«Não era só um problema na bateria?»
«Provavelmente. E depois, Mário?»
«Depois, como bandeirantes sem pátria e de todas as pátrias, então carregamos o camião e vamos por aí, com armas e bagagens, à aventura, não perdendo de vista a casa do abrigo. Nunca se sabe o que nos espera, meus amigos. Lembrem-se que eu saltei para o outro mundo e a realidade lá era bem diferente.»
«Temos que ter pensamento positivo.»
«Espero que não nos aconteça o mesmo que me aconteceu da primeira vez quando quis regressar para lhes contar as novidades. Mas vamos então lá para fora.»
Subimos as escadas que davam acesso ao exterior. O Sol começava a baixar no horizonte, avermelhando o céu azul, sem nuvens.
Respirei fundo. A Mafalda estendeu-me a mão que aceitei, apertando-a e sentindo a resposta pronta. Só então constatei que no céu não havia voos circulares de gaivotas. Apesar do mundo agreste que os meus olhos abrangiam na frente, ainda conservava uma vontade quase infinita de acreditar que a vida de todos nós podia ser melhor no futuro. Deste lado tinha a Mafalda, o meu amor. Alguém para me acarinhar e dar alento para prosseguir em frente. Seria bom acordar e ter o seu sorriso a meu lado. Pelo menos enquanto o relógio não marcasse o mesmo tempo do outro lado.
Talvez que estas duas vidas passadas em dois mundos alternantes, que se ligavam por um portal, situada algures, fossem um sonho e que, para lá do sonho, a minha verdadeira vida, também semeada de sonhos, estes perdidos na neblina da memória, estivesse ainda para contar. Provavelmente sem a ligação com a Mafalda, porque neste mundo, que era o nosso, o Sol estava a ficar cada vez mais vermelho e mais frio.
Tinha que encontrar um outro portal para me levar de regresso ao meu verdadeiro mundo, se é que ele existia!
«Mário!»
«Sim, Mafalda?»
«Nunca mais me deixes!»
«Que é isso? Uma mulher tão bonita a chorar! Não chores porque este momento é um marco importante na nossa vida.»

Quando a Terra ficou em perigo (6)


Viu-os saírem  da sala de convívio. Não lhe passou despercebido o segredo de Mafalda ao ouvido do Mário. Como era óbvio, não saíram ao mesmo tempo e a Teresa estava longe de imaginar o que se passava nos bastidores.
Levantou-se, lentamente, como um polvo deslizante, controlando as ondulações dos tentáculos. Era forçoso averiguar o que se passava. Aproximou-se do quarto. Apoiou o ouvido na porta. Tinha sorte. Ouvia distintamente as vozes que vinham do interior Sorriu, satisfeito. Afinal as coisas corriam mal entre eles. O safado do Mário, depois de gozar tudo o que tinha a gozar, preparava-se para uma retirada airosa e ela, a todo o custo, tentava evitar a fuga. Bem o conhecia. E finalmente ia acontecer o seu momento. Não restavam dúvidas. Como o polvo fazia, escondeu-se ainda mais na sombra, de tentáculos tensos. À espera do tal momento. Ela ainda tentava encontrar um último argumento para o travar. Parva. Tempo perdido, Mafalda. Bateste à porta errada. Esse Mário já não satisfaz os teus instintos incontrolados. Deixa-o. Vais ver que não te arrependes.
Agora calavam-se. Tentou imaginar o que estavam a fazer. Uma careta de contrariedade esboçou-se no rosto. A porta era opaca, não podia ver através dela. Irritava-o não poder adivinhar o que faziam. Era torturante. Nem lágrimas nem suspiros. Finalmente. Voltavam a falar e ela dizia: 
«Vem...» 
Que palavra feia a dela, pensou. Queria significar alguma coisa especial para Mário? Não. A resposta vinha a seguir: 
«Não vês, Mafalda, que é um engano?» 
Respirou, aliviado. Mas não podia cantar vitória, embora ela estivesse a resistir com voz pouco convicta. Mais algumas palavras dela e estava tudo perdido. Ao mesmo tempo animava-se. O safado estava farto de Mafalda. Ela oferecia-se. Nenhum homem podia resistir a uma pérola daquelas. Por isso aquele silêncio. Mas não. O caldo estava entornado. Ele despiu-a e agora mandava que se vestisse. Grossa coisa tinha acontecido!
Os olhos do polvo cintilaram na sombra e logo os tentáculos agitaram-se gulosamente.
Olhou para o fundo do corredor. Era melhor voltar à sala e esperar.

Frustrada, a Mafalda dirigiu-se para o seu quarto. Que falhou? A esperança, a última coisa a morrer, acabava mesmo de morrer. Mário guardava um segredo muito importante que era o muro que os separava. Depois, dissera coisas que não entendera.
A porta do quarto abriu-se, lentamente. Olhou, surpresa. Havia ainda um resto de esperança na esperança já morta, o que era um absurdo.
Não viu o Mário, mas sim o Tomás. Os pensamentos dos dois cruzaram-se, rápidos. Os sinais eram de mudança, de viragem. O tal momento há muito esperado pelo Tomás. Foi persistente e ia vencer. Estava perto de uma vitória. Talvez mais com um sabor a vingança. No fundo nunca tolerou o autoritarismo disfarçado de Mário. Os outros resolviam e depois vinha a última palavra. Não queria pensar que fosse uma intolerância. Mafalda inspirava-lhe desejos eróticos.
Observaram-se em silêncio. Feromonas de conveniência. Termo mais apropriado para um polvo que deixou de deslizar porque a presa, paradoxalmente, oferecia-se, inteirinha.

Tinha sido muito brusco com ela. Aos poucos, invadia-me um sentimento de culpa. Servi-me do seu amor e, de seguida, voltei as costas àquela ave queda, de asas feridas. Talvez que tivesse agido impulsivamente. Rebuscando nas cinzas encontraria um tição pronto a atear a chama. No fundo, bem no fundo, precisava do amor da Mafalda depois que regressava das incursões às terras pantanosas do meu descontentamento, invisíveis e profundas, sempre mais profundas. Ela dar-me-ia alento para não avançar mais. A tranquilidade voltaria. Ia tentar. Talvez não fosse tarde. Até porque os fantasmas estavam condenados a perder-se nas distâncias do passado.
Olhei-me ao espelho. Estava envelhecido. Os olhos já não tinham vida. Mas havia ainda uma voz interior que murmurava:
«Tens ainda meia vida para percorrer. Aproveita, Mário, vai ter com ela.»
Havia também outra voz que dizia:
«Vem até à minha escuridão, penetra em mim e fecunda-me de desespero. Não tenhas receio das areias. Podes andar nelas em segurança. Não deixo que te atoles. Vem até mim. Eu sou a tua última verdade.»
Fiz uma careta ao espelho. Não queria saber se os olhos estavam amarelos ou se as rugas me vincavam o rosto com persistência. Pensando melhor, a Mafalda e eu dávamo-nos bem.

A porta do quarto estava trancada. Bati. Enquanto esperava, ia pensando na atitude a tomar. Como iria ela reagir? Tinha razões de sobra para não me abrir a porta depois da brusquidão com que a tratara.
Bati segunda vez.
«Abre, Mafalda, sou eu.»
A porta entreabriu-se e o Tomás apareceu.
«Desejas alguma coisa?»
Com ar duvidoso, perguntei:
«Que estás a fazer aí?»
«Adivinha.»
Senti tudo turvo na frente. O rosto embruteceu. Empurrei a porta com violência e ele recuou, admirado. Entrei, como um furacão. Vi a Mafalda sentada na cama.

Apetecia-me cantar hinos à liberdade. Finalmente regressava à Natureza após dezoito longos meses de clausura. Agora, antes do prazo de segurança previsto, partia ao encontro da incerteza. Incerteza por incerteza, era bom ver de novo o astro-rei brilhar no céu azul, encoberto, aqui e ali, por uma nuvem passageira. Aquele sol assassino que agora me aquecia o corpo e vivificava a alma.
De repente o que vi deixou-me perplexo. Tinha-me afastado pouco mais de um quilómetro. Naquela região aparentemente não se verificaram as previsões dos extraterrestres. Via os campos verdes. Bem verdes. Bem vivos. Sem vestígios de doença. A vegetação ondulava por efeito de uma brisa que vinha das montanhas. O campo continuava invadido por árvores de porte altivo que tinham desafiado as radiações da morte, permanecendo de pé, teimosamente vivas.Inspirei o ar. Profundamente. Era puro e sabia-me bem. Achei estranho. Cá fora a vida parecia ter seguido o rumo normal. Mas não devia ter acontecido assim. Afinal esperava encontrar campos amarelos e sequiosos e não aquele verde saudável das árvores e dos arbustos. Qualquer coisa não batia certo.
Devia voltar para trás e avisar os amigos?
Estava decidido. Não queria arrastá-los para uma aventura com epílogo desconhecido. Apesar do que estavam a ver os meus, não tinha certezas. Talvez fosse uma alucinação.
Mas não foi sempre assim. Mal saí do abrigo pude ver toda a desolação em volta. Lógico. Era o que esperava ver. De repente, a paisagem modificou-se. Com se um portal permitisse a minha passagem para outro mundo.
Afinal ainda faltavam quatro meses de quarentena. Deviam seguir-se ainda as verificações de segurança. Portanto, não voltava para trás. Além do mais, as raízes precárias que me prendiam àquela casa estavam a soltar-se. No fim de uma longa espera a Mafalda traiu-me. Estava no seu direito. Afinal nunca me defini. Mas o que me abalou foi a forma imprevisível como ela reagiu. Cheirou-me a vingança e tal não admitia.
Sentia-me menos do que um grão de areia porque desconhecia o que se estava a passar na realidade naqueles campos verdes e para lá dos campos verdes. Ao mesmo tempo, em perfeito contraste, sentia o eco de mil vozes no céu que me saudavam pelo regresso. Sem querer, sorri. Compreendi. Estava a abraçar a mãe Natureza e a ouvir murmúrios de incerteza.
Para onde ir?
Na cidade esperava ver ruas desertas e silenciosas. Uma imagem nada agradável à vista e que abonava pouco o meu estado psíquico. Bom, logo se veria. Agora tinha que continuar em frente.
Senti os solavancos provocados pelos altos e baixos do terreno. Ao longe, avistava-se a estrada que atravessava a montanha. Para lá da montanha, a cidade e talvez a desolação. Corpos em decomposição nas posições mais grotescas, lembrando talvez a tragédia de Pompeia coberta pelas cinzas implacáveis vomitadas pelo Vesúvio.
Alcancei pouco depois a estrada. Sentia-me ainda mais só que um passageiro do espaço atravessando o éter e tendo por companhia os pontos luminosos que brilhavam a anos-luz de distância.
Tentei afastar ideias negras. O enigma do verde dos campos alimentava a ténue esperança de encontrar mais sobreviventes do que imaginava. As árvores deviam estar secas. Além de tudo era fim de outubro, mês em que as árvores começavam a esquecer-se de viver e em que grande parte das folhas já tinham caído. Um mistério, todo aquele verde. Talvez as radiações tivessem provocado uma mutação e as folhas das árvores rebentassem e as plantas florissem. Tudo realizado num ciclo muito rápido.
Lembrava-me de ter lido um livro de ficção científica cujo tema central eram plantas que adquiriram inteligência bruscamente. À custa de dons hipnóticos foram controlando todos os pontos vitais e apoderaram-se da Terra, subjugando os homens à sua vontade. Não havia saída. Mas nas histórias de ficção científica há sempre um herói. E o nosso herói tenta lutar com elas numa luta contra o tempo já que, entretanto, tinham-se tornado "maldosas", vingando-se assim das atrocidades cometidas no passado pelos humanos. As suas armas eram verticilos venenosos que se distendiam, quase sempre acertando no alvo. Com o tempo aperfeiçoaram-se e foram alcançando distâncias cada vez mais longas e as vítimas ficavam paralisadas e sob um estado de hipnose. Depois, as vítimas do ataque das plantas tornaram-se autómatos e, dominadas pelas ditas plantas pensantes, lançaram o pânico nas populações indefesas. Travaram-se autênticas guerras civis e não parecia haver solução. Mas voltando ao nosso herói, num golpe de teatro conseguiu descobrir algo que tornava as plantas inertes. Os humanos respiraram fundo e as plantas deixaram de pensar, perdendo, de repente, a capacidade de lançarem verticilos de poderes hipnóticos. A descoberta do herói foi puro acaso. Como costumam ser quase todas as descobertas. Depois, o desfecho: o herói encontrou a sua heroína e foram muito felizes.
Quantos sobreviventes tinham resistido ao ataque mortífero do Sol?
Lembrava-me dos sobrevivalistas americanos que costumavam andar com rádios para onde quer que se deslocassem. Talvez que alguns tivessem a sorte por seu lado, precisamente os que rondavam os abrigos e que tomaram conhecimento a tempo do cataclismo solar.
A estrada fazia uma curva apertada. Tive uma impressão estranha. Era miragem, pensei. Um carro rodando em sentido contrário.
Seria mesmo miragem?
Via. Sem sombra de dúvidas. Não podia ser miragem. O carro aproximava-se. Ia parar. Não podia ser de outra maneira. Agitei freneticamente um braço. O condutor cruzou-se com comigo sem que esboçasse qualquer reação. Apenas olhou, intrigado. Parei o carro e dei um salto para a estrada. Esfreguei os cabelos com ambas as mãos. Um frémito esquisito percorreu-me todo o corpo. Era bem verdade. Tinha visto um sobrevivente. Este limitara-se a olhar e a continuar em frente. Um homem solitário numa irreversível e completa alienação da realidade. De certeza viera da cidade e estava ainda em estado de choque.
O carro perdeu-se na curva. Encolhi os ombros e entrei de novo no Toyota. Baixei a embraiagem até ao fundo. Ao mesmo tempo, meti a mudança e acelerei forte. Depois, levantei a em­braiagem. O carro deu um esticão e arrancou.
Pensava no condutor e achava estranho não ter parado. Como se não fosse nada com ele, tinha continuado em frente sem sequer abrandar. O homem não quis ou não pôde aproveitar a oportunidade única ou quase única de se juntar a um sobrevivente. Talvez que receasse ser atacado. Lembrei-me da conversa que tive com o Tomás acerca do caos que poderia instalar-se após um cataclismo daquela envergadura. Receava ser ataca­do provavelmente porque tinha o carro atafulhado de víveres que encontrou na cidade. Naturalmente não era a primeira vez que o fazia e devia ter tido, em qualquer ocasião, maus encontros. Talvez até que houvesse na cidade guerrilha pela posse dos víveres, certamente mais preciosos que o ouro. Quanto aos alimentos, muito provavelmente estavam contaminados. E, por outro lado, fiz bem em não seguir o homem. Sabia que os sobrevivalistas, tanto os americanos como alguns europeus, estavam armados até aos dentes e, por certo, aquele ia receber-me a tiro. Não queria transformar-me de repente num passador. Era melhor não arriscar.
Voltei a pensar no enigma dos campos verdes. A mão impiedosa da destruição ficou suspensa devido a alguma razão que não descortinava. Avistava agora uma sequência de árvores de pequeno porte, perfeitamente alinhadas. Abrandei o movimento do carro. Pare­cia ver frutos. Delirava. Logo frutos.
Frutos em outubro?!...
Intrigado, travei. Saí do carro e atravessei a berma da estrada em direção às árvores. Eram pessegueiros e estavam carregados de pêssegos de tamanho médio, quase maduros. Tinham bom aspeto. Pêssegos que cresciam fora da época própria e alguns já tinham adquirido a cor rósea característica.
Pêssegos de largar caroço.
As árvo­res não aparentavam ter qualquer doença. Avancei mais por entre as filas de árvores. Mais ao fundo havia outras árvores alinhadas.
«Parecem peras. Deixa-me ver melhor...»
Peras. Enormes. Mais um mês e estavam maduras.
Que milagre era aquele?
Pensativo, voltei à estrada. Não dava para entender.
Arregalei os olhos. No momento passava um camião. Não tive tempo de fazer ges­tos. Entrei de novo no carro. Duas coisas boas num repente: as plantas não tinham sido afetadas pelas radiações e havia mais sobrevi­ventes do que pensava. A vida futura não ia ser tão difícil. Afinal, os extraterrestres tinham-se enganado redondamente ao pintarem o quadro com tons negros. Nos cantos havia núcleos de pinceladas claras ainda em embrião e a descoberta entusiasmou-me. Senti vontade de voltar atrás e contar aos amigos o que vira. A traição da Mafalda era secundária. Voltava atrás e falava dos campos verdes, do milagre das árvores de frutos quase maduros e do carro e do camião que vi. Havia uma verdade inegável. A vida vegetal não fora afetada. Mas já agora ia até mais à frente. A cidade estava próxima. Acabava de avistar a placa dos cinco quilómetros. Antes de entrar na cidade vi mais alguns carros. Contei-os. Sete, ao todo.
Então, o que se passava?
Quando entrei na cidade, o que o trânsito era normal. Anoitecia. Deslizava lentamente, não deixando de olhar para todos os lados, espantado. Queria entender. A cidade estava profusamente iluminada. Os anúncios luminosos tremelicavam, acendendo-se e apagando-se. Havia gente por toda a parte. parecia que o cataclismo solar não tinha passado pela cidade.
Estava em êxtase. Via as pessoas, como formigas, seguirem pelos passeios ou atravessarem as ruas. A cidade funcionava em pleno num fim de tarde. Os sinais de trânsito mudavam do vermelho para o verde e depois passavam para o amarelo. Depois, outra vez vermelho. Tudo normal. Era um milagre. Um verdadeiro milagre. Para uma pessoa agnóstica como eu, dava para pensar. Devia estar afetado psicologicamente pelas radiações, pois o que via e o que sentia só podia ser o resultado de uma alucinação. A verdade era outra, muito diferente daquela que os seus olhos viam. Os cadáveres amontoavam-se pelas ruas e não havia luzes. A cidade estava morta. Tinha que estar morta. Devia ser isso. Apalpei a testa. A temperatura parecia normal. Continuava a ver as pessoas a deslocarem-se nos passeios, a atravessarem as passadeiras, a entrarem nas lojas. Os carros e o caos das horas de ponta. Os anúncios luminosos. Queria beliscar-me para sentir a dor. E não hesitei. Os lábios cerraram-se até sangrarem e sentir na boca o desagradável sabor do sangue. Dezoito meses enclausurados num abrigo por causa de um terrível engano. Não dava para acreditar.
E aquelas notícias da doença misteriosa cujos sintomas apontavam para leucemia aguda, bem como o blackout que se seguiu, foi tudo um engano?
Os amigos estavam em primeiro lugar. Ia regressar ao abrigo e avisá-los. 
Dirigi o carro para a saída da ci­dade. Apetecia-me pular e dançar, tal a alegria que se apossara de mim. Liguei os máximos. Um facho luminoso espalhou-se de imediato ao longo da estrada e regressei ao abrigo.

Os copos vazios iam-se alinhando no balcão da cervejaria, numa série que pa­recia não terminar. Aparentemente o álcool não fazia o mínimo efeito. Constatei o facto porque lia com facilidade os rótulos das garrafas arrumadas nas prateleiras em frente. Um truque que vinha dos tempos da minha juventude. Era uma forma de saber o estado de lucidez em que me encontrava.
Pedi mais um fino. O empregado trouxe-o de imediato, solícito. A freguesia não apertava na altura.
«O senhor tira bem as cervejas.» Gabei-o.
O empregado sorriu. Os clientes embriagados diziam sempre o mesmo. Era uma justificação para beberem mais um copo.
Contei os copos vazios. Dez. Nada mau, mas ainda estava longe do meu máximo.

Como aconteceu aquilo?
Quando cheguei à região dos pessegueiros era tarde e resolvi parar. Continuava no dia seguinte a viagem de regresso ao abrigo. Tranquei as portas do carro e esperei pelo amanhecer. Inclinei o encosto do assento para trás e recostei-me. Pouco depois adormecia. O cansaço venceu a tensão.
Acordei com a claridade. Espre­guicei-me, levantei o encosto do banco e saí do carro. Precisava de desentorpecer as pernas. Era um verdadeiro milagre ver os pêssegos, já rosados, que dentro em breve estavam bons para serem comidos. Achava a coisa mais fenomenal do mundo.
O motor roncou e o carro pôs-se de novo em marcha. Ainda tinha cerca de uma hora de viagem. Fui dando atenção aos campos, pronto ao ínfimo pormenor, verificando constantemente se estava no bom caminho.
A partir de certa altura fiquei confuso. É que já não apareciam os indícios que tomara nota e estava na altura de entrar pelos campos adentro. Percorrera a quilometragem certa. Tinha a certeza.
Não he­sitei. Liguei as redutoras para todo o terreno e abandonei a estrada. Parecia nunca ter passado por aqueles caminhos.

A cerveja que ia engolindo, lentamente, era mesmo saborosa. O melhor seria pedir outro fino. Mais um menos um já não era problema.
A casa não estava em sítio algum. Vasculhei o terreno, palmo a palmo. Um dia inteiro à procura de uma casa que se tornara invisível. As poucas casas que vi não condiziam com o local onde presumia estar a outra. Sentia-me perdido agora que as referências de que dispunha inicialmente se tinham desvanecido. Era tudo muito estranho.
Como aconteceu uma coisa dessas?
Da primeira vez orientámo-nos sem qualquer problema e demos logo com a casa que tinha o abrigo. Não houve a mínima hesitação. Agora tudo me parecia desconhecido. Não era lógico. Nada era lógico. Nem aquele momento terrível em que a vi, sentada na cama, exibindo um sorriso de vingança. Queria compreender. Desmontar o sorriso da Mafalda. Mas era tarde. Já não interessava. A última onda da maré cheia desfizera-se na praia da solidão. Sendo assim, deixei-os. Deixei-os porque queria fugir da realidade que me queimava as entranhas. Não senti ódio nem ciúmes. Apenas a sensação de ter perdido algo que afinal tinha muito valor para mim.
Lá fora esperava-me outra realidade. Os campos verdes. A vida na cidade que tinha continuado. Era fantástico! Uma boa notícia para dar aos amigos. Mas o abrigo fora tragado, absurdamente tragado.

O empregado continuava a sorrir.
«O senhor bebe com prazer. E parece que não lhe faz efeito. Espere pela pancada.»
«É verdade. Nem sabe o gozo que isto me está a dar. Não bebia uma imperial há mais de um ano.»
«Recomendação do médico?»
«Nada disso, meu amigo. Acontece... acontece que não voltei a ter oportunidade. Pronto, é só isso.»
O empregado franziu o sobrolho.
«A cerveja está finalmente a fazer efeito. Quer dizer que não se lembra da última vez que bebeu umas boas litradas. Porque o senhor não as poupa. Arruma forte e feio.»
Demorei a responder.
«Seja.» Menti.
Encheu mais um copo de cerveja e colocou-o sobre o balcão.
«Esse está quase vazio.»
«Acho bem. Não posso perder tempo.» Disse.
«Dizia que não teve oportunidade. Como assim?»
Falava verdade. Não voltei a beber finos. Cerveja, só de garrafa. E racionada. Também vinho, numa ou noutra ocasião. Agora aquelas imperiais tinham outro sabor. Eram demasiado gostosas e escorriam pela garganta com muita facilidade. A última vez tinha acontecido na esplanada naquela célebre noite do encontro.
«Sabe? A verdade é que estive ausente.»
«Ausente? Em todo o lado há cerveja, amigo.»
Tentei encontrar uma justificação. Quanto mais queria explicar-me, mais me enterrava. O melhor era mudar de assunto.
«Bom, podia dizer-lhe que estive na China, mas na China também se deve beber cerveja a copo. Acontece que tenho só bebido cerveja de garrafa ou vinho. A última vez que bebi cerveja a copo foi há quase dois anos. E também me soube muito bem.»
«Acredito. Tardou a orgia mas foi compensado.»
«Tal e qual como diz.»
Achei que tinha chegado o momento.
«Não aconteceu nada de especial nestes dois últimos anos?»
«O que quer dizer com esse "nada de especial"?»
«Não sei, qualquer coisa. Por exemplo, uma catástrofe.»
«Longe vá o agoiro, meu amigo!»
E bateu três vezes com o punho no balcão.
«Deixe ver... correu tudo bem?»
«O negócio foi bom. O verão esteve quente, uma canícula de fazer sede até dizer chega. Vendeu-se muita cerveja. Conforme sabe, só começou a chover em novembro. O outubro foi anormalmente quen­te.»
«Não contando com o negócio, não houve mais nada fora do comum?»
Esperava uma resposta concreta que tardava.
«Não entendo o que quer dizer.»
O homem afastou-se para atender um cliente. Fiquei irritado. Mesmo muito irritado. Devia ser parvo. Ou então estava amnésico. Fui direito ao assunto. Estava ansioso demais para esperar.
«Não houve um problema no Sol?»
«Deixe cá ver...» Demorou a responder. «Que me lembre, não.»
E afastou-se para atender outro cliente.
«Estes fulanos bebem demasiado e depois acontece o que se vê. Espero que tenha bom beber e não arme aqui um pé de vento.» Ouvi-o dizer.
Pouco depois estava de volta.
«Problema? O Sol está bom, muito obrigado. Recomenda-se, mas não se pode abusar por causa dos melanomas.»
«Ah sim.»
«Pois.»
«É muito estranho. Em agosto formou-se uma mancha solar gigantesca.»
«Que significado tem isso?»
«Uma mancha na superfície solar é um sinal de uma grande explosão. Dê-me outra imperial. De certeza que não quer beber nada? Mas continuando, a amplitude desta última explosão foi de se lhe tirar o chapéu. De tal forma que chegou a crer-se que a vida estava ameaçada.»
«Obrigado. Não posso beber em serviço. Essa das explosões no Sol está-me a fazer uma grande confusão. Há uns anos apanhámos um susto. Andaram por aí notícias sobre qualquer coisa parecida com o que está a dizer, mas não chegou a acontecer nada. Avisaram na televisão que as pessoas não deviam tomar banhos de sol, pois corriam o risco de contrair cancros da pele. Mas em relação aos últimos dois anos não me lembro de nada. E olhe que estou sempre atento a essas coisas. Tenho muito amor à vida, sabe?»
Estranho. Muito estranho. Qualquer coisa não estava a bater certo. O Tomás tinha detetado a mancha a formar-se. Era enorme. Assustadora. E ele inclusivamente também a vira. E depois havia a informação alarmante dos extraterrestres.
«Tem a certeza?»
«Você a dar-lhe e a burra a fugir. Claro que tenho a certeza. O caso do problema no sol, que afinal não foi problema, passou-se em mil novecentos e oitenta.»
«Mais razão me dá. Foi o ano passado.»
«O ano passado? O senhor bebeu mais do que a conta! Está mas é a delirar! Desculpe que lhe diga. E não se ofenda.»
«Afinal de contas, que conversa é esta? De facto bebi umas imperiais mas sinto-me lúcido. O ano passado foi mil novecentos e oitenta. Certo?»
O empregado sorriu.
«Está a gozar comigo. Só pode ser isso.»
«Como assim?»
«Conforme sabe, ou devia saber, estamos em mil novecentos e noventa e quatro...»
«Noventa e quatro?!...»
«Sim, noventa e quatro.»
«Enquanto conseguir ler os rótulos das garrafas que tenho na minha frente, nessa estante aí, a coisa vai bem. Ora acontece que estou a ler bem os ditos rótulos.»
Passava-se qualquer coisa de estranho. Noventa e quatro. Não era possível! O homem gozava comigo. Que se acautelasse!
Com voz irritada pedi outra cerveja. Não conseguia raciocinar direito. Quase de seguida, o empregado bateu com o fundo do copo no balcão e a espuma da cerveja saltou. Levei o copo aos lábios e bebi o líquido amarelo de um só trago. Não consegui evitar um arroto. ­
«Está a brincar, não está?»
Como resposta, o outro virou-se para a parede e apontou para um calendário. Segui o gesto e fiquei definitivamente apreensivo. O calendário marcava o ano de noventa e quatro.
«Já agora, em que ano julga que está?»
«Parece que tem razão.»
«Parece...?»
«Se o calendário for deste ano, não pode haver dúvidas. Bom, não sei o que se passa comigo.»
«Não sabe, mas eu sei. Adiante.»
«O calendário que está na parede não é uma brincadeira de mau gosto? Não. Já vi pelo seu semblante carregado. Então devo estar doido. Hoje é vinte e cinco de outubro. Certo?»
«Errado outra vez. Estamos a dezanove de julho.»
«Dezanove de julho? Se o diz... Seja, dezanove de julho. Tenho que admitir, embora sob reserva.»
«Em oitenta e um o presidente Reagan deu luz verde para ser fabricada a bomba de neutrões. Não deve calcular o barulho que se fez, pois já afirmou há pouco que esteve ausente.»
Talvez um pensamento do empregado de balcão...
Provavelmente estava a lidar com um maníaco-depressivo, se é que não era esquizofrénico. Todo o cuidado era pouco. Ainda por cima talvez encharcado em remédios e agora em álcool no estômago. Todo o cuidado era pouco para lidar com semelhante criatura.
«Não tenha receio, homem de Deus. Tanto quanto possível estou bem. As malditas datas é que me baralharam. Ponha-se na minha situação e logo vê.»
«Compreendo. E qual é a sua situação?»
«Adiante. Mas continuando, nesse ano houve várias manifestações e comícios a nível internacional. E os atentados contra os americanos não faltaram. Mas diz-se que os cães ladram e, mesmo que mordam, a caravana passa. Bem sabe o que aconteceu depois...»
«E o que aconteceu?»
«Os russos também já tinham a bomba.»
Estava perplexo. Então o tempo no abrigo tinha passado mais lento do que cá fora. Só podia ter sido. Lembrava-me da célebre noite na esplanada logo a seguir a uma grande bebedeira. Do rapto voluntário. Dos momentos que passou na nave. Das previsões dos alienígenas. Da dupla virtual de Patrícia. Do convite dos alienígenas para deixar a Terra. Do regresso. Da Mafalda e dos amigos. Da entrevista na televisão. Do dia a dia no abrigo. Da minha saída extemporânea. Da surpresa que tive por a vida ter continuado com normalidade. Dos frutos quase maduros em pleno outubro (julho, segundo o empregado da cervejaria). Nada batia certo. Aquela diferença de tempo era um absurdo. Como se, de repente, tivesse saltado para um mundo paralelo. Mas acontecia que os mundos paralelos pertenciam à ficção científica. Por outro lado, o que aconteceu com o abrigo, aconteceu mesmo. A casa que o camuflava tinha-se esfumado e certamente não por obra e graça do Espírito Santo, pois percorri, palmo a palmo, o terreno e não encontrei o menor vestígio. A casa não estava em lado algum.
Quando saí do abrigo mergulhei quase de imediato noutro espaço e noutro tempo, mas a casa continuou no sítio. O Pedro suicidou-se e houve necessidade de deitar o corpo ao lago. Nessa altura encon­trávamo-nos ainda no espaço-tempo primitivo, com os campos desoladoramente secos e sem vestígios de vegetação viva. O lago estava visível. Tudo era possível. Uma permuta de terrenos entre os dois mundos, ou uma zona de interseção entre os dois mundos. Por outras palavras, tinha surgido um portal.
A suposta Patrícia tinha falado de portais para explicar as interferências cujas origens os extraterrestres estavam em vias de descobrir. Uma coisa era certa. Bruscamente aparecia no futuro, vindo do passado. O presente representava talvez a zona comum aos dois mundos. Talvez fosse uma linha de direção indefinida. Uma fronteira.
As ideias turvavam-se. Tinha bebido demais e precisava de ar puro. Ar puro. Uma grande ilusão. Apesar de tudo sabia bem respirar o ar tóxico da cidade. Pelo menos movimentar-me entre a multidão ajudava a passar o entorpecimento. Ali não me sentia perdido. Afinal estava de novo na minha cidade e também na de Mafalda.
Curioso, pensava nela. Agora que nunca mais a ia encontrar. Ela e os amigos tinham ficado perdidos na neblina do­ outro mundo paralelo. Provavelmente nunca mais os encontraria. Não era de um momento para o outro que se saltava entre mundos. O que aconteceu não ia repetir-se, pensei.
Continuei a caminhar ao acaso pelas ruas. Algumas pessoas sorriam para mim porque cambaleava. O álcool começava a cumprir a sua missão. Treze anos de lacunas era muito tempo. Precisava de encontrar outra explicação.
Vi a nave partir, mas podia ter sido uma falsa partida!
Os alienígenas poderiam ter forjado para mim uma outra vivência, enquanto estudavam, com mais pormenor, o meu cérebro que tanto os entusiasmara. Logo que tiveram tudo quanto queriam e, mesmo com a presença de uma Patrícia virtual que afastei, atiraram-me para o futuro, sem mais nem menos.
Parei junto a um bar. De facto era de mais um anestésico que precisava.
Lá dentro o ambiente estava cerrado, resultante da concentração de uma nuvem densa do fumo do tabaco e dos vapores etílicos. Dei alguns passos até ao fundo do balcão. Aquele antro era o local ideal para os elementais, criaturas repugnantes, habitantes fisicamente invisíveis do plano imediatamente acima do dos mortais. Diziam os entendidos que estes seres separados pela morte dos seus corpos físicos, dependentes do álcool em vida, e não podendo satisfazer a sede intolerável que os devorava, ou os viciados no jogo e no tabaco, pairavam sempre sobre os lugares onde se vendiam bebidas, se jogava e fumava mais. Assim, envolviam com os seus olhares sequiosos as pessoas que se dedicavam a satisfazer estes desejos grosseiros e faziam o possível para penetrar nos corpos das mesmas, a fim de partilharem do prazer baixo que constituía a sua paixão. Se as pessoas os pudessem ver teriam certamente reações de espanto e medo.
«Aqui estou eu. Gozem, mas não abusem, seus elementais filhos duma cadela!»
«Pediu alguma coisa?» perguntou a empregada.
Fiquei a olhar para ela.
Repetiu a pergunta.
«Pediu alguma coisa?»
Voltei a mim.
«Claro que pedi. Dê-me um apocalipse.»
Ri-me ante a cara espantada da empregada. Gostava de pedir um apocali­pse quando estava virado para a metafísica dos efeitos do álcool. E aquele era justamente o momento certo.
«Não sabe o que é um apocalipse?»
A mulher acenou que não com a cabeça.
«Tem razão em não saber. De qualquer maneira não existe o que quero. E olhe uma coisa: o que existia, já não existe e o que existe, não é. Se existisse, instantaneamente não era.»
«Então, afinal quer ou não quer?»
«O quê?»
«Beber.»
«Tem...?»
«Claro que sim.»
Virou-se de costas para o balcão e trouxe um cálice e uma garrafa de rótulo preto. Encheu o copo com um toque de profissional.
Bebi dum só trago. Senti de imediato um calor interior pouco agradável. Era absinto. Para homens de barba rija. Curioso. Como é que todos os empregados de balcão, homens ou mulheres, me serviam absinto quando pedia um apocalipse?
«O rótulo devia exibir uma caveira.» Disse, sarcástico.
«E o senhor devia ir para casa.»
Deixei uma moeda no balcão.
«Desilusão para os elementais se pensavam que ficava aqui o dia inteiro. Ala, que se faz tarde!»
«Como?»
«Guarde o troco.»
«Ah sim. Obrigada.»
Cá fora tive uma boa novidade. Já não dava por cambalear. Flutuava, leve como uma pena.
«Põe-te direito, Má­rio. Bem sabes que não gostas de dar muito nas vistas. Esquerdo, direi­to. O pelotão vai com o passo trocado. Que é isso? Deves pôr-te apru­mado. Assim. Já vais melhor. A cara que a parva da rapariga fez! E nem sequer sonha que estiveste dezoito meses no abrigo por causa de outro apocalipse. Foram dezoito meses ou treze anos? É lógico não saberes de que forma o tempo passou porque não és o senhor do tempo. Andaste um dia inteiro à procura do abrigo, mas alguém brincou mesmo contigo às escondidas. O abrigo não estava lá. Lá. Onde é lá? E que é feito dos teus amigos que estão lá? Da última vez que os viste, uns estavam na sala e a Mafalda no quar­to a "babar-se" com o cretino do Tomás. Deixaste fugir a oportuni­dade e ele saltou para cima dela. Perdeste a maré alta e logo outra atirou-te sabe-se lá para onde. E está encontrada a razão do teu estado de embriaguez. Será que morreste e és um daqueles seres horrendos que, lá de cima, se lançam como feras sobre os consumidores de álcool que procuram os bares?»

Aquele chafariz era uma boa solução. Sem dar por isso, ao deambular fora ter à parte velha da cidade. Por coincidência ou não, perto do chafariz morava a Mafalda, que, por sinal, não era a mulher dos meus sonhos, mas fora companheira de outros sonhos desvairados de revolução e com sangue inocente vertido. Certo. O subconsciente atuava sempre a favor dos desejos reprimidos. No íntimo, mes­mo no íntimo, não a esqueci.
Abri a torneira e pus a cabeça debaixo. Assim era bom. Sen­tir a água a cair. Um renovar. Um reviver. Relaxava o espírito. A lucidez espreitava, timidamente. Sentia-me melhor. O espírito abria-se.
Entra lá, lucidez!
Enquanto a água continuava a cair tirei uma conclusão imediata que me baralhou ainda mais. A casa da Mafalda existia nas duas vivências.
E se batesse à porta para ver o que acontecia?
Tinha-a deixado com o Tomás no abrigo escolhido para sobrevivermos às radiações letais que, afinal, parecia não terem existido. Sendo assim, arrastara inutilmente todos para uma aventura sem razão de ser.
E o Pedro?
Não sabia do seu medo de viver entre paredes. Foi esse medo que o levou até à loucura.
Ia tocar à campainha, mas antes tinha que tirar a limpo aquela história das datas. O calendário podia ser falso. Ou então nunca existiu aquele momento na cervejaria.
Havia uma tabacaria ao lado da casa. Entrei e vi as datas de dois ou três jornais. Todos traziam a mesma verdade. Dezanove de julho de mil novecentos e noventa e quatro.
Antes de entrar fiquei a olhar para o prédio e então lembrei-me...
Tiravam-se os encostos e esten­diam-se sobre o sofá, contíguos. Assim ficava uma cama improvisada, que foi a casa da grupo. A localização, num bairro da classe média-baixa, era excelente para os nossos objetivos. Não lembrava ao diabo, muito menos à "Secreta", que ali funcionava uma célula revolucionária.
Subi os primeiros degraus da escada e fui-me preparando para tudo. Respirei fundo junto à porta. Os vapores do álcool tinham passado depois de ter posto a cabeça debaixo de água, mas agora estava nervoso. O coração batia, muito acelerado. A imprevisibilidade do que estava para acontecer assustava-me.
Três toques?
Isso era dantes. Talvez só um. Mais prolongado.
Aguardei, impaciente. Parecia que ali não estava ninguém.

Quando a Terra ficou em perigo (5)


Encontrei a Mafalda sentada no sofá. Estávamos sós na sala.

«Julguei que era o primeiro a chegar...»
«Olá, Mário. Pela manhã nunca tenho sono. Em vez de ficar deitada na cama a encher-me de tédio, acho preferível vir para aqui.»
«Queres ouvir música?»
«Não, obrigada. Estou saturada de discos.»
«É curioso também. Ainda há poucos dias gostava de estar aqui, horas a fio ouvindo as canções que tanto fizeram furor nos tempos de menino e moço. Ao mesmo tempo, lembrava-me de coisas passadas há muito e que julgava já apagadas.»
«E então?»
«Cansei-me, Mafalda. Agora prefiro ficar no meu galho, em silêncio, deixando o tempo correr.»
«É inevitável  virem as recordações. Tu já me contaste um dia que temos no nosso cérebro uma espécie de gravador que regista tudo o que vai acontecendo ao longo da vida.»
«Sim, contei. Mas pensava que tinha formatado o disco da vida passada nesta encarnação. As outras, sim, não deixaram rasto. Sei que já vivi muitas vezes antes desta vida,» 
«Mas mas não te lembras da última vez que cá estiveste.» 
«Certo.E por falar desta vida de que me lembro, julgo que já perdi todos os hábitos, todas as rotinas, boas ou más. O próprio tempo já alterou a sua cadência. Agora os dias são mais longos.» 
Onde já ouvira tal?
«Mas cinzentos. Tens razão. Perdemos os hábitos normais. Agora que temos todo o tempo do mundo por nossa conta não conseguimos aproveitá-lo com eficácia. Para mim, tudo morre ao cair da noite e não volta igual no dia seguinte.»
«Mas sempre foi assim!»
«Não percebo.»
«Nós nunca somos iguais.»
«Ah sim. Dando a volta ao texto, agora temos de fazer de conta que não há nada de anormal lá fora. De mostrar boa cara, conversar mesmo sem ter vontade de o fazer. De fugir ao isolamento. Olha o caso do Pedro. Estou preocupada com ele. Não anda bem. Temo que faça um disparate.»
«Será que não está a tomar o antidepressivo?» 
Todos tomávamos antidepressivos, razão fundamental para nos mantermos mentalmente o mais possível saudáveis dentro daquilo que se considerava ser possível.
«Olha, para compensar os papões que tentam corromper o consciente, esta noite tive um sonho bom.»
«Sim?»
Nesse mesmo instante chegou o Tomás.
«Então, bons dias. Ou boas noites. Tanto faz, não é?»
Fiz um gesto vago a cumprimentá-lo. A Mafalda foi mais exuberante.
«Bom dia, Tomás.»
Como era hábito trazia consigo um livro que logo abriu mal se sentou no fundo da sala, onde havia uma mesa para os mais recatados. A Mafalda começou a contar o sonho.
«Estávamos numa esplanada, muito sorridentes. Na nossa frente tínhamos a areia de uma praia e o mar que quase chegava até nós. Não se ouvia o ruído das ondas. As pessoas que passavam, olhavam para nós e também sorriam. Não voltávamos a vê-las. Só ficavam as marcas das pegadas na areia. Sentia no ar um ambiente de felicidade. Este pesadelo que nos atormenta tinha ficado para trás ou então não existia. Acho que não existia. Os dois, naquela mesa, vivíamos num mundo diferente. Só que não falávamos. O sorriso era tudo. Mais nada existia.»
Fingi ignorar a parte em que “estávamos numa esplanada, muito sorridentes”. Lembrava-me o tempo do olhar distante da Patrícia. Preferi desmontar o sonho.
«É natural ter acontecido esse sentimento virtual de felicidade. Diria melhor, de bem-estar. O sonho que tiveste corresponde a um desejo subterrâneo, escondido nos escaninhos inacessíveis do teu subconsciente. Ele tem mais poder do que imaginas e, neste caso, serviu para temperar o teu estado de alma. De certeza que acordaste mais positiva depois de uma situação que não estava de acordo com a realidade. O sonho aliviou o teu estado de alma. Pelo menos ao acordares. Não foi?»
«Tens razão.»
«Nós só sorríamos?»
Baixou o olhar.
«Não me lembro de mais nada. Só dos sorrisos, da sensação de felicidade e do silêncio.»
«Não sentias um vazio à tua volta?»
«Não. O silêncio alimentava a felicidade. Nunca te aconteceu?»
«Da vida real não guardo grandes saudades do silêncio e sabes porquê. Voltando ao sonho, não havia mais ninguém conhecido?»
«Penso que bastava a tua presença. Ninguém mais interessava. Que leitura fazes deste sonho?» perguntou, ganhando coragem.
Não respondi. Mordi os lábios. Adivinhava o que vinha a seguir.
«Há muita coisa que não compreendes, Mário, mas porque não queres compreender.»
«Não compreendo, o quê?»
«Nunca dás conta das coisas mais subtis que se passam à tua volta. Tem a ver muito com os sentimentos que escondes e com os dos outros que ignoras. Com o receio de voltares a falhar.»
«Onde queres chegar?»
«Gostava que visses a realidade, mas estás sempre distante.»
«Não entendo.»
Foi mais direta.
«Tudo para ti é superficial. Falando em metáforas, se passares por uma flor e não a colhes. Mal olhas para ela, ou nem sequer a viste. E então ela vai murchar de solidão. O teu olhar estende-se sempre para lá dos limites do horizonte, pois sabes que aí não há nada a não serem os teus fantasmas. Foges, Mário!»
«Não é bem assim, Mafalda.»
«Então o que é?»
Olhei-a com insistência, obrigando-a a baixar os olhos.
«Falta acontecer muita coisa para os tais fantasmas me deixarem. Um dia vais compreender. Peço-te que sejas paciente.»
«Não sabemos de que tempo dispomos...»
«As marés vêm e vão.»
Num gesto involuntário, acariciei-lhe o rosto. Fechou os olhos e começou talvez a sonhar.
«Um dia virá uma maré viva. Agora estou ainda confuso. Estas malditas paredes não me deixam pensar. Muito menos, sonhar.»
«Então não penses. Deixa acontecer.»

Levantei-me cedo. Pouco dormi nessa noite. A Mafalda era uma mulher atraente, embora não tanto como Patrícia. Mas havia uma diferença em relação à Patrícia dos tempos do snack. Não vendia a carne. De certeza que se entregaria toda de corpo e alma e o pior é que eu queria aceitar, mas talvez com receio que saísse magoada. Conhecendo-me como me conhecia, era melhor. 
«Mafalda...» 
«Sim, Mário?»
«Estou admirado por ainda não ter chegado ninguém.»
Ela sorriu com amargura.
«A maré está a passar e não passamos deste impasse.»
«Há os outros, Mafalda. Penso que não temos o direito de...»
«De quê?»
«Não é bem trair. Falta-me a palavra certa. Quero dizer outra coisa que não sai. Mas tu entendes. Em circunstâncias normais não havia qualquer problema. Mas agora o nosso envolvimento vai afetá-los se acontecer agora.»
«Ao diabo os outros, Mário. Pensa ao menos uma vez em nós. Não vou desistir, não.»
«Nem estou a pedir para desistires. Só apenas que sejas paciente. Um dia vamos sair daqui e então será diferente. Prometo.»
«Estamos sós no mundo e pode acontecer que se espere uma eternidade por um amanhã que pode não vir. Por isso, digo e repito com poucas palavras. Vem para mim. Hoje. Agora!»
«Deixa-me continuar com o espírito baralhado. Por enquanto é impossível. Não estaria bem com a minha consciência.»

«Exiges sempre muito de ti.»

Revelando os pensamentos de Tomás...
Tudo tinha os seus limites e ninguém mandava nele. Quando acabasse a quarentena iria para a cidade. O Observatório esperava-o. Era lá que devia estar no resto da sua vida. A solidão não o atormentava. E talvez houvesse uma hipótese de não ficar só. A Mafalda estava a atirar-se ao Mário e ele dava-lhe pouca atenção. Ia esperar com paciência pela oportunidade. Quando ela se cansasse, tentaria a sua sorte. Um dia viria como salvador, de braços abertos, pronto a conquistá-la. Sim, tinha um fraco por ela, não o escondia.
Conheceu muitas mulheres. Possuiu-as. Seguiu novos rumos. Agora a Mafalda significava outra coisa para si. Era a tal.

Viu-os saírem da sala. Quase de certeza que iam para o quarto dela. Fechou o livro. Estava aberto há muito na mesma página. Levantou-se. Espreitou-os no corredor. Afinal, ia cada um para o seu quarto. 
E se tentasse a oportunidade?
Era cedo. A Mafalda mal dava pela sua presença. Sentia-se um réptil que rastejava a seus pés. Nojento. Sabia que não estava a proceder bem. Ela era uma pérola e não podia riscá-la. Queria beijar-lhe os olhos. Os seios...
Voltou à sala. Sentou-se outra vez no outro sofá e ficou de mãos na nuca, olhando vagamente em frente. Mais tarde ou mais cedo ia conseguir.

A Mafalda continuava obcecada por mim. A chama da paixão que, durante muito tempo, tinha permanecido adormecida, tornava-se agora quase incontrolável. Era inevitável acontecer. Os seus olhares tornavam-se mais persistentes e as palavras já não tinham nem peso, nem conta, nem medida. Por outro lado, sentia-me bem na sua presença, embora continuasse a manter a distância habitual. Ela fingia ignorar a aparente frieza das atitudes que tomava. Os olhares furtivos que trocávamos davam-me coragem para prosseguir. A teia estava urdida.
Até que uma uma noite apareceu no meu quarto. Trazia consigo um sonho mil vezes já sonhado.
«Precisas de...?»
Não acabou a pergunta. O olhar dela tinha algo de diferente. Depois, havia uma musicalidade no quarto. Promessas de erotismo, pensei, ao reparar que a Mafalda olhava-me languidamente.
«Que se passa, Mafalda?»
Pôs-me um dedo sobre os lábios.
«Não digas nada, Mário.»
Começou a despir-se e também a despir-me. Lentamente. Tão lentamente que não reagi. Estava hipnotizado. O desejo parecia aceitar a oferta. Ali estava ela, suplicante. À espera. Como sempre tinha estado. Mas com a Patrícia tinha acontecido de repente. Lembrava-me. E os olhos implorantes da Mafalda não eram da cor do mar. Eram castanhos. O corpo moreno e os seios grandes e perfeitos. 
Aspirei o perfume que se soltava dela e foi fatal. Senti que fraquejava. Ela estava a um passo. À distância de estender o braço. Aproximou-se. Acariciei-lhe o cabelo sedoso. Ali estávamos, frente a frente. E ela à espera...
Afastei a ideia. Estava outra vez a confundir o presente com o passado. A Mafalda sorria e eu continuava a acariciar-lhe os cabelos, ainda hesitante. O olhar dirigiu-se para a porta.
«Queres que tranque a porta?»
«De que estás à espera, querido?»
Afastei-a suavemente e fui trancar a porta.
«Não demores! Vem...»
Vi-a deitada na cama, muito séria, de olhos fixos virados para mim. Talvez a Patrícia fosse mais perfeita. Tinha um corpo de sonho e sabia usá-lo. Ondulava-o como uma cobra até ao orgasmo, fim metafísico do ato, como nenhuma outra mulher o sabia fazer. Isto no tempo da fera à solta. Depois, nunca mais aconteceu. 
«Que fazes aí especado, homem? Parece que é a primeira vez!»
Voltei a aproximar-me. Deitei-me a seu lado.
«Então?»
Sentia o calor do seu corpo. Ouvia, bem perto, a sua respiração apressada. As minhas mãos percorriam o corpo, à descoberta de locais importantes. Ela consentia e esperava por mais.
Comecei a lamber-lhe os seios, a morder suavemente os mamilos. Era uma revelação agradável. Mas continuava fazendo comparações, como se tivesse a provar da substância impura de duas mulheres para obter uma como resultado final.
Então, parei. A Mafalda sentiu que o encantamento se quebrara. 
«Que foi?» perguntei. 
«De repente paraste.»
«Saí daqui?»
«Pior ainda. O teu corpo estava, mas tu não. Toquei-te. Parecias pedra. Rígido e frio. Assustei-me.»
«Estranho!»
Levantei-me e pus um disco a tocar. A música era sugestiva. Quente. Pouco depois estava outra vez na cama, deitado a seu lado.
Lentamente os dedos partiram da base do vulcão adormecido até atingirem a cratera de lava em fusão. Recomecei a mordiscar os mamilos rijos. Ela baixou uma das mãos ao longo do meu corpo até parar na parte certa. Sentia-me rei. Era o rei leão e ela a minha rainha. Enchi-a de beijos. Mil beijos. Muito amor. Muito a dar e à espera de receber. Cada vez mais. Desejo. Desejo. Vontade daqueles minutos sublimes durarem uma eternidade. Mas...
«Que aconteceu?» perguntou a Mafalda.
Mas aconteceu o quê?
«Nada.» Disse simplesmente.
«Não ligues.»
Ela continuava a beijar-me. Suavemente.
Tentei levantar-me. Passou-me os braços pelo tronco, apertando-me muito com carinho. Insisti e libertei-me do abraço. Fiquei de costas para cama. Voltei-me. Estava toda tapada pelo edredão e virada de barriga para baixo. Só lhe via o alto da cabeça. Senti um desejo enorme de a acariciar. Mas não conseguia. Era melhor assim.
Disse que ia andando. 


Na sala, o Tomás lia, como de costume. Notei que no rosto do Pedro havia algo de estranho. Mostrava-se inexpressivo e as mãos fechavam-se sobre a mesa. Movido pela curiosidade, aproximei-me dele. Sentei-me a seu lado. Continuava a olhar em frente, sem dar conta da minha presença.
Nesse mesmo instante a Teresa entrou na sala e olhou para mim, preocupada.
«Há algum problema contigo, Pedro?» perguntei.
Fitou-me, sério, por momentos. Depois baixou a cabeça.
«Então?»
Voltou a não responder.
«Que se passa?» perguntou a Teresa. «Desabafa. Faz bem desabafar, Pedro. Todos estamos sob tensão. Não és só tu, acredita.»
Nem sequer reagiu.
Aproximei-me do Tomás.
«Há um problema grave com o Pedro. Não fala. Tem um olhar ausente...»
«Também já dei conta. Penso que está a entrar em depressão. Não deve estar a tomar o antidepressivo. Além disso, anda a beber de mais.»
«Também já reparei. Podemos cortar-lhe o vinho. Dizemos que a reserva chegou ao fim. Vai ser um sacrifício da nossa parte, mas paciência. Primeiro está a sua saúde mental. Mas temos que esconder o vinho e vai ser para já. Mas onde? Há ainda muitas garrafas.»

«Na casa forte. Onde estão as armas e as munições.»

Sentia-se amarrado àquelas paredes. O fio de contacto com o exterior tinha-se quebrado. Lá fora, muito provavelmente a vida estava em extinção. Ali dentro, ele, em agonia. Os dias longos, demasiado longos. As mesmas caras, as mesmas tarefas. O horror do isolamento. Nem o jogo já o distraía. Sem entender o porquê, sentia um ódio extremo por todos, um desejo de destruir, de virar a sala do avesso. O cheiro a morte pairava no ar. Adivinhava. Ingénuos. Odiava também a ingenuidade deles porque não sofriam, não viam o fantasma da morte a rondar, buscando a oportunidade certa. Queria desaparecer, libertar-se dos seus olhares inquiridores e das suas palavras vazias de sentido. Odiava ainda a sua bondade falsa. Não tinham mais que fazer e então investigavam-se uns aos outros.
De certeza que falavam dele. Até o despistado do Mário dizia que ele não estava bem. 
E quem estava bem?
De futuro nem sequer podia mijar em paz. Mais tarde ou mais cedo eles iriam ver a cor do mijo. Se este era mais claro ou mais escuro. E mais ainda. Se mijava fora da sanita ou se estava a masturbar-se. Não, não tinha vontade de rir. Eles eram capazes de tudo. E aquela cave parecia fechar-se sobre ele cada vez mais. O peso das paredes, do ar que respirava, tudo o sufocava. As vozes matraqueavam nos seus ouvidos e ensurdeciam-no. Os olhares cúmplices deles. Tudo o oprimia e revoltava. Antes tivesse sido preso e ficado com o Gaspar. Felizardo. Morreu no meio do calor humano. Ou não?
Depois, havia um cochichar constante. Só o Tomás se comportava um pouco mais à altura. Nem sequer levantava os olhos do livro. 
Era assim tão interessante esse livro? 
Talvez explicasse cientificamente o que estava a acontecer no Sol e a consequente agonia que os esperava.
Devia voltar ao exterior?
Morrer devagar, não. Antes morrer num momento. Como morrem os heróis e os cobardes. Morrer depressa. Sim. De repente.
Sorriu entre dentes. Ingénuos. Tinha-os convencido. Uma dor de cabeça horrível que não o largava. Uma dor de cabeça era coisa vulgar naquele abrigo. O ar, embora constantemente renovado e analisado, não evitava que o ambiente se tornasse pesado. Disse que ia deitar-se e tentar dormir um pouco. E eles tinham acreditado, parvos como eram. Ah!, mas quando entrassem mais tarde no quarto decerto que iam ter uma grande surpresa.
Trancou-se no quarto. Olhou em redor. As camas e os armários, além das paredes nuas, decoravam o sobrado entretanto transformado em paisagem de deserto onde não faltava o calor escaldante. Um deserto de areias tão finas que eram invisíveis e que mesmo assim estavam a soterrá-lo, aos poucos. Sim, como não havia futuro para ele e para ninguém, podia avistar de uma janela entreaberta, que não existia, as tais areias invisíveis trazidas pelo vento que lhe fustigava o rosto, fazendo, inexplicavelmente, crescer o desejo fugir para bem longe, onde ninguém o visse.
O pensamento paranoico ganhava força e levava-o a acreditar que seria capaz de executar o plano que tinha em mente. É que já não suportava mais aquele cheiro fedorento a amizade falsa. O cochichar constante. Os olhares de soslaio. Os olhares que carneiro mal morto da Mafalda para o Mário. O Tomás sempre as espiá-los.
Aquilo estava de novo com ele. A náusea. A vontade de estoirar com tudo.
Tentou suster a respiração. Não podia fazer o mínimo barulho. Estavam à escuta. Moveu-se em bicos de pés até à porta. Ficou quieto. Eram eles. Sentia alguém respirar do outro lado. Vinham trazer-lhe um prato com comida envenenada. E que grande bacanal seria depois! Mário com a Mafalda. O santinho! Tinha a mania da seriedade, mas não o enganava. Quanto a Tomás, não passava de um abutre que espiava a Mafalda. Preparava-se para ir aos restos, ele sabia. Enquanto se entretinha com o jogo das paciências, espreitava pelo canto do olho e via o polvo, camuflado, em atitude de espera. Finalmente a Teresa não passava duma mosquinha morta. Uma tonta de cabeça vazia. 
Quem diria, depois daquela entrevista?
Deitou-se na cama. Não tardava que tentassem abrir a porta. Fechou os olhos para afastar a ideia fixa. Que bom se conseguisse dormir. Mas não. Aquilo estava com ele. Via-lhe os contornos, as garras aceradas que lhe dilaceravam as entranhas. Não podia fugir. Tinha medo do escuro. Ouvia alguém gargalhar no escuro. A querer atirar-se a ele. Era horrível. Já não era senhor de si.
Levantou-se bruscamente e ficou soerguido na cama, à escuta. Ouviu vozes sussurrantes. Riu baixo. Iam ter uma surpresa muito grande. Libertava-se, finalmente libertava-se.
Sentiu mexerem na porta. Uma tentativa. Mais uma. E outra vez as vozes dos malditos. Alguém a chamar:
«Estás aí, Pedro?»
Parecia a voz do Mário. Encaminhou-se para a porta. Não chegou a abri-la.
«Deixem-me descansar.» Disse, agastado.
«Não queres jantar?»
«Mais logo. Jantem vocês.»
«Como quiseres, Pedro. Olha, o prato fica dentro do forno para não arrefecer.»
Não o deixavam em paz. Queriam acabar com ele. Tinham tudo preparado. Insistiam naquela falsa amizade. Queriam que comesse porque a comida estava envenenada. Não. Era o vinho. Devia haver cianeto no vinho. Mas a vida era só sua. Só ele podia dispor do seu futuro.
Com passos de um autómato dirigiu-se ao armário. Por momentos ficou estático, tentando refletir. O fio da vida estendia-se na sua frente e ele tinha em seu poder a tesoura para o cortar. Não podia mais. Chegava enfim ao limite da resistência. Nem era preciso uma tesoura. O fio estava tenso e assim ia partir-se por si. A náusea abandonava-o, aos poucos, como o ondular da cobra que deixou a presa, inerte. Nada tinha a perder. Não era mais do que os outros que ficaram, lá fora, numa agonia horrível. Pobre Gaspar. Nunca devia ter abandonado o seu companheiro. Esse, sim. Fora um amigo verdadeiro.

Abriu a gaveta do armário. As mãos foram apalpando, no interior, até que pararam. Na vida de todas as pessoas havia um emaranhado de estradas com muitas encruzilhadas. Pedro navegava agora numa dessas estradas rumo a um abismo fatal, sem fazer o mínimo esforço para se desviar.

«Achas que o Pedro está com dores de cabeça?» perguntou o Tomás.
«Por amor de Deus deixa a porra desse livro e presta atenção. Acho que ele não aguentou mais a solidão e pirou de vez. Talvez o facto do amigo ter sido apanhado antes de poder fugir o tenha afetado mais do que pensávamos.»
O Tomás apreciou as palavras dela. Sugou-as. Sabiam a néctar. Afinal, a Mafalda dava conta que ele existia. Ótimo. Estava tudo bem encaminhado. Melhor encaminhado do que pensava. Era só uma questão de tempo e esse era coisa que não faltava.
«Há uns dias atrás começou a isolar-se. Hoje dei com ele de mãos crispadas e olhar estranho. Parecia não ver ninguém à frente. Nem sequer respondeu às perguntas que lhe fiz. Agora disse-nos que lhe doía a cabeça e que ia descansar. Só queria que vissem a cara dele. Metia medo.»
«Que podemos fazer?»
«Não sei, Tomás. A crise parece estar numa fase galopante. Os sintomas têm sido ocultados de forma quase perfeita. Isto só foi possível porque o Pedro atingiu o limite da dissimulação.»
«Então temos que agir depressa!»
«Onde está a Teresa?»
«No quarto, Mário.» Disse Mafalda.
«Por favor vai chamá-la. Temos que ir falar todos com ele! É preciso convencê-lo a tomar quanto antes o antidepressivo. E devemos ser rápidos. Cada minuto que passa é muito importante.»
«Eu falo com ele. A mim vai ouvir-me. Somos companheiros de longa data.»
Pouco depois a Teresa já estava connosco. Junto à porta do quarto olhámos uns para os outros. Resolvi tomar a iniciativa. Afinal era o chefe.
«Estás aí, Pedro? Abre a porta. Precisamos de falar contigo.»
Demorou algum tempo a responder. Voltou a repetir que queria descansar.
«E agora?, insistimos mais uma vez?»
«Acho melhor.»
De repente ouvimos um estrondo vindo do interior do quarto. Fiquei sem pinga de sangue.
Num instante arrombámos a porta. Ficámos especados. Pedro estava estendido no chão, de costas. Ao lado havia uma pistola de calibre nove. Aproximei-me, trémulo. Voltei o corpo. Parecia que aflorava um sorriso de gozo no rosto de Pedro. Nem um esgar de sofrimento.

Após o impacto da situação criada pelo suicídio de Pedro, o bom senso pareceu voltar ao abrigo. Os quatro unimo-nos mais numa tentativa natural de sobrevivência. Nunca deixámos de falar sobre o que aconteceu, tentando tirar conclusões, sobretudo, compreender a atitude tresloucada do Pedro. Ao isolar-se, criou um mundo muito próprio que começou a destruir, pouco a pouco, de forma dissimulada.
Mas havia um problema bicudo. Não sabíamos o que fazer ao corpo. Nada estava programado.
Depois de uma acalorada discussão, concluímos que o cadáver não podia ficar dentro do abrigo. O mais prático era deixá-lo lá fora. Pura e simplesmente abandoná-lo. Estava morto.
«Teve sempre horror a ser enterrado debaixo de terra!» opôs-se a Mafalda.
«Então que fazemos?» perguntei.
Tomás teve uma ideia. Havia um pequeno lago a quinhentos metros do abrigo. No mar faziam-se os funerais deitando os corpos à água. Aquele lago não era propriamente um mar, mas servia para o efeito. O simbolismo não se perdia. Em menos de dez minutos o corpo era levado para o lago. Uma exposição de dez minutos às radiações devia ainda estar dentro dos padrões de segurança. Era a melhor solução.
«As mulheres ficam.» Disse.
«Não, eu quero ir!» Exclamou a Mafalda.
«Nem penses nisso.»

15 de outubro de 1981...
Depois do suicídio de Pedro fiquei ainda mais acabrunhado. Tínhamos atingido o décimo oitavo mês de permanência numa clausura que deixara marcas em todos. Os estados de espírito pioravam a olhos vistos e a homogeneidade do pequeno grupo ressentia-se disso. Só o desejo de sobrevivência nos retemperava as forças, dando novos alentos para o dia seguinte. Com a ansiedade levada aos mais altos níveis, os dias eram contados avidamente e logo descontados logo nos que restavam de permanência no abrigo. Continuávamos a reunir-nos com regularidade na sala de convívio. Os diálogos eram cada vez mais forçados e nunca chegavam ao fim. Passávamos facilmente da realidade ao sonho, "navegando com risco de naufrágio". O despertar era brutal e a verdade feria. Então vinha a acomodação. Nesse capítulo da viagens sentia-me como peixe na água, uma vez que praticava nessas viagens há muito. Estava no meu ambiente, o mundo dos olhares que atravessavam paredes para se projetarem no horizonte dos impossíveis. Era um especialista nessas fugas e começava a arrastar comigo os meus companheiros, principalmente a Mafalda, que tentava acompanhar-me nas incursões silenciosas e longas. Talvez que fosse um deus acabrunhado pela derrota numa batalha que ninguém via, ou então o grande vencedor de todos os mergulhos no vazio. Agora, com a Mafalda por companheira, visitava com mais frequência o snack dos copos rodopiantes, das gaivotas que planavam ao sabor da corrente aérea e que picavam de repente para a rebentação em busca de um peixe mais ousado, da ausência de uma Patrícia que talvez nunca tivesse existido. Só eu tinha a chave dessas viagens impossíveis. A Mafalda limitava-se a assomar, timidamente, bem distante das areias movediças. Deixava-se ficar, olhando com receio a minha silhueta virtual que atravessava o caminho para lá das areias. Por vezes tinha uma enorme vontade de me seguir, mas as areias abriam-se, em sinal de aviso, mesmo antes de se decidir, como um boqueirão ávido e implacável. Eu sabia e nunca me voltava para trás. Não queria seduzi-la pelo pouco que tinha para oferecer.

Comecei a reparar que o Tomás vigiava os encontros que tinha com a Mafalda. Talvez se apercebesse, ao mesmo tempo, do distanciamento que havia entre nós ou da frieza que não conseguia esconder. Por isso, espreitava, pronto a atacar de surpresa quando a oportunidade surgisse. Quanto à ideia de voltar ao Observatório, essa parecia consolidar-se em cada dia que passava. Queria ver os sinais deixados pela grande explosão que aniquilara a vida na Terra. Dada a proximidade do sol, a explosão teria sido mais grandiosa que o aparecimento no céu de uma supernova a quarenta anos-luz. Tinham "caído" na Terra bombas de neutrões, as tais que conservavam os edifícios e levavam à destruição da vida. A tão falada bomba maldita criada pelos americanos (seria que sós eles a tinham?) vinha antecipadamente à luz da ribalta e trazia outra origem: o astro rei que era a fonte da vida e, afinal, transformara a Terra num túmulo.
Os estafados temas da poluição e da extinção dos dinossauros já não nos interessavam. De que falávamos? Nem sequer do momento em que íamos abandonar o abrigo e das surpresas que nos esperavam lá fora. Embora os outros não partilhassem das minhas ideias, continuava a alimentar a esperança de encontrar os sobreviventes e assim poder formar uma colónia. 
«Vais demorar uma eternidade a encontrar os sobreviventes.»
«Também sou da opinião do Tomás.» Concordou a Teresa.
Se formássemos um grupo mais numeroso, maiores seriam as hipóteses de sobrevivência.
«Unidos faremos mais. O trabalho de um irá completar o trabalho do outro e vice-versa. A prioridade é a agricultura. Os cientistas continuarão, dentro do possível, as suas investigações. As invenções já existentes não podem ficar enterradas no esquecimento. Matérias primas não vão faltar. Quantos seremos? Uma pequena multidão para quem os alimentos e a energia serão fundamentais. Há que contar com os bandos armados que vamos encontrar nas cidades e nos campos. Precisamos também de constituir um pequeno núcleo duro defensivo.»
«Isso é utopia, Mário. Para já nem sequer sabemos quantas pessoas sobreviveram. Falas como se fosses descobrir logo uma mão cheia e bem recheada de técnicos, cientistas, agricultores. Seria muita sorte. Temos que contar só connosco. É esse o nosso ponto de partida e não podemos contar com mais, sob pena de entrarmos no campo das especulações. E, quanto a mim, quero que fiques sabendo o que tenciono fazer: penso instalar-me no Observatório e não sair de lá. Tenho os meus aparelhos e os meus livros.
«Estás no teu direito. E vocês?»
«Eu vou contigo, Mário.» Disse Mafalda.
«Não tenho para onde ir. Também vou.»
«Há uma coisa que me preocupa. Já nos informaste que as reservas que temos duram para cerca de um ano. Ou mais que um ano, pois agora somos menos um. Mas como vamos sobreviver lá fora?»
«Não estejas preocupada, Teresa. Penso que a água, os alimentos em conserva e os liofilizados que se encontram às toneladas nas cidades talvez já não estarão contaminados. Mas será tudo analisado antes de ser consumido. Tomei o cuidado de adquirir aparelhos de análise. E queria dar-lhes uma boa notícia: dentro de um mês vou colocar no exterior vários aparelhos contadores de radiações. Se tudo estiver bem, é o momento de semear feijões, grãos e batatas. Está a chegar a época da sementeira. As batatas já estão a grelar. Começamos por assentar arraiais no campo. Só quando estiver tudo a andar bem, com boas perspetivas, é que vamos procurar os possíveis sobreviventes.»
O Pedro enlouqueceu no abrigo. Foi a primeira vítima. Aparentemente, ninguém teve culpa. Podia ter acontecido a qualquer um de nós. Isolou-se sem darmos por isso. Estava farto de viver e pronto, resolveu à sua maneira. Não tinha futuro ou não dispunha de força anímica para recomeçar. Assim, escolheu o caminho mais curto. Um caminho cobarde, mas foi o caminho que escolheu. Só ele dispunha de si.
A Mafalda sussurrou-me ao ouvido:
«Preciso falar-te.»
«Onde?»
«No teu quarto.»

Naquele momento tinha na minha frente uma mulher sedenta de carícias e a Patrícia “ressuscitada” não passara de um equívoco, de fios em curto circuito permanente. Já nada mais esperava. Devia deixar que os sonhos impossíveis se fossem de todo e não cair na tentação de entrar outra vez no labirinto pantanoso, onde já não podia ser um hábil executante.
Escuta, Mário: dizem que os fantasmas do passado não se veem, são frios e não podem amar. A realidade que tens na tua frente existe e ama-te. Não percas a maré. Vai, Mário, leva a Mafalda contigo. O futuro, mesmo que curto, é vosso. Não deixes que te tirem esse bem precioso.
«Que se passa, Mafalda?» 
«Quero que sejas meu de uma vez por todas. Com fantasmas ou sem fantasmas.»
Olhei-a fixamente. Os seus olhos não mentiam. Havia neles uma mão cheia de súplicas, de desejo. Não admirava que tivesse acontecido o que aconteceu. Era parvo. Um grande asno. Mas não podia deixar de ser assim. Na realidade, bem lá no fundo, na distância inatingível da alma, só lhe tinha afeição, uma imensa ternura por alguém a quem se quer com pureza infinita. Via a Mafalda por esse prisma. Depois, havia a atração sexual. O objeto que se usa, de vez em quando. E para mim não chegava.
«Não podemos continuar, Mafalda.»
Tragédia iminente. O rosto de Mafalda transfigurou-se. Esperava tudo menos aquelas palavras.
«Porquê?» perguntou, não querendo acreditar no que acabava de ouvir.
«Cada um de nós tem que seguir a sua vida. É um sinal da força do meu destino. Desculpa, mas não quero ferir a tua sensibilidade. Só te posso fazer mal. Nunca fiz bem a ninguém.»
«Tu não vais fazer-me mal. Antes pelo contrário.»
«Eu não te amo, Mafalda. Só sinto atração física por ti.»
«Não estou a pedir-te mais. O que já tivemos ninguém nos pode tirar. Para mim, foi bom. E para ti?»
«Também. E amanhã?»
Acariciei-lhe os cabelos.
«Diz-me que não é verdade. Que é um sonho mau que estou a ter e que vou acordar já. Diz-me. Por favor, diz-me!»
«Ninguém nos pode tirar o que se passou na cama. Mas não é amor. Um dia sonhei que havia de possuir-te. Tornou-se obsessão. Ao mesmo tempo atormentava-me com a possibilidade de vir a acontecer e tentei respeitar-te sempre.»
«Valeu-te de muito.»
«Tens razão. Tu és uma mulher muito atraente e acabou por acontecer. A química funcionou na cama. Não sei explicar. Foi qualquer coisa que me ultrapassou. Mas não te amo.»
«Dizes isso porque estás convencido que não vais fazer-me feliz. Como se não fosse feliz a teu lado só com a tua presença. Com o odor do teu corpo. Com os teus pensamentos secretos que tento adivinhar. Deixa que te ajude. Os momentos que estamos a passar são dramáticos, bem sei. Verás que, quando sairmos deste inferno, tudo será diferente. Vou estar sempre a teu lado.»
«Não compreendes. Teríamos que viver com um intruso. Eu, tu e um segredo terrível. O meu amanhã está muito nublado e semeado de interrogações. E não te vejo nele. O que não é bom presságio.»
«Mas estou. Pressinto que estou. Pode estar nublado, ou mesmo invisível. Não importa. Eu vejo-me nele.»
«Sabes uma coisa? Admiro a tua persistência. Se fosse a ti, não teria muita certeza.»
Nos seus olhos tinha ainda o brilho da esperança. Sorriu para mim. Lentamente aproximou-se da cama e, com gestos provocantes, começou a despir-se. Via o corpo desnudar-se e perturbava-me.
«Vem, amor. Preciso muito de ti...»
Chamava-me. Não era já o seu rosto. Interroguei-me:
Que coisa estranha!, onde é que vi este rosto?
«Vem, Mário...»
Puxou-me suavemente pelo braço em direção à cama. Deixei-me levar. Estava intrigado com a transfiguração ocorrida no rosto de Mafalda. De repente não era ela.
«Não, Mafalda» disse, sem convicção. «É um equívoco.»
O olhar lânguido fazia-me sentir sensações eróticas que começavam a descontrolar-me. Aos poucos, o desejo crescia. E ela estava tão desprotegida, tão carente!
«Vou fazer-te feliz, Mário.»
Que rosto era aquele? Da Patrícia não era.
«Não desejo fazer-te mal. Estamos num engano permanente.» 
«Vem...»
A coragem fugiu-me.
«Julgo que não te amo. Quero acreditar que não é verdade, mas não tenho argumentos.»
«Não acredito! Diz-me que estou a ter um sonho mau, Mário. Não te abres. Estás convencido que não me fazes feliz porque não fizeste a outra feliz. Eu sei de tudo. De tudo. Esquece-a. Olha, eu estou aqui. Em carne e osso. A outra, se é que existe, não sabes onde está. Dá-me a chama da tua presença. Assim. Não desvies o teu olhar. Deixa que ajude. Os momentos que estamos a passar são dramáticos, bem sei.»
«Não compreendes. É tudo muito complicado, Mafalda. Os sonhos continuam a perseguir-me.»
«Ainda sonhas com ela?»
«Quem?»
«A Patrícia.»
Calei-me. Preferi não responder. Afinal, sabia que não era a Patrícia.
«Podemos viver os três: eu, tu e o segredo.»
«Impossível. Seria um inferno. O meu amanhã será sempre muito cinzento.»
«Mas estou contigo! E estarei sempre. Para te amar.»
«Admiro a tua fé.»
Não respondeu de imediato.
Via-a, à espera, deitada na cama. Nua. Toda minha.
«Vem...» Repetiu, num sussurro.
«Não consigo, Mafalda. Estou a ver-te e não és tu. Ouve bem. Não te vejo! Em cada minuto que passa não te vejo e lamento que seja assim. És muito atraente, sensual. O desejo que sinto de possuir-te é tão grande ou maior que o teu de seres possuída. Acredita. Mas estou a ver sempre a outra. Devo estar a ficar louco.»
«O quê?!...»
«Não consigo.» 
Os seus olhos toldaram-se de lágrimas. O sonho já não tinha mais apoio.
«Amigos como dantes?»
«Olha para mim, Mário. Assim. Olhos nos olhos.»
«És uma mulher muito atraente.»
«Quero ler nos teus olhos a verdade. Pronto, já a li. Agora diz-me: é isso que queres?»
«Sim. A tua amizade.»
«Está bem. Fica descansado que terás sempre a minha amizade. Mas com um preço. Tudo tem um preço, meu amigo.»
«Tenta ser razoável. Não te desprezei. Só que não consigo. Amigos como nos velhos tempos?» 
Não respondeu e eu saí, acabrunhado, do quarto.

Quando a Terra ficou em perigo (7)

Toquei segunda vez. Ouvi passos dentro de casa. Foi como se tivesse decorrido uma eternidade até que alguém abriu a porta. Vi um vulto de mu...